Vai ficar tudo bem — regresso ao passado. A Ucrânia deixou de existir!

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 23/05/2022)

Na atual fase do discurso ocidental sobre a guerra na Ucrânia os dirigentes políticos transmitem a mensagem de, após a guerra, a situação na UE voltar ao passado: não haverá inflação, desemprego, a energia será barata, a União Europeia continuará a vender os seus produtos de alto valor acrescentado no mercado mundial — apesar de a energia vinda dos EUA ser muito mais cara — o estado de bem-estar com serviços de saúde e de previdência social vai ser sustentável, mesmo que as despesas com armamento cresçam e as exportações diminuam…

O discurso dos políticos europeus aos crentes das suas nações lembra a afirmação de Aristóteles há 2500 anos: o tempo não existe, uma vez que nem o passado, nem o futuro realmente existem, o passado porque já passou, o futuro porque ainda não é. O presente, por sua vez, é momentâneo, fugaz, imediatamente se torna passado. Mas para os atuais dirigentes políticos europeus não existe o problema da aporia, o “caminho inexpugnável, sem saída”, o paradoxo, a contradição entre o tempo e o movimento. Para Aristóteles é o movimento que organiza o tempo, para os atuais dirigentes políticos a verdade é a falácia que impingem aos europeus de que, apesar do movimento que entretanto ocorreu (com a invasão sobre vários eixos do território, o tempo parou na Ucrânia e arredores. A guerra na Ucrânia, para eles, não vai ter consequências. O presidente português chegou a afirmar que até vamos ganhar com ela. Vamos ficar melhor!

Os dirigentes europeus transmitem aos europeus a mesma mensagem que a igreja Católica transmitiu no início do século vinte através da senhora de Fátima a três pequenos pastores: a Rússia será vencida e tudo ficará bem. Há quem acredite!

Os dirigentes europeus falam como se a guerra na Ucrânia não tivesse consequências. Como se a Rússia já estivesse a arrumar as malas e a voltar para casa (Venham mais 5, de Zeca Afonso), deixando a Ucrânia disponível para a “reconstrução”! Zelenski, o porta-voz do mais que corrupto regime de Kiev, e cabeça de cartaz eleito por um exército de ideologia nazi, de segregação racial e política, de ditadura sobre o povo e de negação de direitos democráticos elementares, chegou ao ponto delirante de exigir que a Rússia pague a dita “reconstrução”!

De facto, goste-se ou não, a situação real em nada corresponde a esta encenação idílica. De facto, uma das três superpotências mundiais sentiu-se ameaçada o suficiente para romper uma situação pantanosa de ameaça nas suas fronteiras e desencadear uma invasão a um Estado que vendera a sua soberania e se dispusera a ser uma base para o seu “enfraquecimento” continuado (objetivo explicitado pelas autoridades dos EUA, a velha tática do envenenamento por arsénio). A Rússia decidiu cuspir a mistela e tomar a iniciativa: invadiu a Ucrânia.

Com perdas maiores ou menores, o facto é que a Rússia ocupou uma faixa de terreno de cerca de 200 km que vai do norte (Donbass) até ao controlo das margens dos mares de Azov e Negro, e dos seus portos. A Rússia controla estes terrenos decisivos e destruiu o tecido produtivo da Ucrânia e as suas vias de importação e exportação.

A situação de facto é que a Rússia tornou a Ucrânia um Estado inviável, pois a Rússia controla toda a produção de cereais e a exportação de bens e matérias-primas; controla o território que podia servir de base de ataque próximo (Donbass); controla os dois mares e os seus portos. O poder político ucraniano apenas existe porque tem apoio político e militar dos EUA e o apoio financeiro da UE. O poder político da Ucrânia apenas se mantem apoiado pelas suas forças armadas, que em nada se parecem com forças armadas de Estados de Democracia liberal.

Sendo esta a situação, a Ucrânia deixou de existir como existia em termos do que define um Estado: uma soberania aceite pela população e pela comunidade internacional sobre um território. Na realidade uma superpotência ocupa os pontos decisivos do território e tem uma reserva de armas (incluindo armas nucleares táticas) para impor uma decisão militar quando o entender e, depois das sanções ocidentais e da rutura civilizacional que lhe foi imposta pelo Ocidente, não tem nada a perder em termos reputacionais se usar essas armas. A superpotência invasora, a Rússia, tem o apoio de retaguarda de outra superpotência, a China e do grupo dos países emergentes e foi colocada na situação de que mais vale um rei ser temido do que amado (Maquiavel).

A proposta de reconstrução da Ucrânia parte do fantasioso pressuposto de que a Rússia iria aceitar ceder tudo o que conquistou a duras penas em vidas e bens para deixar que os Estados Unidos e a UE e as suas empresas reconstruíssem a situação anterior e até, na delirante proposta de Zelenski, que a propaganda apresenta como um tipo a ser levado em conta, que a Rússia pagasse a reconstrução! Os dirigentes da UE têm apresentado este alucinado raciocínio como um programa a ser levado a sério!

Um dos elementos essenciais de análise de situação militar é pensar como o adversário. Não se trata de moral, nem de proselitismo, mas de análise, de encontrar as hipóteses mais prováveis e as hipóteses mais perigosas. É assim que os militares abordam as situações e não em termos de bondade e maldade, em termos morais.

A Rússia tem uma longa história assim como as suas forças armadas, os seus exércitos. É credível, como nos tentam convencer os dirigentes europeus, que depois dos sacrifícios em vidas e em destruições materiais a Federação Russa retire da Ucrânia, deixe a situação como estava em Fevereiro, que pague a reconstrução de edifícios e infraestruturas, apresente os seus militares e políticos algemados (supõe-se) na gaiola de um tribunal internacional na Holanda, em Nova Iorque, ou em Bruxelas?

Este cenário faz algum sentido? Mas é o que os dirigentes europeus têm estado a impingir aos europeus e há um coro de comentadores que faz eco desta insanidade!

Vamos (os europeus) pagar a reconstrução de quê, de que Ucrânia?


Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

Neocromicon – os feitiços para ressuscitar antigas divindades

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 23/05/2022)

Neocromicon é um grimório, uma coleção medieval de feitiços, rituais e encantamentos mágicos onde são descritos rituais para ressuscitar os mortos, contactar com entidades sobrenaturais, viajar pelas dimensões onde habitam esses seres, trazer de volta à Terra antigas divindades banidas e aprisionadas.

Os discursos do primeiro-ministro português, da presidente da Comissão Europeia, das três figuras que surgiram em mais um programa de propaganda da estratégia dos EUA para o seu confronto com a Rússia, fazem deles mágicos árabes como os descritos por Abdul Alhazred, um poeta louco originário do Iémen, autor de Neocromicon. Infelizmente os sermões e rezas dos políticos europeus não explicam se eles pretendem ressuscitar o monstro político (se comparado com as democracias liberais maioritárias até agora na União Europeia) que era e continua a ser o regime ucraniano, se propõem construir de raiz um novo regime baseado no Estado de democrático de Direito que a Europa tem desenvolvido desde a Revolução Francesa e foi buscar os seus fundamentos na cultura grega.

Os dirigentes da União Europeia têm duas opções: ressuscitar o iliberal monstro de corrupção que as intervenções externas (EUA) implantaram na Ucrânia e fazer de conta que nada se passou desde 2004 a Fevereiro de 2022, ou criar de raiz um regime higiénico a partir da base, com outras leis, com outra gente.

A dita “reconstrução” da Ucrânia assenta no embuste vendido pela propaganda ocidental de que a Ucrânia em 2004 era um Estado de direito democrático, com um poder político eleito de forma aceitável pela comunidade internacional, com um sistema judicial independente do poder político, com partidos da oposição, com forças armadas subordinadas ao poder político e a uma lei constitucional baseada na igualdade, em vez de milícias nazis, defensoras da supremacia racista e da ditadura por si imposta, ao serviço de oligarcas locais. A reconstrução ou ressurreição da Ucrânia deve esclarecer se esta vai continuar a ser um regime que aceita desempenhar o papel de agente provocador da Rússia respaldado nas promessas dos EUA e para servir os interesses estratégicos destes, para continuar a ser o regime que esteve na origem da sua destruição e desta guerra ou se vai ser outra coisa, que convinha esclarecer o que é antes de “reconstruir”. Algum político explicou o que quer “reconstruir” na Ucrânia?

Os dirigentes europeus, quando falam em “reconstruir” a Ucrânia, apenas pretendem a hibernação do monstro até à próxima oportunidade, ou têm uma outra qualquer ideia? Qual?

A UE deve pagar a reconstrução de uma base dos EUA na fronteira da Rússia sob a forma de um Estado racista e de ditadura, como o que está em vigor? A UE deve ressuscitar o monstro que anda a criar desde 2004? A UE deve realizar um batizado a Zelenski e mergulhá-lo nas águas da democracia, como fez o bispo Macedo da IURD a Bolsonaro, no rio Jordão? Vamos pagar esse espetáculo?

É a ressurreição de um monstro que os políticos europeus querem que paguemos? E, sendo assim, porque não aproveitar o mesmo batismo, as mesmas águas, batizar Putin e admitir a Rússia na UE, que até fornece energia para nos movermos e aquecermos e cereais para comermos?


Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

Reconstruir a Ucrânia ou ressuscitar monstros?

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 23/05/2022)

Estava a passar pelos noticiários das TV nacionais. Num, o primeiro-ministro português falava a partir de Kiev na “reconstrução” da Ucrânia, e da sua entrada na União Europeia. Noutro, um friso de senhores e senhoras, que me pareceram gente com lugar no Parlamento Europeu, perorava sobre a “reconstrução da Ucrânia”. Reconheci o deputado Paulo Rangel. Defendia que a Ucrânia devia entrar rapidamente na UE por questões geoestratégicas, mesmo que não cumprisse as regras do clube. Cito de cor: ” Serve-nos, quero lá saber do cadastro dos tipos que dirigem o país!” — já assim geria os seus complacentes princípios ao passear-se com um tal Guaidó, escolhido pelos Estados Unidos para presidente da Venezuela! Seguindo o pragmatismo de Rangel em termos estratégicos, porque não admitir Marrocos na UE que fornece limões, pistácios e caracóis? Ou a Argélia, que fornece gás? Ou a Mauritânia, que fornece peixe? Mistérios da estratégia de Rangel!

Ao lado de Rangel, um senhor de cabelo ralo e de barba, de que não retive o nome, falava sobre a “reconstrução” da Ucrânia. “Há que reconstruir a Ucrânia, refazer a Ucrânia!” (e porque não, também o Afeganistão? Ou a Líbia? Ou o Iraque? Ou a Palestina? Ou o Líbano?) Surgiu depois o que julgo ser o deputado Rui Tavares: “Há que admitir a Ucrânia na UE, mas não na NATO!” Ninguém lhe perguntou porque será que uma Ucrânia aberta a todas as exigências, onde os Estados Unidos e a UE já investiram biliões no armamento e na formação de militares para servir de base da NATO, deve ser menos que a Finlândia e a Suécia, que têm forças armadas respeitadoras do poder político e que colocam condições, nomeadamente a recusa de instalação de bases NATO e já causaram perturbações com a Turquia? A Ucrânia para NATO, já! E ninguém fala mais dos curdos, que não são estratégicos!

A palavra mágica dos políticos europeus é “reconstrução”! Mas reconstruir o quê? A Ucrânia de 2004, dos oligarcas, da corrupção generalizada, da ditadura imposta por um exército nazificado e desde há muito treinado pelos Estados Unidos e a Inglaterra sob a chancela da NATO, na confissão do secretário-geral? A Ucrânia do golpe da praça de Maidan de 2014, a Ucrânia que proibiu os partidos políticos, que chacinou as populações russas do Donbass?

Reconstrução da Ucrânia antes de investigar o que fez a oligarquia da Ucrânia, agora representada por Zelenski, dos biliões que a União Europeia e os Estados ali meteram? É essa “elite” predadora de dinheiro europeu que vai ser reconstruída e é a essa gente cleptocrata que vai ser entregue o dinheiro da reconstrução? Não haverá antes qualquer investigação ao destino dos milhões entregues aos oligarcas que Zelenski representa?

A Ucrânia de antes da invasão russa de Fevereiro, se tinha alguma comparação com algum Estado no planeta seria com a Birmânia/Myanmar, em que um ator popular foi escolhido para figura de cartaz. É este o regime da Ucrânia que os políticos europeus querem “reconstruir”?


Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.