O telefone vermelho

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 23/03/2025)

Zelensky e os seus amigos europeus desdenharam sempre obter um acordo de paz quando a Ucrânia estava numa posição bem mais favorável e agora estão dependentes das condições ditadas por Putin e da vontade de Trump.


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e uma guerra nuclear entre as duas grandes potências mun­diais terminaria com a destruição mútua de ambas e o extermínio de dois terços da Humanidade, parece evidente que não há outra solução que não o entendimento entre elas visando a renúncia recíproca à utilização de armas nucleares. A isto chamámos durante décadas o “equilíbrio do terror”, que garantiu que por mais ogivas nucleares que Estados Unidos ou União Soviética acrescentassem aos seus arsenais elas não eram para ser usadas, mas apenas para servirem como factor de dissua­são. Foi assim possível, mesmo nos mais tensos momentos da chamada Guerra Fria, chegar a acordos que limitavam o número de ogivas ou de mísseis intercontinentais de cada lado — os tratados SALT I e II e START — e de manter, em última instância, uma via aberta de diálogo directo entre os Presidentes dos dois países: o “telefone vermelho”. E assim vivemos quase 50 anos, no fio da navalha mas em paz, até que Margaret Thatcher pressentiu em Mikhail Gorbatchov a intenção de pôr fim à União Sovié­tica. Seguiu-se aquilo que eu considero o maior erro estratégico do Ocidente: sobre as ruínas da URSS e a liberdade reconquistada pelos seus países satélites, pegar nestes e utilizá-los para expandir a NATO cada vez mais para leste em direcção à Rússia. Hoje, uns garantem-nos que Putin quer voltar a 1991 e reconquistar todos os países aos quais a Rússia então restituiu a independência, ressuscitando sob a sua alçada o antigo Pacto de Varsóvia, enquanto outros vão mais longe e asseguram que ele quer conquistar a Europa inteira: não é invenção, é a doutrina dominante entre os actuais líderes europeus e da União Europeia (UE). Eu acredito antes que ele é, sim, um nostálgico do Império Russo tal como Catarina, a Grande, o delimitou, incluindo nele a Crimeia, a Ucrânia e os demais países vizinhos que têm uma história ou uma população ainda ligada à Rússia. A sua célebre frase, tantas vezes citada, de que “o fim da ­União Soviética foi a maior catástrofe do século XX” é sempre truncada, omitindo a continuação da frase, em que ele justificou a afirmação com o facto de a extinta União Soviética ter abandonado russos à sua sorte nos países de onde se retirou. Talvez seja um bocado isso que ele agora tenta resgatar. Mas isso agora não vem ao caso.

O que interessa agora é perceber qual é a situação actual e como é que, a partir dela, será possível ou não restabelecer com a Rússia relações que afastem o clima de guerra iminente ou prometida em que estamos e, de caminho, conseguir o melhor acordo de paz possível para a Ucrânia — se é que é isso que se pretende. A invasão da Geórgia e da Ucrânia e a anexação da Crimeia contribuíram decisivamente para afastar as partes e fazer renascer o clima de guerra fria, tal como o havia feito a contínua expansão da NATO para as fronteiras da Rússia. Aos poucos, esse clima foi-se agravando, o telefone vermelho deixou de tocar e não só ninguém deu um passo para desanuviar a tensão como até ouvimos Joe Biden chamar “assassino” a Putin, o que certamente não contribuiu para melhorar as coisas. Sem surpresa, assistimos à denúncia ou não renovação dos tratados SALT e START e, para todos os efeitos, foram cortadas todas as pontes e canais de diálogo entre as partes. E assim a guerra da Ucrânia estava aí para durar indefinidamente, não tivesse aparecido entretanto Donald Trump e a sua promessa de fazer acabar com a guerra em 48 horas. De repente, todos os que do lado de cá tinham como única proposta continuar a financiar e armar a Ucrânia “por tanto tempo quanto necessário”, aqueles para quem a simples sugestão de tentar negociações para pôr fim à guerra era uma demonstração de vassalagem a Putin, ensaiaram uma cambalhota total e passaram a reclamar e a exigir ser parte activa nas negocia­ções abertas por Trump. É bom que não nos esqueçamos disto para compreen­são futura do que se vai passar a seguir.

E então, depois de ter obrigado Zelensky a aceitar, a bem ou a mal, o seu projecto de acordo de paz, Trump pegou no telefone vermelho, que já não devia funcionar há anos, e ligou a Putin. Essa tão esperada chamada telefónica deixou bons auspícios quanto à normalização das relações Estados Unidos-Rússia e à retoma dos acordos de limitação de armas nucleares, mas, em relação à guerra da Ucrânia, resultou em quase nada. Putin reduziu o esperado acordo de cessar-fogo a mínimos e, para ir mais além, exigiu o fim do fornecimento de armas a Kiev e um acordo de paz que contemple os pontos que Moscovo quer ver discutidos e a que ele chama “as raízes da guerra”. Trump — que é forte com os fracos e fraco com os fortes — aparentemente bateu em gloriosa retirada, pouco habituado a não ser obedecido e sem que se possa adivinhar que planos tem ele agora para fazer avançar qualquer acordo, se é que tem algum. Um bom acordo faz-se quando se está em boa posição e não quando se está por baixo, em estado de necessidade. Zelensky e os seus amigos europeus desdenharam sempre obter um acordo de paz quando a Ucrânia estava numa posição bem mais favorável e agora estão dependentes das condições ditadas por Putin e da vontade que Trump tenha de as aceitar ou não, da pressa que tiver em pôr fim à guerra de qualquer maneira para depois passar à fase seguinte: cobrar a sua comissão de mediador em riquezas minerais da Ucrânia. Putin pode agora, diferentemente do que sucedia até há uns meses, ditar as suas condições para pôr fim à guerra: está por cima no campo de batalha, sente a Ucrânia exaurida e tira partido da espantosa vaidade de Donald Trump. Enquanto isso, a Europa, ao mesmo tempo que reivindica um lugar à mesa das negociações de paz, continua a querer investir na guerra, como se nada de novo tivesse acontecido. Kaja Kallas, a comissária para a Defesa da UE, numa semana anuncia mais €20 mil milhões em armas para a Ucrânia e na semana seguinte diz que afinal são €40 mil milhões que os países da UE terão de desembolsar, sem explicar como e porquê refez as contas. E, sobretudo, sem querer saber que agora é a Ucrânia que não quer mais continuar em guerra. Pode até dar-se o caso de Zelensky, acossado pela necessidade e por Trump, aceitar a exigência russa de deixar de receber armas ocidentais e teríamos a UE com umas toneladas de armas para oferecer a quem não as quer. Mas também não me admira nada tanto amadorismo bem intencionado: estes são os mesmos dirigentes europeus que andam a arregimentar tropas para mandar para a Ucrânia com a missão de garantir o acordo de paz — sem que haja ainda acordo e sem saber se a Rússia aceitará tropas europeias de países da NATO na Ucrânia. São os mesmos dirigentes que aceitaram sem pestanejar, e igualmente sem quererem ver as contas, o plano de rearmamento europeu no valor de €800 mil milhões, apresentado por Ursula von der ­Leyen. Os mesmos que, para financiar o seu rearmamento, se preparam para aprovar a renúncia aos limites de endividamento dos Estados e o desvio de verbas da coe­são europeia a favor das indústrias de armamento. Os mesmos que ficaram entusiasmados com o programa de rearmamento da Alemanha, que exigiu até uma alteração constitucio­nal sem parar para pensar se será boa ideia o rearmamento da Alemanha, sobretudo quando um partido neonazi, a AfD, tem 20% dos votos dos alemães. Os mesmos, enfim, que só falam de guerra enquanto se tenta alcançar a paz na Europa.

2 Entretanto, o homem que sonha vir a ganhar o Nobel da Paz, Donald Trump, incentiva e apoia o seu amigo Netanyahu, um criminoso com mandado de captura do Tribunal Internacional da Haia, para retomar o plano da solução final na Palestina: matar o maior número possível de palestinianos e empurrar os restantes para fora da sua própria terra.

É extraor­dinário comparar a unanimidade nas sanções ditadas à Rússia pela invasão da Ucrânia com a unanimidade na impunidade para com o genocídio que Israel leva a cabo há mais de um ano.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

4 pensamentos sobre “O telefone vermelho

  1. A Rússia não avança mais rápido porque isso implicaria terraplanar os civis que quer livrar das garras do nazismo.
    Claro que se a Rússia pretendesse conquistar a Europa, uma área em que todos são inimigos, as armas seriam outras.
    E a Rússia e simplesmente mais decente que os Estados Unidos pois que se quisesse fazer em Kiev o que aqueles bandalhos fizeram em Bagdade podia faze lo.
    Alias, de vez em quando despeja lá uns drones e da cabo de umas anti aereas para mostrar que pode.
    Mas de decência ninguém neste lado percebe pois sabem bem o que fizeram na Libia, na Síria, no Iraque e o que está a fazer Israel com a sua cumplicidade e silêncio.
    Mas a Rússia não precisa desta merda para nada e é justamente por isso que não nos ataca.
    E deixem se dessa treta de ver wokes em todo o lado que isso já mete ranço.

  2. “ os […] dirigentes europeus […] andam a arregimentar tropas para mandar para a Ucrânia com a missão de garantir o acordo de paz — sem que haja ainda acordo e sem saber se a Rússia aceitará tropas europeias de países da NATO na Ucrânia.”

    Se o MST não vivesse fechado na sua concha, vendo, ouvindo e lendo apenas os merdia mainstream, todo orgulhoso de não ter nem frequentar as redes sociais, já estaria farto de saber que a Rússia NÃO aceitará tropas europeias de países da NATO na Ucrânia, pela simples razão que a Rússia se sente ameaçada pela NATO. Com muito boas razões, aliás. E para saber isto não é preciso redes sociais nem merdia. É só conhecer a história. E se ouvisse o que o Putin diz há anos, saberia que a Rússia quer eliminar essa ameaça óbvia de uma aliança militar que foi criada contra a Rússia e que se alargou sucessivamente, contrariando o compromisso assumido com o patético Gorbachov, da seguinte forma: desnazificar, desmilitarizar e neutralizar o regime criado com o golpe de estado de maidan apoiado e comandado pelo ocidente. E as invasões “imperialistas” do Putin (claro que as dos eua não são imperialistas…) da Geórgia e da Ucrânia tiveram basicamente duas funções: proteger os cidadãos de origem russa que ficaram fora da Rússia quando a US colapsou e proteger a própria Rússia, que sempre foi cobiçada pelo ocidente, devido aos seus infindáveis recursos naturais. O que ninguém me consegue explicar é por que raio a Rússia haveria de querer conquistar a Europa (para não falar como é que um país que está há três anos a invadir outro para conquistar uma área pouco maior do que Portugal o conseguiria fazer… por este ritmo, demoraria trinta ou quarenta anos), que é um continente de velhos, sem riquezas naturais, desindustrializado, cheio de problemas com os imigrantes, cheio de confusões na cabeça das pessoas com todas as tretas woke e, com o seu abandono pelos eua, a voltar a ser o que sempre foi: um saco de gatos, ou um galinheiro com três galitos arriçados (Inglaterra, França e Alemanha, com Polónia, Itália e Espanha à espreita) a querer impor-se perante os outros, como se tem visto de uma forma tão patética como a sua anterior submissão aos eua.

  3. Estas unanimidades teem a mesma génese. Falta de humanidade, falta de vergonha no focinho e espírito de pilhagem.
    Israel assegura a instabilidade em todo o Médio Oriente e a mais facil pilhagem dos seus recursos por parte do Ocidente.
    Daí que se calem ante todos os crimes de um estado criado pelo Ocidente para servir os seus desígnios exterminando tudo o que podem.
    Os ocidentais sabiam o que estavam a fazer quando apoiaram a instalação na Palestina de uma gente supremacista e com uma doutrina messiânica e destrutiva.
    Sim, porque o sionismo e irmão gemeo do nazismo e tem de ser denunciado pelo que e.
    Uma doutrina supremacista, racista e apologista do assassinato puro e simples dos que vivem na terra que lhes teria sido dada por Deus.
    Quem criou Israel cometeu um crime, quem hoje apoia Israel continua a comete lo.
    E quem não o apoia, e fora do que chamamos Ocidente alargado são muitos, pouco pode fazer porque Israel e uma força maléfica que só pararia de cometer atrocidades se fosse arrasado.
    E e impossível arrasar uns monstros sentados em cima de um arsenal nuclear clandestino de 200 bombas. Que não hesitariam em lançar contra quem quer que fosse dado que a sua religião e messiânica e acredita no fim do mundo numa grande guerra onde acabara por intervir o próprio Deus.
    Na verdade boa parte da humanidade odeia Israel mas sabe que nada pode fazer.
    A não ser denunciar os seus crimes como corajosamente fez a África do Sul.
    A unanimidade nas sanções prende se com o mesmo. A ansia de pilhar recursos, nomeadamente os recursos da Rússia.
    Onde a única unanimidade que existe e a do Ocidente, leia se países da União Europeia, Estados Unidos e Canadá, mais uns micro vassalos. Porque a realidade e que a maior parte da humanidade cagou olímpicamente nas nossas sanções e por isso a economia russa não colapsou como era o sonho molhado desta cambada toda.
    E se a Ocidente ha unanimidade no apoio a genocidas e justamente porque nos estamos nas tintas para os direitos humanos que adoramos invocar quando criticamos a Rússia ou a China.
    Alias, se estivéssemos mesmo interessados nos direitos humanos nunca teríamos apoiado o nazismo ucraniano.
    Vão ver se o mar da choco.

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