Em 9 de Abril de 2022, Zelensky preferiu a guerra à paz pelos motivos mais mesquinhos – Parte IV

(José Catarino Soares, 17/02/2024)

Kiev, 9 de Abril de 2022. Boris Johnson, no papel de deus Mercúrio, encontra-se com Volodymyr Zelensky e outros dignitários ucranianos. Foto:Twitter @AndriyYermak.

7. As incompreensões, erros e omissões de Arestovych

A alegação de Arestovych de que os acontecimentos de Bucha poderão ter sido a razão pela qual Zelensky fez abortar o acordo de Istambul não tem fundamento empírico. A notícia seguinte da Associated Press (AP), datada de 10 de Abril de 2022, intitulada A entrevista da AP: Zelensky procura a Paz apesar das atrocidades, refuta essa alegação:

«Kiev, Ucrânia (AP) – O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky disse no sábado [dia 9 de Abril de 2022] que está empenhado em fazer força pela paz, apesar dos ataques russos a civis que surpreenderam o mundo, e renovou o seu apelo por mais armas antes de um aumento esperado nos combates no Leste do país. O Presidente fez estes comentários numa entrevista à Associated Press, um dia depois de 52 pessoas, pelo menos, terem sido mortas num ataque a uma estação de comboios na cidade de Kramatorsk, no Leste do país, e quando surgiram provas de assassinatos de civis [em Bucha, n.e.], depois de as tropas russas não terem conseguido tomar a capital, Quieve, onde o Presidente se encontra encurralado. “Ninguém quer negociar com uma pessoa ou pessoas que torturaram esta nação. É tudo compreensível. E como homem, como pai, compreendo-o muito bem”, disse Zelensky. Mas “não queremos perder oportunidades, se as tivermos, para uma solução diplomática”. /…/ [n.e. = nota editorial].

Zelensky disse estar confiante que os ucranianos aceitarão a paz, apesar dos horrores que testemunharam durante a guerra de mais de seis semanas. Entre elas, incluem-se imagens horríveis de corpos de civis encontrados em quintais, parques e praças da cidade e enterrados em valas comuns nos subúrbios de Bucha, em Quieve, após a retirada das tropas russas. Os dirigentes ucranianos e ocidentais acusaram Moscovo de crimes de guerra» [12].

Assim, em 9 de Abril de 2022, à hora que deu a sua entrevista à AP, Zelensky ainda estava firmemente decidido a levar por diante o acordo de Istambul, malgrado o alegado ataque russo a Kramatorsk em 8 de Abril e as alegadas descobertas macabras de civis alegadamente assassinados pelas tropas russas em Bucha.

A verdadeira razão que levou Zelensky a abortar o acordo com a Rússia que tinha sido alcançado em Istambul é outra (que o próprio Arestovych não descarta quando se refereao papel de Boris Johnson) e convém expô-la, uma vez mais, para que não possa desaparecer sem deixar rasto num “buraco da memória” do Ministério da Belicosidade Perpétua (OTAN, em Novilíngua) dos EUA e dos seus aliados-clientes em quatro grandes regiões do planeta (“Ocidente alargado” em Novilíngua).

Na cimeira extraordinária da OTAN de 24 de Março de 2022, em Bruxelas, na qual Joe Biden fez questão em participar, os Estados-membros desta aliança belicista decidem não apoiar a proposta de Zelensky de neutralidade militar e renúncia ao objectivo de aderir à OTAN. Como noticiou o Washington Post de 5 de Abril de 2022:

(A) «Para alguns membros da OTAN, vale mais que os ucranianos continuem a combater e a morrer do que chegar a uma paz demasiado precoce ou demasiado dispendiosa para Kiev e o resto da Europa» [13].

O ministro dos Negócios Estrangeiros turco, Mevlut Çavuşoğlu, que organizou as reuniões negociais entre a Rússia e a Ucrânia em Istambul, foi ainda mais explícito. Em 20 de Maio de 2022, numa entrevista à CNN-Turquia, ao comentar o malogro do Acordo de paz finalizado em Istambul no fim de Março de 2022, Çavuşoğlu afirmou que nunca lhe tinha passado pela cabeça, nessa altura, que a guerra entre a Ucrânia e a Rússia pudesse continuar tanto tempo depois dessas conversações de paz. Mas mudou de ideias mais tarde, porque, acrescentou:

(B) «Após a reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros da OTAN, ficou a impressão de que há, entre os países membros da OTAN, quem queira que a guerra continue para conseguir enfraquecer a Rússia» [14].

Não é possível interpretar (A) e (B) se não for desta maneira: para os altos dignitários da OTAN sacrificar centenas de milhares de vidas ucranianas numa guerra para enfraquecer a Rússia não é “demasiado “dispendioso”. Pelo contrário, é um negócio extremamente lucrativo, como o director da CIA, William Burns, nos fez o favor de explicar há poucos dias com um cinismo imbatível:

«A chave do êxito reside na preservação da ajuda ocidental à Ucrânia. Representando menos de cinco por cento do orçamento de defesa dos EUA, é um investimento relativamente modesto com retornos geopolíticos significativos para os Estados Unidos e retornos notáveis para a indústria americana» (“Spycraft and Statecraft”. Foreign Affairs, January 30, 2024).

No entanto, em 27 de Março de 2022, três dias depois da cimeira extraordinária da OTAN, Zelensky defende publicamente a sua proposta de acordo — a mesma proposta que tinha feito à Rússia no início de Março, por intermédio de Naftali Bennett, e que a Rússia tinha aceitado. No dia seguinte, 28 de Março, num gesto de apoio a esse esforço, Putin afrouxa a pressão militar sobre Quieve e Cherniguive, e retira as suas tropas deste sector. Em 9 de Abril, como vimos, Zelensky reitera o seu apoio ao acordo que foi alcançado na Turquia em 3 de Abril (consignado no “Comunicado de Istambul”) e que incorpora a sua proposta inicial. Depois, nesse mesmo dia, ao fim da tarde, Boris Johnson chega a Quieve numa visita-surpresa. A partir daí, tudo muda, como foi já analisado na primeira parte deste artigo, em 12 de Dezembro de 2023.

Em 5 de Maio de 2022, os jornalistas ucranianos Iryna Balachuk e Roman Romaniuk, do jornal ucraniano Ukrayinska Pravda, escreveram:

«De acordo com fontes do Ukrayinska Pravda próximas de Zelensky, o Primeiro-Ministro do Reino Unido, Boris Johnson, que apareceu na capital quase sem aviso prévio, trouxe duas mensagens simples: a primeira é que Putin é um criminoso de guerra, deve ser pressionado e não trazido para negociações; e a segunda é que, mesmo que a Ucrânia esteja pronta para assinar alguns acordos de garantias com Putin, eles [os membros do “Ocidente alargado”, n.e.] não estão.

A posição de Johnson era a de que o Ocidente alargado, que em Fevereiro tinha sugerido que Zelensky se rendesse e fugisse, sentia agora que Putin não era tão poderoso quanto imaginavam e que esta era uma oportunidade para o “pressionar”. Três dias depois de Johnson ter partido para a Grã-Bretanha, Putin veio a público dizer que as conversações com a Ucrânia “tinham-se transformado num beco sem saída”» [15]

Numa entrevista que deu à jornalista Natalia Moseichuk, em Novembro de 2023, o chefe da delegação de negociadores ucranianos nas negociações da Turquia, Davyd Arakhamia, corroborou inteiramente este relato dos jornalistas da Ukraisnka Pravda 18 meses antes.  

«Arakhamia: Eles [os membros da delegação russa, n.e.] estavam esperançados, e mantiveram essa esperança até quase ao último momento, que nos obrigariam a assinar um acordo desse género para que assumíssemos a neutralidade. Era o mais importante para eles. Estavam dispostos a acabar com a guerra se nós concordássemos com a neutralidade — como outrora fez a Finlândia — e nos comprometêssemos a não aderir à NATO [= OTAN, n.e.]. De facto, esse era o ponto-chave. Tudo o resto era apenas retórica e “tempero político” sobre a desnazificação, a população de língua russa e blá-blá-blá» [o realce, por meio de traço grosso, foi acrescentado ao original, n.e.]

Arakhamia acrescentou que os “parceiros ocidentais” estavam a par das negociações e que leram os rascunhos dos documentos que foram redigidos enquanto as negociações duraram [17 ou 18 rascunhos sucessivos, segundo confidenciou Bennett na sua entrevista], mas que não tentaram substituir-se à Ucrânia tomando uma decisão por ela. O que fizeram, isso sim, foi dar conselhos, disse.

«Arakhamia: Na verdade, aconselharam-nos a não aceitar garantias de segurança efémeras [da parte dos russos — nota editorial da Ukrainska Pravda], que não poderiam de modo nenhum ser dadas nessa altura».

Mas, logo a seguir, acabou por confidenciar que, vindos de quem vêm, os conselhos desta natureza são ordens para os “Serventes do Povo”:

«Arakhamia: Além disso, quando regressámos de Istambul, Boris Johnson veio a Quieve e disse que nãoíamos assinar com eles [os russos, n.e.] coisíssima nenhuma, vamos mas é lutar contra eles» [o realce, por meio de traço grosso, foi acrescentado ao original, n.e.] [16]

E foi assim que o acordo de Istambul entre a Ucrânia e a Rússia morreu na praia. Foi esse documento que Vladimir Putin mostrou à delegação africana com quem se reuniu em 17 de Junho de 2023. O presidente russo disse nessa ocasião:

«Gostaria de chamar a vossa atenção para o facto de que, com a ajuda do Presidente Erdogan, como sabem, teve lugar na Turquia uma série de conversações entre a Rússia e a Ucrânia, a fim de elaborar tanto as medidas de reforço da confiança que mencionaram, como o texto do acordo. Não acordámos com a parte ucraniana que este tratado seria confidencial, mas também nunca o apresentámos [publicamente], nem o comentámos [publicamente]. Este projecto de acordo foi avalizado pelo chefe da equipa de negociação de Quieve [Davyd Arakhamia, n.e.]. Ele colocou nele a sua assinatura. Aqui está ela» — disse o Presidente russo, mostrando o documento à delegação africana.

De acordo com Putin, o projecto de acordo sobre a neutralidade militar permanente da Ucrânia (incluindo a componente nuclear) e as garantias de segurança da Ucrânia continha 18 artigos, com um anexo onde «tudo está especificado, desde o número de unidades de equipamento militar até ao pessoal das Forças Armadas», disse.

«Assim que a Rússia, conforme tinha prometido, retirou as suas tropas das cercanias de Quieve [num gesto de boa vontade demonstrativo do seu empenho no êxito do acordo, n.e.], a Ucrânia atirou o acordo para o caixote do lixo da história» — acrescentou Putin

(A intervenção completa de Putin nesta ocasião, com legendas em Inglês, pode ser vista e ouvida aqui).

8. As alegadas atrocidades de Bucha e o morticínio de Kramatorsk

Tendo ficado esclarecido, no essencial, o modo como o Acordo de Istambul foi torpedeado e quem o torpedeou, a recomendação de Arestovych («os historiadores terão de encontrar uma resposta para o que aconteceu» na Ucrânia entre 4 e 9 de Abril de 2022) perde grande parte da sua acuidade.

Ficam apenas por averiguar, cabalmente, os acontecimentos que muitos procuraram invocar como explicação para o Acordo de Istambul ter ido por água abaixo: os morticínios de civis em Bucha e Kramatorsk [17]. Mas já tivemos ocasião de ver que se trata de uma pseudo-explicação. Assim sendo, o que resta esclarecer a este respeito não tem que ver com o Acordo de Istambul, mas com a memória dos civis inocentes que poderão, eventualmente, ter morrido inutilmente como pretexto para tentar impedir que ele fosse celebrado. Essa é, de facto, uma tarefa para os historiadores.

Mais imediatamente, caberia a uma equipa internacional multidisciplinar de peritos forenses independentes, competentes e isentos, deslindar (A1) a identidade das vítimas do bombardeamento da estação ferroviária de Kramatorsk e (A2) a autoria do bombardeamento; (B1) a identidade das pessoas assassinadas em Bucha, (B2) quando e como foram assassinadas e porquê, e (B3) a identidade dos assassinos. 

Até lá, remeto os leitores interessados nas respostas a estas questões para a investigação que Michel Collon, com a ajuda do colectivo Test Media International, fez destes dois casos, que qualificou (juntamente com outros 48) de “exemplos de desinformação”. No seu livro, Ukraine, La guerre de Images: 50 exemples de desinformation (Investig’Action, 2023), Michel Collon analisa minuciosamente o caso de Bucha (pp. 182-219) e o caso de Kramatorsk (pp.270-273).  A sua investigação e análise corroboram as de outros autores, portugueses e estrangeiros (todos altamente habilitados pela sua formação escolar e experiência profissional para se pronunciarem sobre casos desta natureza) que tinham analisado esses casos à distância e imediatamente a seguir à sua ocorrência — especialmente o caso de Bucha, que causou uma grande comoção internacional [18].

[continua]


Notas e Referências

[12] Adam Schreck & Mstyslav Chernov, “The AP Interview: Zelenskyy seeks peace despite atrocities”. Associated Press, April 10, 2022.

[13] Michael Birnbaum & Missy Ryan, “NATO says Ukraine to decide on peace deal with Russia — within

limits”. The Washington Post, 5 April 2022.

[14] Handan Kansaci & Rabia Iclal Turan,Some NATO states want war in Ukraine to continue”. AA, 20/04/2022. Ver aqui..

[15] “Possibility of talks between Zelensky come to an halt after Johnson’s visit”. Ukrainska Pravda, 5 May 2022).

[16] A entrevista a Arakhamia pode ser vista aqui [https://www.youtube.com/watch?v=6lt4E0DiJts] para quem saiba ucraniano. Os trechos citados das declarações feitas por Arakhamia durante essa entrevista foram extraídos da transcrição feita pelo jornal ucraniano Ukrayinska Pravda na sua edição inglesa, em 24 de Novembro de 2023.

[17] Nos dias 5 e 6 de Abril de 2022, a Rússia negou a autoria destes morticínios. «Num vídeo publicado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros russo, o Ministro dos Negócios Estrangeiros Sergei Lavrov argumenta que as alegações de atrocidades russas em Bucha e noutros municípios ucranianos estão a ser fabricadas para sabotar o processo de negociação. Lavrov afirma: “Estamos inclinados a pensar que a razão é o desejo de encontrar um pretexto para interromper as negociações que estão a ser conduzidas” e afirma que a Ucrânia “tentou interromper completamente o processo de negociação” depois de os meios de comunicação social internacionais terem divulgado alegações de crimes de guerra» (“Ukraine-Russia Ceasefire Negotiations: Chapter II”. Parley Policy Initiative, May 24, 2022). [18] Refiro-me, entre outros, aos seguintes artigos: Raul Cunha, “Desinformação e perfídia, é o que temos na comunicação social” (Estátua de Sal,3/04/022);); Joe Lauria,“Questions abound About Bucha Massacre” (Consortium News, April 4, 2022); Scott Ritter, “The truth about Bucha is out there, but perhaps too inconvenient to be discovered” (RT, April 4, 2022); “Interview with Scott Ritter, by Don Bar”(YouTube, April 6, 2022, https://www.youtube.com/watch?v=kfHohl6gCJY); Jason Michael McCann, “The Bucha Massacre” (Standpoint Zero, 4 April 2022, https://standpointzero.com/2022/04/04/the-bucha-massacre/);   Jason Michael McCann, “The Anatomy of a Russian Massacre” (StandPoint Zero, 7 April 2022, https:// standpointzero.com/2022/04/07/the-anatomy-of-a-russian-massacre/);Carlos Branco, “As inteligências inúteis e as interrogações necessárias” (Público,15/04/2022); Tony Kevin, “Lies, truth, and forensics in Ukraine. The case of Bucha” (The Floutist, 16/04/2022, https://thefloutist.substack.com/p/lies-truth-and-forensics-in-ukraine); Jean Neige, “Retour sur les allégations de crimes de guerre russes en Ukraine: Boutcha (3/6)”(France Soir, 7 septembre 2022); Alexandre Guerreiro,“Valas comuns” ? Não. Fake news que nem 24h duraram” (Estátua de Sal, 16/09/2022); Scott Ritter, “Bucha, Revisited” (Scott Ritter Extra, 21 October 2022, https://www.scottritterextra.com

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