Os tiranos da paz e os democratas da guerra

(Hugo Dionísio, in Facebook, 15/05/2023)

As eleições na Turquia ensinam muito – ou deviam – sobre a percepção popular relativamente às coisas da guerra. Em geral, os povos, as massas trabalhadoras e as suas famílias, não querem guerra ou perigosas confrontações. Exceptuando as lutas pela libertação, os povos apenas querem continuar com as suas vidas em paz, procurando a previsibilidade, a estabilidade e a melhoria gradual das suas condições de vida.

Ora, hoje, aderir à estratégia dos EUA significa precisamente o contrário disto tudo. Como podemos constatar, a submissão da EU e dos países que a integram, à estratégica hegemónica dos EUA, apenas nos tem trazido a imprevisibilidade, resultante das constantes sanções que têm efeito boomerang; instabilidade, quer em relação ao estado actual e às previsões futuras para a economia, quer em relação à própria ameaça de guerra, sempre no horizonte; degradação rápida das condições de vida, traduzida numa percepção geral de que tudo está a piorar, sem que se vejam luzes ao fundo do túnel. Algum povo vota para isto?

O que é que justificou tanta propaganda contra Erdogan? O que é que justificou a sua responsabilização directa pelo sismo ocorrido no Sul do país? O que é que justificou uma cobertura mediática ocidental, sem precedentes, relativamente às eleições turcas? O que justifica tais ingerências nas eleições turcas, no fundo, é a mesma causa que justifica a ingerência nas demais eleições e os inúmeros golpes de estado – militares ou civis – “democraticamente” instaurados pelos EUA. Trata-se da integração do país – neste caso da Turquia – no quadro da relação de forças que se estabelece entre os EUA e o sul global, em especial, a Rússia, mas não só.

A preocupação dos EUA é tão grande que leva uma comentadora da CNN Portugal a dizer “era importante a Turquia ficar com uma democracia verdadeira”. Leia-se: democracia pró-ocidental, o que neste momento é muito perigoso e danoso para quem o faz. E é esta contradição que terá estado na escolha do povo turco. Em eleições com mais de 93% de participação (e depois fala a outra de “democracia verdadeira”), num país assolado pela inflação, pelos danos do terremoto, pelo autoritarismo do sultão e pela corrupção endémica do seu movimento, o que é que justificou tal votação? Mesmo os “analistas” pró-Nato parecem admiti-lo: as pessoas tiveram medo dos resultados de uma viragem da política externa do país, no sentido da confrontação com a Rússia, com a China, com a Síria, etc. Todos perceberam para onde voaria Kemal Kilicdaroglu a seguir. E rejeitaram-no.

Não fosse esse detalhe e Kemal teria ganho à primeira. Mas esse detalhe é fundamental para quem quer paz, estabilidade, previsibilidade e desenvolvimento. Mesmo não havendo “desenvolvimento”, como sucede, em parte com Erdogan, pelo menos que haja o resto. O povo turco não quis entrar em confronto com um país com o qual partilha uma fronteira marítima enorme (Mar Negro), de onde recebe energia, cereais, maquinaria, armas, investimento e cerca de 4 milhões de turistas anuais. Percebe-se e ajuda a entender o quão danosa pode ser a venda de uma Pátria aos interesses dos EUA.

Na segunda volta, prevê-se que Erdogan volte a ganhar. E a suceder, o que ganha com ele é a neutralidade da Turquia. A mesma neutralidade que Zelinsky rejeitou e contra a qual destruiu o seu país e traiu o seu povo. A Ucrânia é um exemplo muito real do que está em jogo. Em 2021, o corrupto comediante ganhou as eleições com 70% dos votos, eleições essas em que havia prometido duas coisas: fazer a paz com a Rússia e cumprir os acordos de Minsk. O povo ucraniano, ao contrário do que a propaganda ocidental diz vezes sem conta, não queria, não quer e não votou pela guerra, pelo belicismo, pela agressão ao Donbass. Votou ao contrário disso tudo, não sendo despiciendo que até às eleições, quando instado sobre o povo e cultura russas, o comediante respondia sempre: é um povo irmão, é a minha cultura, é a minha língua.

Ganhou e revelou-se. Perseguiu russos, pró-russos, russófonos, russófilos e tudo o que tinha sabor, cheiro ou cor de russo. Fechou partidos, sindicatos, confiscou propriedades, fechou igrejas, prendeu, censurou, fechou TV’s, revistas e jornais, proibiu a língua nas escolas e nos livros, bombardeou diariamente civis indefesos no Donbass e instalou nazis russófobos no poder. Tudo isto antes do malogrado dia 24/02/2022. Kyrylo Bogdanov disse para quem o quis ouvir que “continuaremos a matar russos”. Não disse militares. O chefe do GUR (a CIA ucraniana) disse “russos”. Para quê tão ódio? Em nome de quê? Quando quer matar em nome dos EUA, é ao seu povo que ele mata! Mata-o um bocado todos os dias!

Outro povo que parece não querer que lhe aconteça o que aconteceu ao ucraniano – e a tantos outros que são traídos – é o povo de Taiwan. O que justifica que, depois de tanta propaganda, o candidato da oposição ao partido do poder, apresentado como defendendo o retorno à China continental, esteja à frente das sondagens e por larga vantagem? A previsibilidade, a estabilidade, a melhoria das condições de vida e a paz. Taiwan não quer tornar-se numa versão degradada da Ucrânia.

Ainda outro exemplo em marcha é o que se passa no Paquistão. Ihmram Khan era Primeiro-ministro e mantinha a neutralidade do pais, em função dos interesses da sua Nação. A CIA operou uma golpada civil e retirou-o através da dissolução do seu governo. O povo revoltou-se em massa e os jagunços da CIA no Parlamento ficaram sem saber o que fazer. Se o deixassem em paz, ele ganharia as próximas eleições… O que fizeram então? Uma “lulada paquistanesa”. Acusação de corrupção e prisão com ele. Tudo extremamente democrático. Fosse Maduro a fazer isto…. Viu-se com o inseto Navalny o que aconteceu. Hoje, o povo revolta-se nas ruas, parte, incendeia, e com medo de perderem as eleições, já se fala de uma nova ditadura militar apoiada pelos EUA, como no passado. Aliás, a história prova que os EUA se dão muito mal com as escolhas democráticas no Paquistão – não só por lá…

O caso da Geórgia também é paradigmático. Foram buscar uma Presidente que nunca tinha lá vivido e nem a língua falava. Elegeram-na e colocaram-na no poder. No dia em que ela começou a insistir em não hostilizar a Rússia, em não atacar a Ossétia, em controlar o financiamento das ONG’s da CIA, logo deixou de ser “democrática” e colocaram-lhe um Maidan nas previsões. Perante a adesão popular às suas políticas, inclusive a reposição dos voos entre a Rússia e a Geórgia, os EUA ameaçaram com sanções. Mas como é que alguém se atreve em falar em democracia nestas situações?

Quando estes “analistas” de taberna falam em “democracia verdadeira”, deve ser uma espécie de código para “traição dos interesses do povo e da Pátria”. A verdade é que, como já provou Michael Hudson num livro seu sobre o perdão das dívidas ao longo da História, sempre que um governante perdoava as dívidas aos pobres era apelidado de “tirano” pelos ricos. Hoje, muitos dos classificados “tiranos” estão no mesmo patamar. A maioria defende interesses que os seus povos consideram fundamentais, mas que vão contra os interesses das classes dominantes, as quais, detentoras do poder económico, conseguem colar-lhes uma imagem que nem sempre corresponde à verdade.

No caso de Erdogan, não há um único elemento que o classifique como autocrata que não seja praticado pelos EUA e pelo Ocidente. Um único. Onde é que isto nos deixa relativamente à nossa “democracia verdadeira”, cujos representantes optam pelo confronto, pela guerra e pela degradação das condições de vida?

Só para dar um exemplo dos danos para a Ucrânia que esta traição fatal provoca, veja-se o caso das munições de Urânio empobrecido. Há uns tempos escrevi sobre isto, referindo um parecer jurídico internacional que apontava para os efeitos que tais munições têm em matéria ambiental. As gentes neoliberais fartaram-se de rir. Ontem na Ucrânia ocidental (Khmelnitsky e Ternopyl), dois depósitos enormes com armas vindas do ocidente foram bombardeados pelas forças russas. Nesses depósitos encontravam-se quantidades enormes de munições de urânio empobrecido. Hoje, há milhares de pessoas a abandonar a região, os fogos são apagados com ajuda de drones e existem equipas de técnicos equipados com dosímetros para medição e radiação, por toda a região. Ainda de manhã, foram divulgados os dados dos níveis de radiação da região, e verifica-se um pico acentuado nos níveis. Eis o resultado do uso destas munições.

Agora, como é cientificamente sabido, aumentarão os casos de cancro nesses locais, tal como sucedeu na Jugoslávia, Sérvia, Iraque e nos soldados americanos e ingleses. O objectivo era envenenar o Donbass…  Eis um exemplo real do que significa, hoje, estar do lado da destruição, da guerra, do terror e da ameaça…

O mais grave é que esta luta pela “democracia verdadeira”, em que só os mais ricos vêem melhorada a sua condição, não cria apenas dificuldades aos que estão do lado de lá… Somos nós todos que sofremos com ela.

Vítimas da degradação da sua consciência de classe e do ataque às suas organizações de massas, os povos ocidentais encontram-se encarcerados entre: o autoritarismo soberanista de gente como Erdogan ou Orban, os quais estando longe de garantir o progresso e desenvolvimento social, tem garantido, pelo menos, a adesão a uma política externa mais neutral e pacífica, em nome, especialmente, dos seus e dos negócios de quem os apoia; e a farsa “democrática” dos EUA, nas mãos de uma reduzida oligarquia, que associa as mais insidiosas práticas de ingerência, vigilância, assédio e subversão dos interesses dos povos, a um discurso superficial pró-ambiental (para os jovens), e à desconstrução dos laços sociais tradicionais no plano dos costumes. Nem uma nem outra conjugam o essencial: a paz e o desenvolvimento das condições de vida!

É razão para perguntar, “mas de que democracia verdadeira estão a falar”?

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19 pensamentos sobre “Os tiranos da paz e os democratas da guerra

  1. Hoje tb em Portugal existe um “cancelamento” que reduz a Cidadania do genero ou estás connosco ou contra aquilo que é a “verdade oficiosa” “vomitada” ad nauseam pelas pregadoras e pregadores dasTVs ao serviço “canino” da Voz do dono…….

  2. Embora apreciando o texto de Hugo Dionísio que, além do mais, é riquíssimo do ponto de vista informativo, pois transmite conhecimentos factuais que a comunicação main stream surripia, gostaria de chamar a atenção para o que me parece ser uma visão idílica do povo, do ‘bom povo trabalhador’; penso que este pode não querer a guerra, mas, se devidamente estimulado, é facilmente convencido a dar a sua adesão, e acho que é importante não perderemos isto de vista e não nos iludirmos porque as ilusões viciam a análise do processo histórico.

    • É um facto comprovado ao longo da História. Utilizando as habituais ferramentas do medo e ódio ( que interagem ) e da desumanização do “outro” ( seja o “inimigo” externo ou interno ), as lideranças lá vão sempre conseguindo colocar a carneirada a entrar entusiasticamente em guerras nas quais são inevitavelmente as “ovelhas” quem mais sofre, morrendo e matando por essas “elites” que, como sempre, aproveitam para enriquecer mais um pouco à conta do sangue do povinho, que vai sempre caindo nas armadilhas do “patriotismo”, dos “bons contra os maus”, do “deus está connosco” e outras patranhas similares. Ao longo dos milénios o padrão têm-se mantido e a receita não falha, pelo que podemos tirar a ilação de que o “bom povo”, colectivamente, é, no essencial, estúpido e manipulável, sempre pronto a colocar no poder ( ou permitir que o usurpem ) os piores aldrabões e psicopatas de cada sociedade. Tem sido assim,infelizmente, ao longo dos milénios, e não será, infelizmente, diferente na actualidade.

  3. Mais um excelente artigo de Hugo Dionísio que como sempre põe os pontos no “is”. E deve continuar a fazê-lo porque é importante que a maioria dos dorminhocos deste país que ainda defendem uma democracia coboiesca acordem com as sacudidelas que vão levando ininterruptamente de personalidades com o sentido das responsabilidade como Hugo Dionísio e outros tantos.

  4. Os EUA sempre aparecem como o papão-mor; tudo o mais é carneirada sem julgamento ou acção própria.
    O Erdogam está há 20 anos no poder e é tudo menos hesitante em exercer o poder. Quem há-de ser responsabilizado pelo que ocorra na Turquia?

    Tudo sempre e só ao serviço dos russos:
    – que entendem ser nação dentro de nações organizadas como Estado.
    – que fazem da etnicidade o critério de definição de fronteiras, sendo russos; de outro modo há que federar!
    – que se proclamam o pináculo da civilização aspergindo água-benta ortodoxa, corrupção oligárquica e violência policial e política.
    – agressão militar e assassínio como instrumentos de política, em uso continuado e crescente.
    – e império, com um policiote arvorado em czar, e os novos boiardos pelo discurso do poder e da ameaça.
    Órfãos soviéticos como tantos outros!

    • «Un sistema de misiles tierra-aire Patriot de fabricación estadounidense fue alcanzado por un misil hipersónico de alta precisión Kinzhal en Kiev»

      lá foi o paiol das munições de uranio empobrecido e o jg+++ ficou com uma colossal dor de c*, perdão, de dentes 🎯☢☢☢

    • O seu texto deveria ser :

      -As nações organizadas como Estado, como Iraque, Líbia, Jugoslávia,e outros, desaparecem como estados e nações, graças as direitos de ingerência e aos “regimes change” financiados, organizados pelos EUA.
      -Verdade seja dita que “a etnicidade como critério de definição de fronteiras” desde o genocídio dos Índios e a expansão para lá do Rio Grande, à custa dos Latinos, se fez à ponta das espadas dos Federados… E depois veio Monroe :” A América aos americanos…”
      – O pináculo da civilização aspergindo supremacismo nazi, corrupção oligárquica e violência policial e política, com assassinatos de presidentes, lideres religiosos, e milhares de Negros em cada esquina da Federação…
      – Agressão militar e assassínio, embargos e bloqueios, golpes de estado e destruição de nações inteiras, milhões de mortos no cadastro, desde a fundação do império, guerras sem fim como instrumentos de política, em uso continuado e crescente. Que pais esta em guerra desde 1945? – Putin policiote? Por acaso sabe que Bush Sénior tinha a mesma função antes de ser presidente? A CIA,conhece?
      – Ameaça? Biden não ameaça! Biden dinamita um gasoduto essencial para a EU, como um vulgar bandido do Farwest. Com que direito?
      – A orfandade encontra-se nas cidades e vilas destruídas do Afeganistão, do Iraque, da Síria, da Líbia, da Jugoslávia, da Somália e tantas outras..

        • Enquanto isso aproveita e devolve a palavra “Algarve” (Al-Gharb) aos Mouros, assim como as técnicas náuticas e os respectivos instrumentos que te permitiram navegar ao longo da costa africana e chegar à Índia…

          Xenofobia e ignorância no seu pináculo máximo.

          Só há uma Humanidade, mas isso não imaginas tu o que seja…

      • Já que Washington colocou em pauta as crianças, ao classificar como “justificado” o ‘mandado de prisão’ contra o presidente Putin do Tribunal da Otan travestido de ‘TPI’, sobre suposto ‘rapto de crianças ucranianas’ – na verdade, a evacuação de civis de uma zona de guerra -, é oportuno reproduzir a célebre confissão da então secretária de Estado do governo Clinton, Madeleine Albright, de que “valeu a pena” ter matado “500 mil crianças iraquianas” de até cinco anos com o bloqueio dos EUA ao Iraque (lembro + esta)

  5. Eu cá por mim, desfilosoficamente falando, acho que se deveria aspergir (gosto mais da palavra, tem mais cagança, em vez de borrifar) as pessoas, mas era com água-de-colónia «Lavanda», em vez de água-benta, de forma a tornar o mundo mais bem cheiroso e menos com cheiro a ranço!

  6. À atenção do autor do texto, caso leia isto: segundo algumas fontes (que não me parecem de todo pró ucranianas ), parece não haver relação entre a tal explosão de paiol e a cena das radiações.

    • “Su destrucción ha provocado que una nube radiactiva se dirija hacia Europa Occidental. Y ya se ha detectado un aumento de la radiación en Polonia”…

  7. Excelente o artigo de Hugo Dionísio escrito com uma clareza impressionante ajudou-me a perceber situações que estavam nubladas e ficar informada sobre coisas que eu desconhecia e nunca esquecerei sobre um mundo tenebroso que acredito não melhorará antes pelo contrário.

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