(Por Francisco Fortunato, in Facebook, 03/01/2023)

(Publico este texto que é um notável testemunho do que acontecia a muitos jovens antes do 25 de Abril de 1974. Para que se valorize a Liberdade que os mais novos acham natural e normal, mas que só foi conquistada devido ao empenho e sacrifício da própria vida de muitos resistentes e combatentes ao Estado Novo.
Estátua de Sal, 05/01/2023)
Faz hoje 50 anos que iniciei o meu “salto” para a Bélgica. Fica aqui o meu testemunho que poderá ter alguns erros de pouca monta. É todo feito de memórias.
Na noite de 3 para 4, com o meu amigo Reis, operário na Lisnave, tal como eu, dei início ao salto para a democracia. Tinha sido preso na igreja do Rato, na vigília pela Paz, onde tinha ido por indicação do Manuel Arons de Carvalho, recentemente falecido, e aproveitei a confusão reinante na esquadra do Rato, na identificação dos detidos, para sair com o primeiro grupo de libertados. No entanto, no dia 2, pela manhã, a PIDE estava à minha procura na casa da minha mãe. Obviamente já lá não estava, mas deixaram uma notificação de comparência para me apresentar, no dia seguinte, no ministério do Interior. Notificação que a minha mãe me fez chegar às mãos e que seria de grande valia para obter rapidamente asilo político na Bélgica.
O Reis dizia-me que conhecia bem a fronteira no Caia, mas a noite e o frio (nesse tempo o inverno era mesmo frio) logo mostraram que tínhamos de a conhecer melhor para a passar. Demorou, por aí, umas 6 horas até chegarmos à central de camionagem de Badajoz, onde apanhámos um autocarro para Madrid.
A certa altura do percurso a “guardia civil” entrou no autocarro e foi olhando para os passageiros, nós fingimos dormitar e não nos pediram documentos. Chegados a Madrid apanhámos o comboio para Valência, porque tinha tios a viver em Cuart de Poblet.
Chegados a Cuart de Poblet, de táxi, os meus tios, sem eu saber, estavam a viver, temporariamente, em Vendrell, próximo de Tarragona, segundo um vizinho que nos deu a morada ou o telefone. Regressámos a Valência e apanhámos o comboio para Barcelona.
Lá saímos em Vendrell, manhã cedinho, e fomos à procura da casa dos meus tios. Aí chegados dormimos pela primeira vez em mais de 50 horas e também comemos. No dia seguinte, pelas 5h da manhã, o meu primo Fernando foi levar-nos, no seu carro, à fronteira com a França. Entretanto, pelas 7h da manhã, a “guardia civil” estava em casa dos meus tios para identificar os dois “forasteros” que tinham sido vistos a passear pelo “pueblo”.
O meu primo deixou-nos próximos da fronteira de La Junquera e lá fomos atravessar, a pé, os Pirenéus, em janeiro, com frio, muito frio, alguma neve, e sem conhecermos patavina de nada. Demorámos umas 8 horas e quando começámos a descer vimos uma pequena povoação mas não tínhamos a certeza se já estávamos, ou não, em França. Era, salvo erro, Le Perthus, mas só o confirmámos quando passou um autocarro com a direcção de Perpignan. Fizemos sinal para parar e parou para surpresa nossa. Logo de seguida apanhámos um susto quando a “gendarmarie” faz parar o autocarro e entrou a fazer controlo de documentos a alguns não a todos. A sorte continuou connosco pois nada nos pediram.
Chegados a Perpignan, já noite avançada, apanhámos o comboio para Paris onde chegámos ao romper do dia. Era um mundo novo, extasiados passeámos por Paris, nem o cansaço, nem as emoções nos venceram. Nunca tínhamos convivido com a democracia, a nossa vida tinha sido sempre no fascismo. Ficámos durante 2 dias, hospedados no hotel “Saint Pierre”, na rua Ecole de Medicine.
No dia da chegado a Paris jantámos com Mário Soares na sua casa, o seu filho, João, tinha-me dado o contacto e, no dia seguinte, almoçámos com o historiador Joaquim Barradas de Carvalho, também exilado em França, por indicação do seu filho Manuel Arons. Após isto fiquei, durante alguns dias, em casa de um sobrinho de Mário Soares, Mário Barroso, o realizador de cinema, por indicação do tio. Entretanto o meu amigo Reis regressava para sul e ficaria algum tempo a trabalhar clandestinamente nuns estaleiros em Pasaia, próximo de San Sebastian.
Fiz então uma tentativa, mal sucedida, de ir para Bruxelas, fui apanhado, no comboio, pela polícia de fronteira e recambiado para trás. Levava um passaporte manhoso válido apenas para o regresso a Portugal e o polícia, era casado com uma portuguesa, lia alguma coisa de português e percebeu facilmente a marosca. Na fronteira mais fácil sou assim apanhado, mas fiquei a saber quando conduzido ao posto de polícia, em Maubeuge, que havia um mandado de captura na Interpol, a pedido das autoridades portuguesas, que a polícia francesa ignorou após breve interrogatório. Alguns dias mais tarde passaria então a fronteira para a Bélgica com um novo passaporte, menos manhoso, e nem sequer foi pedido.
Cheguei a Bruxelas, lá pelo dia 20, onde fui acolhido pelos meus afilhados de casamento, o Álvaro e a Ana. Passado uma semana já estava a trabalhar como soldador, razoavelmente bem pago, e reconhecido oficialmente como “refugiado político de origem portuguesa”. Regressaria a Portugal no dia 07 de Maio de 1974!
Notas:
Pelo meio a minha mãe foi duas vezes chamada à PIDE para dizer onde eu estava. Coitada, ela nada sabia, só quando cheguei a Bruxelas o soube. Quando da minha passagem por Vendrell, a minha tia Arlete fez o que eu lhe tinha pedido para nunca fazer: telefonou mal eu saí, para tranquilizar a minha mãe, mas a chamada foi intercetada pela PIDE o que deu início aos problemas que viria a ter com a polícia política.
Isto de ser operário e metido em política, a polícia política não perdoava: era-se logo identificado como comunista e crime mais grave não havia…
Para o meu amigo e compadre Reis um grande abraço, sem o seu apoio teria sido tudo ainda mais difícil!
Há algum tempo atrás, na EMEF/CP, encontrei alguns jovens operários a dizerem bem do Chega. Como é possível?
Tudo tão simples, mas, ao mesmo tempo, tudo tão claro.
* Nas democracias modernas uma parcela importante do eleitorado não tem tanto interesse por política e não tem coerência ideológica alguma.
Oscilam a cada eleição, votando de acordo com fatores circunstanciais, sejam relativos às qualidades pessoais do candidato ou ao chamado voto económico, quando eleitores tendem a votar ‘pela mudança’ *
Como é possível?
É. Se analisar o que a “esquerda” fez desde 1974. Aí terá a resposta. No que toca ao ‘seu’ socialismo, foi metido na gaveta pelo seu saudoso amigo. Quem defende os trabalhadores hoje? O Chega não será, e não o é, porque a direita em Portugal não é Direita, é um bando de saudositas salazarentos. Se ao menos fossem salazaristas, ainda vá que não vá. Mas esta escumalha em vez de se baterem pela Independência Nacional, batem-se por mais repressão policial sobre dois grupos na sociedade portuguesa, pretos e ciganos. Se até o ‘seu’ PS é apoiantes ferveroso dos nazis ucranianos, não vejo onde estão as suas duvídas.
A minha experiência está muito longe das agruras políticas sofridas pelo autor do texto. Nos anos 60 (quase uma década antes dele, sou um bocado mais sénior) a minha consciência política (mesmo que tendendo já para o que é hoje) era ainda rudimentar. A minha “cena” era mais a do aventureiro voluntarioso mas tosco com fome de mundo. Partilho com ele, porém, o choque do contraste súbito entre a atmosfera sufocante do Portugal de meados de 60 e as sociedades livres e abertas dos países europeus de então.
Há uns dez ou doze anos, uma das luminárias arrogantes mas intelectualmente limitadas que a fina-flor da Tugalândia produz em quantidade demasiado elevada para o meu gosto (de sua graça Francisco Van Zeller) pronunciou-se sobre o contraste entre a emigração portuguesa actual, reconhecidamente qualificada e que o envaidece, e a das anteriores vagas de desprovidos que, à custa de muito moirejar, só lá fora ganhavam o direito a um futuro minimamente digno desse nome. Bolçou o desgraçado mais ou menos o seguinte: “É conhecida a especial boçalidade e atraso dos emigrantes portugueses” [dos anos 60 e 70]. E acrescentou: “Portugal [já] não é aquilo.” Não lhe ocorreu que o contraste se devia ao atraso económico, social e político da responsabilidade do regime político de que ele e famílias como a dele eram beneficiários.
A vómito do senhorito originou uma “discussão” no defunto blogue Jugular, onde despejei o que segue:
“Em 1965 saí de Portugal pela primeira vez, à boleia, com o meu amigo José Manuel. Queríamos chegar à Suécia, mas o pouco dinheirinho acabou-se em Hamburgo, onde trabalhámos um mês numa fábrica de tubos de aço até termos dinheiro para iniciar o regresso a Portugal. E digo iniciar porque para mais não chegou o pilim, que se acabou de novo ainda em França.
Posso falar com conhecimento de causa da “especial boçalidade e atraso” dos emigrantes portugueses de então, que sentimos na pele e (felizmente) no estômago. As bandeirinhas portuguesas que tínhamos cosido nas mochilas valeram-nos inúmeras boleias dessa gente atrasada e boçal, que nos convidava para casas onde se acumulavam aos quatro, cinco e seis no mesmo quarto, uns por cima dos outros, em beliches onde recuperavam de um dia de trabalho. Nesses antros de boçalidade e atraso “inventavam” cozinhados com sabor a casa, com ingredientes milagrosamente desencantados sabe-se lá onde, que insistiam em partilhar connosco, matando-nos a (muita) fominha. Tudo isto, e não é de mais insistir, sempre com “especial boçalidade e atraso”.
É claro que o senhorito Van Zeller disso sabe mesmo é nada, pois viajou provavelmente sempre de avião, com bilhete de primeira classe pago pelos paizinhos, o que o poupou a um confrangedor convívio com a ralé. No máximo dos máximos, fez alguma perigosa incursão de Inter Rail, de cu tremido por esses carris fora, para um dia ter uma aventura para contar aos netos.
Confesso-vos uma coisa: eu, que detesto cozido à portuguesa, vi-me à rasca para conter as lágrimas quando, de uma dessas vezes, mo serviram como se príncipe eu fosse. Porque foi privilegiado como um príncipe que me senti, por ser nossa aquela gente e por sermos para aquela gente mais dois dos seus.
Se “aquilo” é coisa que envergonha o senhor Van Zeller, por certo orgulhoso do estrangeirento apelido que o diferencia de tão ínfima gente, pois a única coisa que posso dizer (e desde já pardon my French) é que quero que o senhor Van Zeller se foda!”
https://jugular.blogs.sapo.pt/3217839.html
Excelente comentário!
“O vómito do senhorito” e não “A vómito do senhorito”, claro.