(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 25/11/2022)

Confesso que depois de várias vezes me ter indignado e escrito acerca da vergonha da nossa “moderna agricultura” intensiva, sustentada com mão-de-obra intensiva importada e explorada por máfias nacionais e estrangeiras e sofregamente aproveitada nas tais modernas explorações agrícolas, já não esperava que nada mudasse algum dia e que algum assomo de escrúpulos ou de pudor viesse perturbar o negócio. Das estufas de frutos vermelhos do litoral alentejano aos olivais e amendoais a perder de vista da região do Alqueva, há todo um mundo de donos de terrenos a servirem-se dessa mão-de-obra subcontratada, de proprietários de pardieiros a alugá-los como habitações aos desgraçados que atravessaram por vezes meio mundo para virem aqui ser explorados como novos escravos, submetidos a uma lei da kafala por máfias organizadas e actuando à luz do dia.
Agora, que tanto falamos do Catar, é ainda mais extraordinário que tenhamos passado tantos anos a fingir que não víamos o Catar entre nós. Só porque a escala é diferente não erguemos um Mundial de futebol e não gastámos 220 mil milhões de euros sobre as vidas perdidas dos nossos imigrantes.

E porque tantas vezes escrevi, indignado, sobre isto, agora venho saudar o que parece ser o fim da inércia e da impunidade. A imensa operação lançada pela PJ na madrugada de quarta-feira no Alentejo, visando uma das redes mafiosas, pode ser o princípio do fim do desmantelamento do nosso Catar escondido e o restabelecimento do Estado de direito em grande parte do sector agrícola. Foram feitas 35 prisões sob suspeitas dos crimes de tráfico de seres humanos, branqueamento de capitais e evasão fiscal, numa investigação que presumo não ser fácil e onde a obtenção de prova é dificultada pelo silêncio das vítimas, receosas de represálias sobre elas e as suas famílias nos países de origem. Agora é preciso que as inevitáveis pressões dos beneficiários da situação ou a brandura da justiça não venham conseguir deitar por terra este primeiro passo para pôr termo a uma situação que é uma vergonha para o país. E que esta investida das autoridades sirva de aviso para os proprietários que aceitam mão-de-obra subcontratada a empresas de fachada que sabem não garantir quaisquer direitos laborais aos trabalhadores.
2 Porque as duas primeiras razões invocadas por Marcelo para o seu passeio ao Catar não colheram — o “interesse nacional” e o “apoio à selecção” —, o Presidente viu-se forçado a ensaiar uma terceira: “a defesa dos direitos humanos”. Não sei qual das três razões é mais ridícula, qual é mais rebuscada, qual a que nos pretende tomar mais por tolinhos. O interesse nacional é aquilo que uma maioria clara de cidadãos sente consensualmente como tal, e não aquilo que um Presidente invoca como interpretação privilegiada da sua parte. Só é assim nas autocracias terceiro-mundistas, e mesmo aí às vezes há alguma contenção: neste Mundial e até à data, o nosso é o único Presidente que foi ao Catar. Ridículo mesmo é o argumento do apoio à selecção, como se esta não conseguisse jogar bem sem vislumbrar, lá no alto da tribuna de honra dos estádios, alguma das mais altas figuras da nação: no caso de Augusto Santos Silva, duvido mesmo que algum dos jogadores saiba até da sua existência. Resta então a oportunidade dos direitos humanos. Afinal, Marcelo tinha tudo planeado: ir ao Catar para dar in loco uma lição de direitos humanos. Se isso fosse verdade, seria de uma enorme indelicadeza diplomática. Mas não é verdade: Marcelo, segundo o próprio, terá aproveitado uma palestra sobre educação na Fundação Aga Khan para falar sobre direitos humanos, que, como se sabe, “têm tudo a ver com educação”. Umas dezenas de pessoas talvez assistam à palestra, e presume-se que a imprensa local e os jornalistas internacionais presentes no Mundial certamente não deixarão de fazer disso o acontecimento do dia, e assim a viagem estará safa. O Falcon pode continuar a ir e vir até Doha e, depois, como diz o Presidente, “vamos esquecer isso”. Vamos esquecer isso, vamos esquecer as visitas humilhantes a Bolsonaro, ao narco-Estado da Guiné-Bissau, os suplicados 15 minutos com Donald Trump para falar de Ronaldo (“um instrumento essencial da nossa política externa”) ou o desgaste de conviver de manhã à noite com um Presidente que não nos dá um minuto de tréguas e que fala mais depressa do que consegue reflectir e viaja mais do que consegue ver.

Mas quando penso para além de Marcelo e, sobretudo, quando penso nos putativos sucessores que a imprensa nos quer impingir — Marques Mendes, Durão Barroso e por aí fora —, eu que, ao contrário de Marcelo, nunca senti qualquer pulsão monárquica se não fosse por esse “detalhe” de não podermos eleger nem despedir o Rei, até ficaria a pensar duas vezes. É que hoje em dia é bem mais fácil ter mão num Rei constitucional do que num Presidente eleito com tentações majestáticas. O infeliz Carlos III de Inglaterra, por exemplo, que toda a vida foi ambientalista, bem quis ir à COP27 no Egipto, mas a ex-PM Liz Truss, “a Breve”, disse-lhe simplesmente: “Nem pensar, só lá ia atrapalhar.” E Sua Majestade ficou em terra.
3 Outro ex-PM inglês, Boris Johnson, esteve esta semana em Lisboa para falar no jantar comemorativo do 1º aniversário desse projecto de sucesso que é a CNN Portugal. É uma bela vida, esta dos outrora grandes do mundo, que, uma vez retirados, andam por aí, pagos a peso de ouro, fazendo-se escutar como oráculos de sabedoria. Porém, se me é permitida a ousadia, em Lisboa Boris Johnson não esteve à altura do acontecimento que era suposto abrilhantar. Ele, que foi talvez o principal artífice do ‘Brexit’ — cujos desastrosos resultados económicos para os ingleses começam agora a ficar à vista —, escolheu fugir do tema e concentrar-se apenas na guerra da Ucrânia. E, sobre isso, não foi além de generalidades e banalidades de todos sabidas, oferecendo à audiência um banal panfleto anti-Rússia, com a conclusão de que não há lugar a quaisquer negociações de paz e a única opção para a guerra é a derrota total de Putin, através do continuado fornecimento de armamento à Ucrânia até à vitória. Ele, que foi um biógrafo de Churchill, cujo estilo sempre quis copiar, encostou-se, desde o início da guerra e por razões de política interna, à figura de Zelensky, que apresentou ao mundo como o Churchill do nosso tempo. Na sua palestra, aliás, não resistiu a recordar a visita que fez a Kiev, para insinuar a coragem que ele e Zelensky demonstraram em exporem-se a eventuais disparos de snipers russos eventualmente emboscados nos telhados da cidade (os quais nunca existiram para além da sua imaginação). Uma fraca comparação com o seu biografado: Churchill, o verdadeiro, percorreu durante a guerra mais de 220 mil quilómetros em navios e aviões de guerra, navegando e voando sobre território inimigo em circunstâncias verdadeiramente aventurosas e visitando várias vezes a frente de batalha em África ou na Normandia. Mas Churchill, que combatia contra Hitler, que não era propriamente Putin, e que tinha de se entender com Estaline, que também não era exactamente Putin, chegou ao desespero por não conseguir convencer os polacos a aceitarem um acordo com os russos e exigirem antes que a Inglaterra os apoiasse militarmente nas suas exigências absolutas. A história conta que, no final, Estaline não cumpriria nenhuma das promessas feitas a Churchill e acabaria por engolir toda a Polónia de forma maquiavélica, mas ficou por se saber se poderia ter sido diferente se o Governo polaco no exílio tivesse aceitado o acordo que Churchill e Estaline lhe propuseram antes. Acontece que as vitórias totais apregoadas em palestras são sempre infinitamente mais fáceis do que as vitórias possíveis arrancadas no campo de batalha.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
E se, em vez dum Mundial de Futebol entre seleções de gente milionária, procurando através dele um aumento de cotação e, assim, mais milionária, ainda, se tornar, houvesse uma espécie de Mundial de Futebol do INATEL entre seleções de pessoal do mundo do trabalho, jogando pelo simples prazer de jogar e verdadeiro amor à camisola? Talvez fosse mais puro e, consequentemente, mais bonito! Ou não?