A Liberdade do Herman

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 31/10/2022)

Escrevi sobre a genialidade de Herman José, (ver aqui), e referi um extraordinário sketch em que ele desmonta a farsa dos comentadores de televisão e da manipulação que está a ser produzida sobre a guerra da Ucrânia. Esses “nacos informativos” são atentados reais à liberdade dos cidadãos, na medida em que foi instaurada a censura e sobre duas formas, uma, direta, proibindo a informação de uma das partes envolvidas, e outra, mais perversa, através da imposição do pensamento único, do silêncio, da intimidação dos que não seguem a verdade oficial.

O texto provocou, felizmente, vários comentários, alguns deles sobre a curta lista de génios que eu estabeleci para mim, acrescentando outros, casos de Almada Negreiros, Paredes, Siza Vieira, Saramago, Eça. Tenho por todos os nomeados admiração, mas Herman é, para mim, diferente, não só porque ele abriu novos caminhos, deu novas expressões à arte de representar, mas fundamentalmente porque penetrou em camadas da sociedade mais resistentes à mudança, aos de muita baixa literacia, de pouca instrução escolar, aos integristas religiosos, tanto quanto no grupo dos mais privilegiados e convencidos. Ele rompeu a muralha construída ao longo de séculos de obscurantismo religioso, cultural, de violência política, de hierarquias sociais, de ideias feitas sobre a epopeia portuguesa. Ele, sozinho e com a sua equipa, foi o Monty Python da sociedade portuguesa, sendo certo que esta não é dotada do sentido de humor e de autocrítica da inglesa e os ingleses têm uma longa tradição de produção teatral que não se resume a Shakespeare.

Herman conseguiu com o seu génio e com o seu prestígio abrir uma fenda nas muralhas do conservadorismo de antigo regime em que Portugal vivia (e em parte vive) e abrir a sociedade à liberdade de questionar os tabus. Reveja-se o Herman Enciclopédia.

Essa subversão que Herman promoveu é hoje inaceitável pelos poderes instituídos. Essa subversão é e está a ser sufocada pela mediocridade acrítica e até quase pornográfica de programas do tipo Big Brother, de telenovelas de enredo de cordel e de muita bola, de informação formatada pelas agências de comunicação e pelos lóbis dos negócios e das corporações.

Dirão os crentes e adeptos do pensamento único: existe pluralidade de informação, pois em Portugal estão no ar três estações de TV, cada uma com vários canais e todos os portugueses podem escolher. É um sofisma primário. Como dizer que uma centopeia pelo facto de ter cem patas tem uma maior opção de escolha do que uma galinha, que só tem duas. Na realidade o que se verifica é que estamos caídos na velha expressão de democracia de Henry Ford quando lançou o Ford T: os clientes são livres de escolher a cor, desde que seja preto. Os mesmos fornecedores de doutrina, como os antigos caixeiros viajantes, circulam com a mesma mercadoria entre jornais, rádios e televisões.

Um pouco de história. A SIC, a primeira estação privada, começou a emitir em 1992, pertencia e pertence ao grupo Impresa, do milionário Francisco Balsemão, proprietário do Expresso, o semanário mais influente na sociedade portuguesa. O seu primeiro diretor foi Emídio Rangel, um jornalista da liberdade e da responsabilidade. A TVI começou em 1993, propriedade da Igreja Católica através da União das Misericórdias e de outros acionistas a ela ligados.

Os grandes momentos de Herman José na televisão, de pluralidade e crítica politica e social, decorreram até ao ano de 1997, na RTP, com a «Herman Enciclopédia». Pelo meio decorreu uma polémica de tentativa de imposição de censura a propósito de episódio sobre a Última Ceia, que Joaquim Furtado repeliu.

Talvez seja coincidência, mas em 1997 a Media Capital, do milionário Pais do Amaral, torna-se acionista de referência da TVI, que passara da Igreja para um grupo colombiano e mais tarde para a Prisa, o grupo espanhol que entra no capital. A TVI passa a ser uma estação populista — isto é, defensora de um regime de lucros e poderes oligárquicos nacionais e internacionais, sob a capa de uma grande liberalidade de costumes e de cultura de massas. O típico truque de colocar uma pin-up na capa e defender os lucros dos grandes grupos e a hierarquia de classes dos tabloides ingleses. Emídio Rangel saiu da SIC em 2001, em conflito com Balsemão, que queria transformar a estação num instrumento de domínio político com audiências populares através do pograma de intimidades Big Brother, que foi transformado em santo milagreiro da TVI.

Na atualidade, no novo espetro de aparente diversidade da oferta, as televisões venderam e vendem todas o mesmo produto ideológico — de que as longas temporadas de comentário político conservador a cargo de Marcelo Rebelo de Sousa e Marques Mendes, ou de Paulo Portas e a avassaladora presença do futebol são prova. A política reduzida aos golpes baixos, ao boato e à calhandrice e muita bola!

Desta “ordem unida”, e desta barreira contra a critica e a verdadeira pluralidade, escapava o programa Contra-Informação, um formato derivado dos Spitting Image da ITV britânica e no Guignols de l’info do Canal+ francês, mas que não resistiram à uniformização e ao respeitinho que é muito bonito do cavaquismo e terminou em 2010.

Herman foi deixado à sua sorte, isto é, os poderes empurraram-no subtilmente para as margens, negando os meios para os programas que ele poderia fazer e substituindo-os por “coisas” de baixo custo e baixa qualidade, até quase desaparecer, remetido ao circuito de festas e romarias pela província. A versão neoliberal da democracia não o tolera. Ao Herman José, os patrões das televisões preferem uns animadores esforçados que esbracejam e gritam em cima de palcos improvisados acompanhados por umas moças de carnes exuberantes.

Esta escolha das Tvs e dos seus espetadores não é a bem do povo, não é dar ao povo o que o povo quer ver e ouvir (quis ver e ouvir Herman), mas é sim um revelador da decadência da nossa exigência democrática, da aceitação passiva do apodrecimento cultural em que vivemos resignadamente. Revela que estamos como o burro da frase de velha sabedoria: comemos palha, basta que no-la saibam dar. E «eles» sabem! E sabem que programas como os de Herman lhes dificultavam a tarefa.


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4 pensamentos sobre “A Liberdade do Herman

  1. Sejamos sérios,hoje ninguém vê o Herman, ninguém é educado vendo televisão .

    É verdade. É provável que aqueles que vêem (um pouco) sejam também aqueles que conseguem desligar a televisão e, antes disso, escolher seriamente o seu programa, ou seja, ver o canal parlamentar ou outro canal que lhes interessa para um programa que escolheram especificamente e, por conseguinte, não farão zapping!

    Sabendo também que a cultura e o entretenimento não são necessariamente a mesma coisa. Saber, portanto, o que se quer fazer e fazê-lo conscientemente (optar por ficar mudo em frente à televisão) evita ficar mudo, porque se está consciente e compreende-se (sente-se) rapidamente que se deve desligar o aparelho.

    E a cultura? Talvez seja também um trabalho para se cultivar: tem de se colocar em perspectiva o que já se sabe, para se poder questionar ..

    Caso contrário, sim, para a grande massa de telespectadores, a televisão é um instrumento para se deixar abafar… embora – apesar do seu grande conformismo – o noticiário da noite seja também uma forma de os solitários que o assistem se sentirem ligados à comunidade nacional.

    Por este artigo cheio de verdades, concordo plenamente com o que se diz.

    Mas a falta de televisão deixou-me com um problema que demorei algum tempo a resolver, o da falta de informação fiável.
    Finalmente encontrei na Internet alguma informação gratuita, Vou deixá-los descobrir, é desigual, mas ainda há pessoas que fazem um trabalho muito bom. Também leio blogues como o seu. Nem sempre concordo, como muitas vezes não concordam comigo , mas isso faz-me continuar com as reflexões que recebo de outras formas de ler e “refletir” o que se passa à minha volta. Ficar bem sem TV..

    A televisão foi óptima nos seus primórdios porque era mágico ver as imagens moverem-se como se estivessem lá. Lembro-me de me reunir com os vizinhos para ver televisão ao domingo à tarde com os programas de júlio Isidro a falar dos Dire Straits, e Antonio Variações e foi uma altura de pura felicidade.

    Agora, esta televisão tornou-se num hodgepodge de lixo a um nível sem precedentes apresentado por velhos e não tão velhos que não estão agarrados a um programa, mas a um cofre. O nível dos espectáculos é tal que tornaria estúpidos os mais inteligentes de nós.
    Os reality shows são de tal mediocridade e vulgaridade que é melhor ir nadar para o mar mesmo com água gelada . E pensar que são os nossos impostos que são utilizados para financiar este lixo.
    Política e futebol 24 horas por dia com politicos e dirigentes de futebol a chafurdarem nas suas cadeiras a darem “espectáculos idiotas”, é certo que o país está no bom caminho para elevar o nível.

    Os responsáveis pelos actuais meios de comunicação (e publicidade) começaram por transformar o cidadão num consumidor. Agora estão a aplicar o segundo passo, que é transformar o consumidor num idiota!

    Sim, a televisão é uma caixa para fazer idiotas (já dito e reiterado). A televisão continua a ser o brinquedo do “grande” para enfraquecer o “pequeno”. E funciona.
    A televisão é como a fast food, rapidamente feita, rapidamente comida… Não há necessidade de ir procurar informação, é servida num “prato”. É servido num prato, comido, claro, de acordo com os interesses do momento.

    Também temos a realidade virtual é um tipo de droga legal que desliga ainda mais o homem do mundo real. De facto, a realidade virtual é um produto tecnológico artificial… enquanto o álcool, o ópio, o haxixe, os cogumelos alucinógenos e outras “ervas” são, pelo menos, da Mãe Natureza.
    Os drogados humanos 2.0 estarão ainda mais desligados… e talvez também manipulados pela Inteligência Artificial que gere as metáforas!
    Quando se pensa nisso, todas estas tecnologias “ligadas” fazem exactamente o oposto do que afirmam: desligam-se da vida real, isolam-se da realidade, separam fisicamente os seres humanos uns dos outros!

    .

    Tudo isto é patético como o Grand Reset, o campo ocidental representa 15% da população mundial, tendo-se tornado fraco militar e politicamente, e a Rússia encarregar-se-á de nos fazer descer mais alguns degraus.

    A realidade percebida através dos meios de comunicação já é virtual.
    Ninguém conhece o mundo real de outra forma e todas as nossas opiniões são o resultado de manipulações.

    Estamos todos imersos numa caverna de Platão, e temos de deduzir a realidade por detrás das sombras projectadas pelos meios de comunicação..

    No passado, era necessário trabalhar para viver, agora, a ninharia é generosamente concedida, aos “inúteis” de todos os lados, especialmente aqueles que vêm de outros lugares, que usam o seu tempo “livre”, para matar, e para destruir, o que outros levaram décadas para construir! Isto é o que alguns chamam progresso!

    A maioria está presa no funcionamento da nossa actual sociedade consumista.
    Este funcionamento exige que os indivíduos estejam ocupados com as duas tarefas que lhes são atribuídas: trabalho e consumo.

    O tempo livre é considerado terrivelmente perigoso para os nossos mestres, porque deixa espaço para a reflexão e o estudo. Assim, potencialmente, ao questionamento do sistema esclavagista a que nos submetemos.

    É por isso que é essencial que ocupem este tempo deixado livre, ou mesmo para reduzir o número de pessoas que estão demasiado ociosas.

    Caso contrário, inventando outro possível, não ?

    Esta é a visão centrada no Ocidente, com uma pletora de tudo. Se retirarmos petróleo, fertilizantes e tudo se desmorona e os inúteis acabam por desaparecerem.
    Poderíamos adoptar um modelo indiano, 20 milhões de pessoas ricas ou confortáveis e 900 milhões de pessoas pobres.

    Quando se vê a quantidade de cerveja que é consumida depois do trabalho, etc., para se sentirem bem, e todas as lojas que vendem outro tipo de drogas pode-se ver que o mundo está a tornar-se cada vez mais alcoólico e drogado com a bênção das autoridades…. Gozamos com os russos que são alcoólicos, mas estamos no mesmo caminho. Para não mencionar todas as séries que fazem as pessoas ficarem parvas.…

    PS:Para mim o Herman enciclopédia é uma obra de arte,embora não vi todos,porque na altura era jovem e trabalhava na hora do programa.

  2. Os pilares que sustentam o domínio dos meios de informação públicos são de natureza emocional e nada devem à sede de conhecimento factual e menos ainda ao encadeamento dos factos históricos. Sendo assim, a subversão dessa visão requer um artista.

  3. Com efeito nesta democracia ocidental, o que quer que isto queira dizer, logo que foi iniciada a operação de desnazificação da Ucrania romperam pelo meu contrato de fornecimento de canais TV e surripiaram-me dois. (2).E assim me quedei a ouvir o Milhazes na busca de entendimento para a questão ucraniana. Contudo mais claras e explícitas têm sido as explicaçãoe do HERMAN.
    A propósito da Liberdade de escolha no âmbito da imprensa escrita não esqueço o que se dizia na década de 60 a propósito dos Jornais.
    Essa liberdade poderia ser constatada de forma clara. Existiam mais de uma dezena de Títulos e cada um comprava o Jornal que quizesse..

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