A homenagem da Rússia aos gasodutos Nord Stream

(Por M. K. Bhadrakumar, in Resistir, 29/10/2022)



David Brinkley, o lendário locutor dos EUA com uma carreira de 54 anos desde a Segunda Guerra Mundial, disse certa vez que um homem de êxito é aquele que pode construir uma base firme com os tijolos que outros lhe lançaram. É duvidoso que estadistas dos EUA tenham praticado este nobre pensamento herdado de Jesus Cristo.

A impressionante proposta do presidente russo Vladimir Putin ao presidente turco Recep Erdogan – de construir um gasoduto para a Turquia a fim de criar um hub internacional a partir do qual se possa fornecer gás russo à Europa dá uma vida nova a este pensamento tão “gandhiano”.

Putin discutiu a ideia com Erdogan na sua reunião de 13 de Outubro em Astana e, na semana passada, dela falou no fórum da Semana de Energia da Rússia, onde propôs criar na Turquia o maior centro de gás a Europa e redirigir o volume de gás, cujo tráfego já não é possível através do Nord Stream, para este centro.

Putin disse que pode implicar a construção de outro sistema de gasodutos para alimentar o hub na Turquia, através do qual será fornecido gás a países terceiros, sobretudo europeus, “se estiverem interessados”.

À primeira vista (prima facie), Putin não espera nenhuma resposta positiva de Berlim à sua proposta permanente de utilizar o ramo (string) do Nord Stream 2 que permaneceu intacto para fornecer 27,5 mil milhões de metros cúbicos de gás durante os meses de inverno. O silêncio ensurdecedor da Alemanha é compreensível. O chanceler Olaf Scholz está aterrorizado pela cólera do presidente Biden.

Berlim diz que sabe quem sabotou os gasodutos Nord Stream, mas que não revelará pois afeta a segurança nacional da Alemanha! A Suécia também alega que o assunto é demasiado delicado para compartilhar as provas recolhidas com qualquer país, inclusive a Alemanha! Biden impôs o temor de Deus nas mentes destes tímidos “aliados” europeus, os quais deixaram de ter quaisquer dúvidas sobre o que é bom para eles! Os media ocidentais também têm a ordem de minimizar a importância da saga do Nord Stream a fim de que, com o passar do tempo, a memória pública se desvaneça.

Contudo, a Rússia fez o seu trabalho de casa para que a Europa não pudesse prescindir do gás russo, apesar da atual fanfarronice europeia de auto-negação. Dito simplesmente, as indústrias europeias dependem dos fornecimentos baratos e confiáveis russos para que os seus produtos permaneçam competitivos no mercado mundial.

O ministro da Energia do Qatar, Saad al-Kaabi, disse na semana passada não poder imaginar um futuro com fluxo “zero de gás russo” para a Europa. Assinalou de modo azedo:   “Se este for o caso, então creio que o problema vai ser enorme e durante longo tempo. Simplesmente não têm volume suficiente para trazer [de fora] e substituir esse gás (russo) a longo prazo, a menos que digam:   ‘Vou ficar a construir enorme centrais nucleares, vou permitir o carvão, vou queimar combustíveis”.

Na essência, a Rússia planeia substituir o seu hub de gás em Haidach, na Áustria (o qual foi apresado pelos austríacos em Julho). Conceptualmente, o hub na Turquia tem um mercado de gás já pronto no sul da Europa, incluindo a Grécia e a Itália. Mas há mais nisto do que parece à simples vista.

Em suma, Putin deu um passo estratégico na geopolítica do gás. Sua iniciativa joga no lixo a ideia tresloucada dos burocratas russófobos da Comissão Europeia, em Bruxelas, encabeçados por Ursula von der Leyen, de impor um teto de preço às compras de gás. Não têm sentido os planos dos Estados Unidos e da União Europeia de degradar o perfil da Rússia como superpotência gasista.

Logicamente, o próximo passo para a Rússia deveria ser alinhar-se com o Qatar, o segundo maior exportador de gás do mundo. O Qatar também é um aliado próximo da Turquia. Recentemente, em Astana, à margem da cimeira da Conferência sobre Interação e Construção de Medidas de Confiança na Ásia (Conference on Interaction and Confidence-Building Measures in Asia, CICA), Putin efetuou uma reunião a portas fechadas com o emir do Qatar, o xeque Tamim bin Hamad Al Thani. Acordaram efetuar outra reunião dentro em breve na Rússia.

A Rússia já tem um quadro de cooperação com o Irão numa série de projetos conjuntos na indústria do petróleo e do gás. O vice-primeiro ministro russo Alexander Novak revelou recentemente seus planos para concluir um acordo de intercâmbio de petróleo e gás com o Irão em fins do ano. Informou que se estão a elaborar pormenores técnicos: questões de transporte, logística, preços e formação de tarifas”.

Neste momento, a Rússia, o Qatar e o Irão representam em conjunto mais da metade de todas as reservas provadas de gás do mundo. Aproxima-se o momento de intensificarem a cooperação e coordenação com base no modelo da OPEP Plus. Os três países estão representados no Fórum de Países Exportadores de Gás (GECF).

A proposta de Putin apela ao sonho de longa data da Turquia de se converter num centro energético às portas da Europa. Não surpreendentemente, Erdogan instintivamente empolgou-se com a proposta de Putin. Falando esta semana aos membros do partido governante no parlamento turco, Erdogan disse: “Na Europa estão agora a lidar com a questão de como se manterem aquecidos no próximo inverno. Não temos este problema. Acordamos com Vladimir Putin criar um hub de gás no nosso país, através do qual o gás natural pode ser entregue à Europa. Portanto, a Europa encomendará gás à Turquia”.

Além de reforçar a sua própria segurança energética, a Turquia também pode contribuir para a da Europa. Assim, a importância da Turquia dará sem dúvida um salto qualitativo no cálculo da política externa da UE, ao mesmo tempo que reforçará a sua autonomia estratégica na política regional. Este é um grande passo em frente na geoestratégia de Erdogan – a direção geográfica da política externa turca sob a sua vigilância.

Do ponto de vista russo, naturalmente, a autonomia estratégica da Turquia e a sua determinação de seguir uma política externa independente funcionam esplendidamente para Moscovo sob as condições atuais de sanções do ocidente. É concebível que as empresas russas começarão a encarar a Turquia como uma base de produção onde as tecnologias ocidentais se tornam acessíveis. A Turquia tem um acordo de união aduaneira com a UE, o qual elimina totalmente os direitos alfandegários sobre todos os produtos industriais de origem turca. (Ver meu blog Russia-Turkey reset eases regional tensions, 09/Agosto/2022).

Em termos geopolíticos, Moscovo sente-se à vontade com a condição turca de membro da NATO. Claramente, o hub de gás proposto contribui com muitos rendimentos adicionais para a Turquia e dará uma maior estabilidade e previsibilidade às relações Rússia-Turquia. De facto, os vínculos estratégicos que unem os dois países estão a ampliar-se constantemente: o acordo S-400 ABM, a cooperação na Síria, a central nuclear de Akkuyu, o gasoduto Turk Stream, para nomear alguns.

Os dois países admitem sinceramente que têm diferenças de opinião, mas a forma em que Putin e Erdogan, através da diplomacia construtiva, continuam a converter as circunstâncias adversas em janelas de oportunidade para uma cooperação que beneficie a todos é simplesmente assombrosa.

É preciso engenho para conseguir que os aliados europeus dos EUA obtenham gás russo sem nenhuma coação ou aborrecimentos, inclusive depois de Washington haver enterrado os gasodutos Nord Stream nas profundezas do Mar Báltico. É uma ironia dramática que uma potência da NATO faça parceria com a Rússia nesta direção.

A elite da política externa dos EUA, retirada dos stocks da Europa do Leste, fica sem palavras devido ao puro refinamento do engenho russo para ultrapassar sem nenhum traço de rancor a forma como os Estados Unidos e seus aliados – Alemanha e Suécia, em particular – bateram com a porta a Moscovo impedindo-a até de dar uma olhadela aos gasodutos danificados de muitos milhares de milhões de dólares que haviam construído de boa fé nas profundidades do Mar Báltico a instâncias de dois chanceleres alemães, Gerhard Schroeder e Angela Merkel.

A atual liderança alemã do chanceler Olaf Scholz parece muito imbecil, covarde e provinciana. Ursula von der Leyen, da Comissão Europeia, recebe um enorme repúdio em tudo o que em última análise definirá o seu trágico legado em Bruxelas como uma porta-bandeira dos interesses americanos. Isto provavelmente converte-se no primeiro estudo de caso para historiadores sobre como funcionará a multipolaridade na nova ordem mundial.


*M. K. Bhadrakumar foi diplomata de carreira por 30 anos no Serviço de Relações Exteriores da Índia. Serviu na embaixada da Índia em Moscou em diversas funções e atuou na Divisão Irã- Paquistão-Afeganistão e na Unidade da Caxemira do Ministério das Relações Exteriores da Índia. Ocupou cargos nas missões indianas em Bonn, Colombo, Seul, Kuwait e Cabul; foi alto comissário interino adjunto em Islamabad e embaixador na Turquia e no Uzbequistão.


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5 pensamentos sobre “A homenagem da Rússia aos gasodutos Nord Stream

  1. Provavelmente nunca saberemos – pelo menos não durante a nossa vida – a verdade sobre quem realmente levou a cabo esta destruição.
    Para tal, teremos de esperar pela desclassificação dos arquivos governamentais para ter acesso aos factos e pistas recolhidos.
    O que será dito no futuro próximo será dito para servir os interesses políticos dos partidos de hoje.
    É assim que as coisas são.

    Nunca saberemos a verdade sobre este caso, apesar de todos saberem quem mais beneficia com o crime!

    Um elemento interessante é a memória de que a NS1 foi construído para contornar a Ucrânia. Quem se lembra da situação de conflito entre a Ucrânia e a Rússia no início da década de 2010?
    A Ucrânia queria aumentar o direito de passagem do gás pelo seu território e os russos responderam aumentando o preço do gás fornecido à Ucrânia.
    Este conflito económico agravou-se, tornando-se uma das razões do primeiro conflito, o de 2014, que terminou com a anexação da Crimea.
    O conflito russo-ucraniano está enraizado em grandes quantias – recursos, petróleo e gás (Reino Unido vs. Reino Unido), bem como no acesso a mão-de-obra barata e qualificada (Reino Unido e UE) – e geografia, não boa ou má.

    A Suécia descobriu um drone subaquático intacto! Com a apreensão do drone, há as primeiras provas conclusivas de quem cometeu o bombardeamento Nord Stream.

    Imediatamente, a Suécia classificou o drone e as investigações sobre o material como altamente confidenciais devido à “segurança nacional”. Só isto prova que a Rússia não é obviamente culpada! Este drone é definitivamente de origem americana!!! E obviamente não o querem revelar porque o povo europeu compreenderia imediatamente a grande manipulação que lhes é servida !!!!

    Poderíamos enviar o NCIS para investigar, mas eles são americanos… e concluiriam que os dinamitadores são russos!
    Poderíamos enviar Sherlock Holmes, mas ele é inglês… e concluiria que os russos são culpados!
    Poderíamos perguntar a Hercule Poirot, mas ele é belga, o país onde a NATO está sediada,… e concluiria que foi o próprio Putin que enviou as bombas!
    Poderíamos perguntar ao Comissário Maigret, mas ele é francês… e Macron ordená-lo-ia que acusasse os “Ruskies”!
    Quem revelará então a verdade?

    Um exame forense?
    Estarão realmente à procura da resposta quando todos a conhecem?

    Qualquer pessoa com senso comum sabe que foi o Principe do Algarve que o fez.
    Os americanos são insuspeitos porque são o campo do bem, a prova é que eles próprios o dizem.

    Pergunto-mo para que servem todos estes destacamentos de armas e soldados nos países de Leste quando NENHUM deles estava a monitorizar o gasoduto no fundo do mar!
    Não esqueçamos a declaração do presidente americano contra estes oleodutos.

    Penso que se fosse uma jogada russa, já saberíamos.

    Toda a área está cheia de sonares, porque esta é a rota dos submarinos russos para o Atlântico. Toda a área está sob escrutínio. Ninguém gritou realmente, por isso é uma coisa dos EUA. Por outro lado, tem sido um verdadeiro golpe para os europeus, por isso não os ouvimos realmente.

    Nem todas as verdades são boas para contar, mesmo as verdades sujas.
    Os oligarcas ucranianos queriam obter mais dos seus direitos de gás russo, tal como os alemães queriam fazer com NS1 & 2, mas isto contrariou os planos do Tio Sam…

    Ao contrário do que é dito, o governo alemão sabe perfeitamente bem, mas recusou-se a responder aos parlamentares alemães com o argumento de que não seria “saudável” para a nação.

    O planeta é controlado por “alienígenas” políticos esquivos, incontroláveis, incontroláveis…em suma: uma fauna viva na mesma terra que a humanidade normal, mas as ligações são impossíveis, por isso concluímos como desejamos, não saberemos mais!

    Todos os líderes europeus (e mundiais?) sabem quem o fez (os EUA para aqueles que não compreendem) mas ninguém se atreverá a acusá-los publicamente (será difícil porque não há provas reais, suponho…)

    A Alemanha teve a possibilidade de escolha de abastecimento noutro lugar devido à falta de oleodutos do sul? O GNL já era muito mais caro.
    Os ucranianos estão safos, não se tinham preparado para emitir um selo postal como fizeram para a ponte da Crimeia. Por outro lado, os polacos – que já tinham tentado impedir a construção pela força – devem estar muito satisfeitos com algo que prejudica os seus dois inimigos hereditários: a Rússia e a Alemanha.

    Foi feita uma pergunta extremamente simples em 16/12/2021 sobre uma votação na ONU:

    simples :

    “Combater a glorificação do nazismo, neonazismo e outras práticas que contribuem para alimentar as formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância conexa”.

    2 países votaram contra a referida resolução da ONU que condenava o nazismo.

    1. Ucrânia

    2. Estados Unidos da América

    Estão surpreendidos?

    Portanto, acabou-se a indústria, acabou-se a energia, poucas matérias-primas, acabou-se a agricultura, acabou-se o exército, acabaram-se as escolas, acabaram-se os hospitais, etc…
    As pessoas que afirmam ser nossos mestres fizeram bem o seu trabalho, os seus patrões americanos podem felicitá-los…

    Será que temos de ter o nosso couro curtido para que as nossas consciências acordem?

    Os americanos, tal como os britânicos e os alemães, não são nossos amigos, são no máximo aliados das circunstâncias e, no caso dos americanos, imperialistas belicistas. A Alemanha não comprará até que os EUA dêem a sua aprovação, a qual nunca dará.

    O objectivo da UE nunca foi o de ser uma comunidade de solidariedade, é o terreno fértil para nações servidas. Recomendo a leitura do grande encobrimento por booker et north, é muito instrutivo a este nível.

    • Uma nova edição do livro mais vendido da Continuum revisada e alterada para abordar todas as questões do próximo referendo e a publicação da nova Constituição da UE. A primeira edição de “The Great Deception” foi um dos livros mais vendidos da Continuum. Ele contou a verdadeira história das origens e história da União Europeia, revelando toda a decepção e trapaça envolvida. Agora, com a publicação da nova Constituição Europeia, Christopher Booker e Richard North condensaram um pouco da história inicial para abrir espaço para um exame da nova Constituição Europeia e argumentar que nela estão todos os truques e armadilhas no coração desta ideia europeia e as consequências desastrosas (2 em estoque) rs

  2. “Penso que se fosse uma jogada russa, já saberíamos”. Desculpem mas isto fez-me imediatamente pensar nos Panama Papers retidos no expresso no sentido em que, se estivesse lá o Socrates, já saberiamos 🙂 mas como não deve estar, continuam a investigar…

  3. Foi o Reino Unido, está tudo nas escutas feitas ao telemóvel de lizz truss.Foram eles, cometeram um acto de guerra contra a Alemanha.

  4. Muito bom artigo e cheio de verdades. No caso do gás quem vai ganhar é a Rússia que vai vender o seu gás e a Turquia que vai receber o gás da Rússia e depois revende-lo. Quem perde são as populações européias que vão pagar o gás a preços altisdimosasdim como o visto dos alimentos, os milhares de empresas que vão ao charco e os muitos milhões de desempregados, e tudo isto feito por uma cambada de imbecis que preferem agradar aos EUA e prejudicar as suas populações. Há caso de pães a custar 32 cêntimos, quando anteriormente custavam 15 cêntimos, está compra foi hoje, 15 Paes custaram 4, 86 cêntimos. Mas não há problema, podemos mandar como já foi feito 250 milhões euros para a Ucrânia, e vamos mandar mais, isto é que importante, agora o custo de vida estar caro, as pessoas roubarem nos supermercados para comer, assaltar camiões na estações de serviço para roubar géneros alimentícios não é problema para os governos ocidentais, o que interessa é ajudar a Ucrânia, não é??? Por meio m não, não é. Mas os países ocidentais devem estar com remorsos, porque sabem que foram eles que iniciaram está guerra em 2014.

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