(Ana Sá Lopes, in newsletter do Público, 21/10/2022)

(O Costa continua a cantar vitórias onde só há derrotas ou vitórias de terceiros. A política nacional, enquanto telenovela, nem sequer chega a ser rasca: é mais para o deprimente e para o ridículo. Piores episódios que este só quando o Cavaco sai da toca dos mortos-vivos, ou quando o Marcelo descobre que o país ainda aguarda que o Passos regresse, qual D. Sebastião numa manhã de nevoeiro.
Estátua de Sal, 22/10/2022)
Cara leitora, caro leitor:
Portugal, Espanha e Alemanha tentam, há séculos, convencer a França a construir um gasoduto para deixar passar gás natural através dos Pirenéus. Chama-se “projecto MidCat” e a França opõe-se – e isto dura há anos – porque Paris quer vender o nuclear que produz.
Mas a guerra da Ucrânia tornou a questão da passagem do gás natural para os países europeus mais dependentes da Rússia uma emergência europeia. Até o Parlamento Europeu aprovou há pouco tempo – com o voto contra dos deputados franceses – a construção da infraestrutura, porque ontem já era tarde. Esqueçam: esta semana o MidCat foi finalmente enterrado com pompa, circunstância e sorrisos (e também a anunciada satisfação de todos os líderes, incluindo o chanceler alemão, Olaf Scholz, grande entusiasta do MidCat) para dar lugar a um BarMar que ninguém ainda sabe ao certo o que é, que vai começar a ser estudado do zero e que só “transitoriamente” deixará passar gás natural, focando-se nas renováveis.
Citemos as palavras do primeiro-ministro português: “Este acordo permitirá complementar a interconexão entre Portugal e Espanha, entre Celorico da Beira e Zamora, e também fazer uma ligação entre Espanha e o resto da Europa, ligando Barcelona a Marselha por via marítima. É um gasoduto vocacionado para o hidrogénio verde e outros gases renováveis e que, transitoriamente, poderá ser utilizado também para o transporte de gás natural até uma certa proporção”. Ou seja: como a França continua a querer vender o seu nuclear, se Portugal quer ser um entreposto de gás natural para poder fornecer os países europeus mais dependentes do gás russo, tem que despachar-se a concluir o transshipment, que o secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Tiago Antunes, disse que poderia estar concluído nos próximos meses.
Nunca o MidCat estaria pronto a tempo do duro Inverno que espera o Leste da Europa: a infraestrutura demoraria, no mínimo dos mínimos, “oito ou nove meses”, como em Agosto a ministra espanhola Teresa Ribero dizia e certamente com excesso de optimismo. O que sabemos do novo projecto é que vai ser discutido melhor em Dezembro em Alicante.
Esta semana, no Parlamento, o PSD perguntou a António Costa se era “com os seus lindos olhos” que tencionava convencer Macron a aceitar o MidCat. Costa respondeu: “A minha confiança não é nos meus lindos olhos, mas no princípio da razão. O mercado único [de energia] gera vantagens para todos.”
A verdade é que não haverá gasoduto em Sines a exportar gás natural americano à tripa-forra para a Europa Central, como Olaf Scholz defendeu ainda não há muito tempo e o Governo português desejava. Haverá um “corredor verde” que ainda não sabemos muito bem o que é.
Jorge Moreira da Silva, antigo ministro do Ambiente do Governo Passos Coelho e candidato derrotado à liderança do PSD, escreveu nas redes sociais que o acordo alcançado é “um embaraço para Portugal e Espanha”: “Como não há memória apresenta-se como vitória histórica aquilo que é um embaraço”. E junta o comunicado da cimeira de Madrid de 2015, em que os mesmos países, com outros governantes, se comprometeram a pôr a funcionar as interconexões necessárias com vista ao mercado único de energia, “que constitui uma dimensão fundamental para construir a União Energética Europeia”.
Mas a história das cimeiras europeias é feita disto, de vitórias históricas ou de decisões em que todos ganham e todos perdem ao mesmo tempo, ninguém perde para ninguém ganhar e saem sempre abraçados. É da natureza da coisa.
Tenha um óptimo fim-de-semana.
Acerca deste assunto ver “O novo disparate do Sr. Scholz”, in https://resistir.info/jf/disparates_em_serie.html