Automutilação

(Manuel Loff, in Público, 18/10/2022)

Manuel Loff

Sem termos recuperado da contração da economia durante os confinamentos, entrámos agora numa crise inegavelmente induzida pela invasão russa da Ucrânia, mas sobretudo pela guerra económica que a UE abriu contra a Rússia e, afinal, contra ela própria e a sua economia.


Há dias, uma amiga mostrou-me fotos de alarmes instalados em embalagens de peixe congelado num dos grandes supermercados da área metropolitana de Lisboa. Claro que sei que isto se faz em lojas de todo o tipo de bens caros, mas com comida…? Nunca tinha visto. Lembrei-me logo do tribunal que condenou em 2012, em pleno Governo da troika, um sem abrigo que tinha roubado um champô e uma embalagem de polvo. Nem o facto de ter sido detetado por um segurança e ter devolvido tudo impediu o Pingo Doce de levar o processo a tribunal. Para dar o exemplo. “Existe em Portugal uma justiça para ricos e outra para pobres. O pobre, se rouba um pão, vai preso. Um rico, se rouba um milhão, sai ileso”, ironizou então o advogado de defesa (PÚBLICO, 31/1/2012).

Levamos vinte anos consecutivos de austeridade (mais orgulhosa e ideológica sob os governos da direita, mais encapotada e disfarçada sob os do PS). Metade deles foram a chamada “década perdida” (2001-10), a que se seguiu a crise da nacionalização da dívida privada que nos pôs a todos a pagar os buracos da banca; em 2015-19, curta pausa de reversão de cortes de salários e pensões acompanhada das famosas cativações, para logo a seguir entrarmos no “Grande Confinamento” de 2020-21 e numa contração súbita sem precedentes.

A pobreza, que só deixara de crescer nos quatro anos da “geringonça”, voltou em força. Há meses o INE revelou que ela se agravou significativamente em 2019-21, logo antes e durante a pandemia. Em 2020, mais de meio milhão de “trabalhadores com emprego estavam na situação de pobreza devido aos baixíssimos salários que auferiam. Também o desemprego é uma causa importante da pobreza. Em 2020, 46,5% dos desempregados viviam abaixo de limiar da pobreza.”

Em 2021, havia 2,3 milhões de portugueses em risco de pobreza ou exclusão social, 258 mil mais que em 2020. “E o número de vezes que o rendimento dos 10% da população mais rica é superior ao rendimento dos 10% mais pobres aumentou, entre 2019 e 2020, de 8,1 para 9,8 vezes mais.” (Eugénio Rosa, www.eugeniorosa.com, 6/1/2022 e 7/6/2022)

Pobreza. Fome. No último Expresso, Vera Lúcia Arreigoso escreveu sobre os “utentes que vão às urgências para receber comida, e não tratamento”. Eles “não são propriamente idosos, (…) e tendem a permanecer em observação até à distribuição de comida, seja almoço ou jantar. (…) Os profissionais estão atentos, pois a crise económica que se avizinha prenuncia um agravamento deste fenómeno.” Que se avizinha, não: que já cá está.

Sem termos recuperado da contração da economia durante os confinamentos, entrámos agora numa crise inegavelmente induzida pela invasão russa da Ucrânia, mas sobretudo pela guerra económica que a UE abriu contra a Rússia e, afinal, contra ela própria e a sua economia. “A resposta europeia à invasão russa da Ucrânia foi desmesurada, ignorou completamente interesses e fragilidades, curvando-se num servilismo acrítico perante Biden” (Viriato Soromenho Marques, DN, 1/10/2022).

Ela é tão despudoradamente parcial que adotou uma bateria de medidas que jamais Bruxelas e a NATO aplicaram ao cortejo de guerras ilegais do “Fim da História” – e para quê, se a maioria foi da responsabilidade dos EUA e/ou dos seus aliados. A tal ponto é a UE que paga o preço e os EUA que beneficiam que se pode falar de automutilação da economia europeia, desencadeando aquilo a que Ricardo Cabral tem chamado “uma tempestade perfeita”: a subida e o racionamento do preço do gás destrói capacidade industrial, agrava défice comercial, desvaloriza o euro, aumenta a inflação (Ricardo Cabral, PÚBLICO, 3/10/2022).

O passo seguinte já o conhecemos: mais austeridade. E mais pobreza. Entre nós, “ao defender aumentos salariais a taxas muito inferiores à taxa de inflação”, o Governo está a impor “um corte de talvez 4%-5% no rendimento real da generalidade das famílias” que “desestabiliza em vez de contribuir para estabilizar a economia.” (Ricardo Cabral, PÚBLICO, 10/10/2022)

Prosseguir a guerra e retórica inflamada a imitar Churchill. É o que temos. Dispense-se a ONU, os diplomatas, os negociadores, fale-se apenas de heroísmo, mísseis, mapas, Zelensky. E os pobres que aguentem. Não é o que eles sabem fazer?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico


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2 pensamentos sobre “Automutilação

  1. Como vivemos (e não só em Portugal) num sistema de capitalismo de compadrio, cheio de conflitos de interesses, corrupção, … Lamento, mas tenho uma tendência pessoal para ver a acumulação de riqueza (inclusive por políticos) mais como o resultado de um rapina do que o de um “empresário” (coloco entre parênteses, porque para mim o empresário também pode ser o grande cientista reconhecido pelos seus pares, ou autor de best-sellers, … ) que criou algum tipo de riqueza (o que explica o parêntese anterior, a riqueza em questão poderia ser um produto, uma teoria, um livro, …). E nem sequer estou a falar dos filhos de fulanos que, sem o que os seus pais fizeram, não seriam nada, ainda que estejam convencidos de que são tudo.

    A pobreza é fabricada. O estado fraco, sem sangue, que não quer desagradar a ninguém, prova-o todos os dias..

    A principal causa da pobreza é que as classes média e pobre estão condicionadas a permanecerem pobres . Em Portugal existe uma casta de altos funcionários públicos que, sob o pretexto da redistribuição, pilham a população em seu próprio benefício. Ninguém (ou pelo menos um mínimo dos pobres, podem impedir ). É por isso que existem todas as fustigações fiscais e encargos múltiplos.

    Lembrem-se da frase de Ruy Blas “para que os ricos sejam muito ricos, os pobres devem ser muito pobres” a riqueza é criada pelos pobres em benefício dos ricos, nada de novo debaixo do sol, mas devemos temer o despertar do quarto mundo..

    Devemos ter cuidado para não equiparar a pobreza à delinquência e a riqueza à virtude!
    Conheço pessoas pobres que são muito mais honestas e respeitosas do que pessoas ricas, e é por isso mesmo que por vezes uns continuam pobres enquanto outros enriquecem… olhem para os Balcãs!

    Se o Estado se comportasse como um bom pai, a produção geral beneficiaria toda a gente….mas como os nossos líderes estão à mercê das Finanças (que sabem tirar a grande parte!), são eles que beneficiam do máximo do bolo e além disso….. violam a realidade fazendo-nos acreditar que as desigualdades são culpa do Estado….. Há pessoas preguiçosas, pessoas que desistem, mas sobretudo os gananciosos que querem sempre mais, sabem como fazê-lo através dos seus serviços de lobby, alimentando os fantoches do Estado que os servem.
    O problema é a concentração de dinheiro nas mãos de uns poucos.

    .

    Isto é o que faz a diferença quando empreendemos uma empresa. Uma pessoa nascida numa família, num ambiente empresarial herdará um certo atavismo, redes relacionais, códigos sociais…
    É portanto simplista dividir a sociedade em gafanhotos e formigas. A complexidade é a ordem do dia.

    Quando já não se pode ter sucesso neste país porque as finanças dão dinheiro de borla aos grandes trusts e negam o mesmo dinheiro àqueles que simplesmente gostariam de criar riqueza concreta com as suas mãos e energia. O regresso à terra será brutal.

    É verdade que aumentar os impostos nunca resolverá os problemas da pobreza ou da riqueza e muito menos os problemas da dívida do Estado… quando não há mais actividade lucrativa para o povo, não há mais economia possível… e o dado é lançado! Desde os tempos antigos, a história ensinou-nos sobre isto, e a maior parte das vezes as pressões aumentaram e o jogo quase sempre acabou em revoluções e guerras.
    Se o nosso mundo está a correr mal hoje, é porque a riqueza já não é fruto do verdadeiro e honroso trabalho do homem que produz ou que presta serviço a outros em troca de uma remuneração justa. Não importa se ele é capaz, corajoso, determinado e se gere as suas actividades com tacto e inteligência. Nada pode ser feito, este tipo de homem já não o pode fazer!
    Demasiados predadores da ordem estabelecida, ricos, poderosos, intocáveis, pagam as suas próprias leis e desprezam as regras da concorrência livre e justa em seu próprio benefício
    Actualmente, 90% da riqueza da dívida é essencialmente dedicada ao “lucro fácil” sem fazer qualquer trabalho real. Fundos enormes são manipulados por bancos e multinacionais sob o nariz do povo por pessoas internas de alto nível (eleitas ou não, ou não em instituições complexas amplamente interligadas), o seu único produto comercial é o dinheiro (seja ele qual for). Com o dinheiro da dívida (que nunca chegou à economia real) tornaram-se habilidosos no comércio de capitais, na compra e venda de pequenas e médias empresas, que anteriormente tinham tornado sem sangue, forçando-as através de regulamentos e directivas incontroláveis, e criando organismos de auditoria e controlo para tornar o trabalho administrativo das empresas demasiado complexo. Começaram a acumular todo o tipo de especulações: Deslocações, espoliações, conivências, lobbies, corrupções, desvios… a lista de esquemas é longa… Ajudados pelos bancos, desenvolveram a engenharia fiscal e até conseguem pagar apenas alguns por cento dos impostos sobre os lucros de dezenas de biliões de euros e, sob o pretexto de gerirem quase todos os excedentes dos desempregados locais (dos quais os políticos não sabem o que fazer), tornaram-se intocáveis pelo sistema de justiça e pelo Estado…
    Não sou esquerdista nem de direita, sou apenas a favor de um mundo equilibrado onde todos possam viver com dignidade.
    Até distorcem o termo “capitalismo”.
    Em suma, tornaram-se o cancro de toda a nossa sociedade ocidental e, apesar dos argumentos, não compreendo porque muitos os defendem!

    Não há nada mais universal do que a pobreza. Para fazer uma “pessoa gorda e rica”, são necessários milhares de “pobrezinhos” (não importa quem são ou onde se encontram no planeta). Esse é o princípio. Para erradicar a pobreza, erradicar a riqueza.

    Com a pobreza a aumentar e sem futuro para os jovens, é tempo de pensar.

    A transferência de dinheiro da classe média para os mais pobres induz um aumento do número de pessoas pobres é automático..

    A riqueza e a pobreza, na sua maioria, são expressas apenas em valores materiais. A escolha republicana da vontade de igualdade empurra para forçar aqueles que têm de dar por aqueles que não têm. Soa bem à primeira vista, já o tentamos há algum tempo, certo? Mas o que pensam do resultado? Apesar de todas as leis aprovadas neste sentido por pessoas de boa fé, é claro, mas ignorantes da Verdade.
    A verdade é que a coerção gera violência, o que apenas aumenta o sofrimento de todos.

    A pobreza é trabalhar e permanecer pobre, uma vez pago o aluguer e a energia, o que resta? Escolher entre ir ao cinema ou ao teatro ou pagar uma assinatura de Internet e ser entretido pela televisão e pelo streaming? Como o salário é tão incompatível com as realidades pagas e os recursos humanos das empresas são cada vez menos humanos… A pobreza é bem fabricada, concebida de modo a que uma elite possa continuar a deslizar por si própria. Fazer uma pessoa pobre sentir-se culpada pela sua pobreza é fazer com que todo o sistema bem oleado que mantém esta pobreza se sinta culpado. E se tem de ser mantido com um rendimento mínimo, é porque o gastará e o reinjectará na economia, e o círculo está completo.

    Na minha opinião, o factor determinante no aumento da pobreza (experimentada, não medida) não é tanto os micro-movimentos do salário médio, mas sim o aumento do custo de vida: para os mais pobres, habitação, alimentação, energia, estamos a 12% por ano..

    Portugal não só é pacífico, como instituiu uma guerra económica selvagem entre os membros desta nação..
    Por outro lado, o capitalismo não é apenas, como se afirma, “respeito pela propriedade privada”, é também e sobretudo um sistema económico cuja lei fundamental é a busca sistemática do máximo lucro em detrimento daqueles que realmente produzem a riqueza.

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