L’Arroseur arrosé

(Rui David, in Facebook, 04/09/2022)

Notável capa do número de Maio de 2001 da revista The Atlantic. Presciente.

A questão das sanções é apenas o reflexo do “filme” que a média impingiu aos europeus. Décadas a insuflar-nos sobranceria xenófoba mascarada de preocupações com “direitos humanos”. Para além da abjeta hipocrisia de o nosso “mercado” alegremente “absorver” o que “oligarcas” roubaram ou não roubaram ao povo russo.

É a “estação de gasolina com bombas nucleares”, e o “PIB ao nível da Espanha”. Eu nem sabia dessas, mas há meses, quando balbuciei aqui qualquer coisa sobre o tema, não tinham passado dez minutos já um expert versado em temas económicos acorreu aqui a lembrar isso – por qualquer mistério, as criaturas que se convertem ao ultraliberalismo passam imediatamente a saber esses memes de cor e salteado, deve vir como brinde.

É a “economia em pré-colapso”. Dias antes da invasão, assisti a um debate televisivo entre o Pedro Delgado Alves, do PS, e o Miguel Morgado, talvez o mais articulado militante da Nova Direita portuguesa que faz a ponte entre PSD e a Democracia Liberal e, ao abordarem o tema Ucrânia, ambos concordaram que isso era um facto.

É o exército “descontente, desmotivado e com armamento arcaico” (para isso temos cá o Nuno Rogeiro).

É o “fascista Putin” (para isso temos cá o polivalente especialista, passe o oximoro, Milhazes).

É o “isolamento do Putin” (Milhazes à cabine de som…). Este tem sido súbita e incompreensivelmente substituído mais recentemente pelo argumento tipo AlQaeda/11 de Setembro da “cumplicidade de todos os russos com o Putin por não tomarem a iniciativa de derrubá-lo, pelo que têm que comer todos pela medida grande”.

 É o descarado apadrinhamento pelo Ocidente de toda a casta de malfeitores russos ou “investidores” americanos, mais vigaristas que o Putin, desde que perseguidos por este. Normalmente “o Putin” é uma designação mais prática para “a Justiça russa” que não sendo, naturalmente, flor que se cheire, não é pior do que a inglesa, quando mete “assuntos de Estado”.

É a preocupação humanista pelos únicos oligarcas que não merecem reprovação ocidental, aqueles que o Putin (idem parênteses anterior) meteu na choça, o extremista de direita Dugin apresentado como “cérebro do Putin”, o xenófobo e extremista de direita, Navalny, promovido a “líder da Oposição” “ democrática”…

Basta atentar na enxurrada de livros que de repente se abateu sobre as livrarias. Até deu para criar uma nova editora e para o Milhazes, que tanto se queixa do Putin, poder tirar a barriga de misérias à custa dele. Todos a bater na mesma tecla. Não há um, que eu tenha folheado, que tente dar uma visão minimamente nuançada desta nova encarnação do Império do Mal.

Pode haver elaborações sobre o nazismo e o fascismo, o Bolsonaro, o Trump, a LePen ou o Salazar. Mas sobre o Putin, mãezinha, estão todos de acordo.

Tanto a matraca mediática bateu nas cabeças que aparentemente até as elites europeias parecem ter acreditado nela e agora não sabem como descalçar a bota e não podem dar parte de fracos.

É que a populaça “informada” (isto é, a que lê a Anne Appelbaum, compra o Expresso e saltita entre os telejornais da SIC Notícias e da CNN Portugal e já sabe tudo sobre o assunto), está completamente intoxicada de “informação” de sentido único, e a salivar contra “os orcs”.  Vá lá, temos que ser realistas, as pessoas não podem dar atenção tudo e as coisas são o que são.

Agora, como é que tanto diplomado, pós-graduado, doutorado, especializado em geopolítica, em economia – da digital e da outra -, em política, em assuntos militares, e treinados na luta política, acreditou (ou fingiu, o que não é desculpa) que isto era só “deixar de lhes comprar gás e petróleo” – ou mesmo, ainda mais absurdo, continuando a comprar (porque “eles” estavam “obrigados contratualmente a vender”) mas DEIXANDO DE LHES PAGAR (!) ao excluí-los do sistema de pagamentos internacional -, que a economia deles colapsaria no prazo de uma semana?

E que nós, ok, nós, democratas empáticos, nós, naturalmente, seríamos chamados a uns sacrifícios (piscadela de olho, “sacrifícios”, ok?) pela “Liberdade”, pela “Democracia”, etc.. Afinal de contas, quando damos um pacote de arroz ao Banco Alimentar contra a Fome para os pobrezinhos, também fazemos um sacrifício, certo?

Dá para acreditar nisto? Dará para acreditar nisto?

Dá a ideia de que a direita portuguesa – e se calhar também a europeia, uma vez que por princípio as nossas ideias, incluindo as de direita, são em geral macaqueadas “do que se faz lá fora” -, tem razão ao insistir que a Educação anda pelas ruas da amargura. E tenham paciência, mas não é só a pública. A reação da elite europeia (dominada pela direita europeia, caninamente subserviente relativamente à direita americana “democrata”), maioritariamente formada em escolas privadas de alto gabarito, comprova-o.

Agora, olha, estamos nisto.

Ontem, ou anteontem, entre setenta a cem mil checos – um povo sisudo  -, saíram à rua a exigir a demissão do seu Governo por causa da fatura energética. Indiferentes aos imbecis que, nas redes sociais, preferiram assinalar que há cinquenta e quatro anos tanques russos estiveram em Praga, os checos é que parece que neste momento se estão nas tintas para isso. E prejudicam-se. Porque se a manifestação em vez de ser “vão lá resolver como quiserem o problema da Ucrânia, que vocês e os americanos criaram, mas não nos lixem o juízo”, fosse uma manifestação a protestar contra os russos por causa dos tanques de 1968, teriam tido direito a horas de tempo de antena em prime time na televisão portuguesa.

Assim, nicles. Dancem, como faz a ministra finlandesa. Afinal de contas temos que ”viver”…

Eu volto para o meu black out, que é onde estou bem.


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4 pensamentos sobre “L’Arroseur arrosé

  1. O problema é que, mesmo que consideremos estas decisões absurdas (no mínimo), todos teremos de pagar as consequências…

    A Europa deve sentir os efeitos das suas sanções sobre outros povos ao ponto de morrer à fome e deve manter-se num tal estado de endividamento que deixam de poder utilizar a arma da fome contra outros povos.

    Se pensam que depender do gás russo não é uma boa ideia, esperem até ver o que acontece quando se depende do gás americano…eles dar-nos-ão um mau bocado, muito mais do que os russos. …

    Óptimo, o desejo do ministro foi concedido: “Vamos fazer ruir a economia russa. Só que ele apanhou o país errado, referia-se a Portugal, a Europa.

    Mas vejamos de outra forma: e se eles simplesmente não tivessem escolha? Não é a isso que todos os países emergentes pobres estão resignados? Países de Leste com os seus trabalhadores baratos, Bangladesh, Sri Lanka, etc., todos os países onde os nossos empresários estão felizes por explorar mão-de-obra barata, será que têm realmente uma escolha? Num mundo onde a moeda é controlada pelo Ocidente, onde o exército mais poderoso do mundo é ocidental, etc., o que podem os países emergentes fazer senão aceitar que empresas ocidentais se instalem nos seus países para explorar a sua força de trabalho barata?

    Porque estou a dizer tudo isto? Os países emergentes pobres têm realmente uma escolha? Não são os nossos líderes empresariais que estão ansiosos por poupar dinheiro às costas dos mais pobres, quer instalando as suas fábricas no estrangeiro, quer trazendo-nos estes estrangeiros?

    Nos anos 90 a narrativa que, por razões de competitividade, a nossa desindustrialização “terminou com a mudança para países onde a mão-de-obra é barata com o consentimento dos nossos políticos, estes mesmos” países que se voltam para a despolarização porque se aperceberam que o i pad e o gafam não comem nem aquecem as casas..

    O corte de gás é o que é visível quando analisamos o fim da indústria em Portugal, mas não esqueçamos:

    Mais desemprego, mais desemprego, menos receitas fiscais e portanto mais impressão de dinheiro, mais queda do euro, a Europa em auto-mutilação, a Europa é um enorme tabuleiro de dominó e todos eles começam a cair um após o outro..

    Parece que a Gazprom vai continuar com as entregas de gás à UE. 43 milhões de m3 através da Ucrânia…
    Parece que só a Argélia envia 43 mil milhões de m3 para a UE. E estes 43 mil milhões representam 5%. Mais vale dizer que a Rússia cortou efectivamente o fornecimento de gás, ou seja 0,01% das necessidades da UE dão ou recebem alguns m3…
    Esta deve ser a quantidade mínima para manter a rede de distribuição de gás funcional durante a guerra e as sanções.
    É também uma forma de pressionar a Ucrânia dos outros estados membros da UE para os poucos m3 de gás e evitar que a Ucrânia sabote as condutas de gás dizendo que são os russos (quando um “exército” usa civis como escudos, não se pode confiar nele para nada, temos exemplos disso no Médio Oriente)

    Contudo, quando se diz que o preço da energia subiu devido à guerra, eu discordo. O preço subiu por causa das sanções da UE, que disse que encontraria os 150 mil milhões de m3 de gás noutros locais, para fazer curvar Putin. Quando as sanções dizem respeito a peças sobressalentes, carros, computadores … não muda nada a nível global. Mas a energia tocante, que estava no meio da inflação por causa do estímulo pós-covid, foi a última coisa a fazer.

    Então Zelensky apareceu no grande ecrã, acusou os vacilantes de serem assassinos de crianças, e todos ficaram atónitos. Em vez de pensar nas consequências das sanções, os nossos líderes pensaram em agradar a Zelensky.

    Se tivéssemos continuado a comprar e a pagar à Rússia pela sua energia, se não tivéssemos começado a guerra energética com Putin, será que Putin teria ousado começar? Talvez sim, talvez não. Em qualquer caso, se estamos em apuros, para mim a culpa é mais da Sra. Leyen do que de Putin.

    Quando ouço alguns dos meus concidadãos normalizar tantas injustiças e até acusar os desempregados, os mal pagos com benefícios sociais de serem aproveitadores ou assistentes que custam demasiado, digo a mim mesmo que são realmente sugestionáveis e que não pensam que amanhã, podem encontrar-se nos seus lugares. Ninguém está a salvo.. Os próximos aumentos irão prejudicar tanto a classe trabalhadora como a classe média alta. Como de costume. Custa muito ser um trabalhador ou uma pessoa de classe média baixa..

    Quanto mais rico for, mais benefícios e presentes recebe, sem compensação, é claro. Pagámos pela crise de 2008, etc, e quando o oposto acontece, os ajudantes de ontem afastam-se de ajudar os ajudantes anteriores, apesar dos lucros e dividendos recorde. Alguns dir-me-ão que isto é normal, e que se as empresas estão a ir bem, a economia está a ir bem. É verdade, mas não há reinvestimento. O prometido efeito “trickle-down” não está a chegar. Os esforços não estão a ser feitos e quem vai pagar no final? As mesmas pessoas uma e outra vez. E achamos isto normal? Para mim não é !

    Agora com o aumento do custo das matérias-primas, riscos climáticos, carências, professores recrutados sem médicos no SNS (, digamos a degradação do serviço público em geral), etc., estamos no meio de uma crise. Acabou. Fim do jogo. Temos de pensar nas consequências, as nossas cidades estão condenadas a esvaziar-se e a desaparecer. Em geral, todas as estruturas complexas estão condenadas a desaparecer (porque consomem demasiada energia).

    O governo confrontado com a necessidade de reduzir o consumo de energia, criará um sistema de racionamento. Os ricos não se importam porque têm dinheiro para pagar, e são sempre os pobres que têm de apertar o cinto, por isso é a prova de que não somos uma verdadeira democracia. No entanto, que aqueles que sobreviverão sem grandes danos são aqueles que se podem permitir e os conselhos parecem-me bons, egoisticamente eu deveria sobreviver, mas continuo a achar isso fundamentalmente injusto.

    É claro que atingimos o limite do sistema! Os preços estão em alta, já pedimos demasiado emprestado, a inflação não nos permite deduzir mais nada dos nossos impostos, não nos resta mais nada senão deixar os preços da electricidade aumentar,pois já não terão a abundância da iluminação pública!

    Uma das bases de tudo isto estão os alemães que queriam ser os reis do gás, vendendo gás russo aos europeus enquanto faziam grandes lucros no processo, e tendo uma fonte de energia barata para tornar a sua indústria hiper competitiva para dominar o mercado ……???

    Um que já não ouvimos é o ex-chanceler, tão fantástico, disse ele.

    « É tudo culpa de Putin, é tudo »!
    Além disso, a UE pede-nos que sacrifiquemos os nossos duches quentes por duches frios, que passemos o Inverno sem aquecimento, em suma, que nos autoflagelemos, colocando a responsabilidade pela nossa “dor” auto-infligida em Putin. E com a repetição diária de “a culpa é de Putin”, passaremos a culpar os líderes eleitos e não eleitos da UE e dos EUA.
    Não é preciso ser chamado Freud para ver esta manipulação mental da população da UE.
    Mas para uma boa parte do povo, infelizmente, funciona!

    A produção cairá, através de falências e adaptação à procura. O desemprego irá aumentar. Assim, os salários irão baixar. Assim, o consumo irá diminuir. E assim por diante.
    Até que haja escassez, ou uma forte diminuição dos custos de mão-de-obra, e então voltará a ser interessante para as empresas instalarem-se na Europa, fabricarem a baixo custo e exportarem.

  2. Muito bom texto.

    «É que a populaça “informada” (isto é, a que lê a Anne Appelbaum, compra o Expresso e saltita entre os telejornais da SIC Notícias e da CNN Portugal e já sabe tudo sobre o assunto), está completamente intoxicada de “informação” de sentido único, e a salivar contra “os orcs”. Vá lá, temos que ser realistas, as pessoas não podem dar atenção tudo e as coisas são o que são.»

    Mas isto não é desculpa. Noutros países há mais sentido crítico e capacidade de procurar informação, do que em Portugal. Portugal é dos países onde a propaganda mais facilmente lavou a cabecinha a um maior número de pessoas. O povo Português é demasiado manso e comodista.

  3. Tudólogo: Nuno Rogério
    Putinólogo: José Milhazes
    Por alguma razão, na sua última intervenção na TV José Milhazes conseguiu pronunciar três frases sem a palavra Putin. Está a perder qualidades, o rapaz.

  4. É incrível como pouquíssimas pessoas conseguem enquadrar o caso “ucrânia” num processo mais geral do ocidente que desprezou continuamente a questão fundamental da segurança colectiva da europa e do mundo e que levou ao desaparecimento das normas negociadas na osce por TODOS os países pertencentes à organização, das regras do direito internacional e das bases da ONU. Só referir 3 situações: 1ª a aproximação da nato às fronteiras da Rússia com a ucrânia transformada numa sua monumental base militar 2ª a guerra civil, o não cumprimento dos acordos de minsk, o genocídio de 8 anos da população do donbass 3ª a possibilidade do regime de kiev, realmente nazi, poder vir a dispor de armas nucleares disponibilizadas por um qualquer exército da nato. A Rússia não teve outra saída senão começar a resolver, eliminar as ameaças que sobre ela pendiam. Ao desencadear a sua operação a Rússia protelou um enfrentamento nuclear com a nato/eeuu/inglaterra que são os seus verdadeiros inimigos de longa data. A ue é um pião ridículo e louco, bem ao nível de um zelensky, que corre o risco de naufragar em termos económicos e sociais e ter uma guerra a valer nos seus territórios.

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