O Burnay foi à tosquia e saiu tosquiado

(Major-General Carlos Branco, in Facebook, 25/08/2022)

(Henrique Burnay respondeu ofensivamente ao texto do General Carlos Branco que publicámos aqui. A resposta que teve e que segue abaixo é demolidora e pedagógica. Parabéns Senhor General. Que não lhe doa a pena e o verbo para desancar em tão ignara e servil gente.

Estátua de Sal, 26/08/2022)


Julgava o tema esgotado, mas parece que não. Tenho bloqueado quem neste mural ofende ou faz agressões verbais. Hoje tive de abrir uma exceção ao post do Dr. Henrique Burnay (HB), que veio ao meu mural apelidar-me de “vergonha de homem”. HB anda a ofender-me nas redes sociais, que lhe são próximas há meses (chama-me pulha e outros mimos). Hoje teve a desfaçatez de o vir fazer no meu mural do FB. Nunca o ofendi. Não é que não me faltasse vontade e pretexto. Procuro centrar-me no debate das ideias, e não em coisas ou pessoas. Neste tema, como noutros, encontramo-nos muito distantes.

A vinda HB ao meu mural suscita-me dois tipos de comentários. Um de natureza pessoal, neste caso incontornável, tendo em conta o seu comentário, e outro sobre a guerra na Ucrânia. HB é um dos exemplos mencionado no meu post inicial, de quem tem vivido à babuje do sistema, ao colinho e encostado ao poder, beneficiando das suas benesses e mordomias, de quem tem sempre dependido para viver. Entre outras coisas, foi assessor político de um deputado ao Parlamento Europeu (posteriormente seu colega numa empresa de lobbying) e assessor de uma ministra da justiça, que num ápice se transformou em banqueira, na Caixa Geral de Depósitos, coincidentemente com um período de festim que levou o banco quase à ruína, e que nós tivemos de chegar à frente e pagar a capitalização do banco. HB faz parte, ou gostaria de fazer parte da elite a que refiro no post inicial, a tal que nos conduziu onde nos encontramos como sociedade e como país. Também aqui nos encontramos a léguas de distância.

HR apresenta-se no seu CV também como professor universitário, convidado, de Lobbying. Convidado! O lobby dá de facto um jeito do caraças. O colinho do poder dá um conforto porreiro. Facilita mesmo muito a vida. Por isso, há que não agitar o status quo, para não perturbar a árvore das patacas.

Quanto à Ucrânia, mais alguns esclarecimentos para o HB. E estes são mesmo os últimos. Apesar de o ter reiterado inúmeras vezes nos artigos que tenho vindo a escrever, para que não restem dúvidas, a guerra na Ucrânia é uma condenável violação do Direito Internacional. Como são quase todas as guerras, tendo como referência a Carta das Nações Unidas. Como foram a invasão de Grenada (1983), o ataque à Jugoslávia (1999), a Guerra no Iraque (2003), a guerra na Síria (2011). O leque de violações não acaba aqui, curiosamente perpetradas sempre pelos mesmos. Estou curioso por ver o que HB escreveu sobre o Iraque, em 2003. Não passados 20 anos quando já sabíamos todos qual tinha sido o fim da história. Apoiou sanções e a ostracização dos EUA? algo parecido com o que está a acontecer agora? Ou limitou-se a condenar baixinho em murmúrio?

Convenientemente, HB finge que não sabe o que são guerras por procuração. Devia ter estado mais atento para perceber que estamos perante um conflito entre os EUA e a Rússia (e a China) para impedir a alteração da correlação de forças mundial. Como os EUA sabem quais poderiam ser as consequências de uma confrontação direta com estas duas potências, confronta-as recorrendo a proxis. Não morrem americanos, dá-se-lhes apoio político e financeiro. Falamos, pois, de um conflito entre a potência que defende o status quo e as potências revisionistas, correndo nós o risco de sermos arrastados todos para a hecatombe.

Ver os acontecimentos apenas pela lente do mau (agressor) contra o bom (a vítima), é uma forma básica e simplista de ver o problema. É boa para a propaganda, mas insuficiente do ponto de vista explicativo. HB tinha por obrigação de ver mais longe. É um tipo com mundo. Mas também percebo porque não quer ver. Ai o lobbying! Corria o perigo de perder o emprego e o negócio. A guerra na Ucrânia tem muitas dimensões, uma delas a de guerra civil, que começou em 2014. Tenho escrito muito sobre o assunto, não me vou repetir. O meu pensamento está expresso em muitos artigos de opinião, que aconselho HB a ler antes de vociferar diatribes.

Esta guerra é fundamentalmente consequência de a obstinação de Washington querer integrar a Ucrânia na NATO, parte integrante do seu projeto hegemónico. Chamem-lhe autocracias, imperialismos, inventem as narrativas que quiserem. Mas é neste ponto que reside a coisa. Este conflito estava anunciado há décadas. Não por mim, mas por Kissinger, Mearsheimer, Stephen Walt, Keagan, muitos outros. Segundo HB também pulhas e homens sem vergonha. Como, aliás, alguns setores liberais da elite russa que não se revê em Putin.

Sabíamos que a insistência da entrada da Ucrânia na NATO ia dar nisto. Era fatal como o destino. Este é o pensamento da escola neorrealista das relações internacionais em que me insiro e revejo. Curiosamente são os neorrealistas os defensores da paz, e os liberais e construtivistas os defensores da guerra.

Era uma guerra anunciada, e não ocorreu logo em 2014 porque Trump ganhou as eleições. Sabíamos que se os democratas as tivessem ganhado, a probabilidade de a guerra ter ocorrido mais cedo era muito elevada. A camarilha do establishment das relações exteriores da Sr.ª Clinton, tomou novamente conta da casa com a subida de Biden ao poder. Não vale a pena armar-nos em virgens ofendidas e imaculadas, defensores dos grandes valores da democracia e da ordem liberal. Talvez não seja por acaso que alguém se descuidou e disse que o objetivo de Washington era derrotar militarmente a Rússia na Ucrânia. Não fui eu que escrevi.

A presente crise em que a humanidade se encontra, à beira de um confronto mundial, entre os EUA, Rússia e China, começou com o golpe de Estado de 2014, patrocinado pelos EUA (hoje Washington assume isso. Victoria Nuland e o embaixador americano andaram a distribuir sandes aos revoltosos em Kiev. A Sr.ª Nuland gastou $5Bis na preparação do golpe. Na altura de escolher os ministros para o governo, mandou a Europa à fava) que substituiu um presidente democraticamente eleito, que defendia uma política de neutralidade (non block policy), por outro que abrisse as portas à entrada da Ucrânia na NATO, e voltássemos à estaca zero. Podia falar-lhe do dilema de segurança, das zonas de influência (teoria Monroe), segurança para uns, segurança para todos, mas isso HB terá de estudar.

Para concretizar os seus desejos hegemónicos os EUA não olham a meios, aliando-se seja a quem for. O inimigo do meu inimigo é meu amigo. Sabemos o que tem sido o resultado desta abordagem. Estamos todos lembrados da Santa Aliança com os Talibãs, quando em 1996 chegaram ao poder, porque lhes cheirava a pipeline, que não se concretizou por causa da UNOCAL. O mesmo veio a acontecer na Ucrânia. Talvez o liberal HB consiga explicar a lei de 1.7.2021, “sobre os povos indígenas da Ucrânia”, disponível em https://zakon.rada.gov.ua/laws/show/1616-20#Text, que consagra uma política baseada na pureza racial da nação ucraniana em nome da superioridade genética dos ucranianos puros sobre os russos, considerados “sub-humanos”.

Essa lei (que o governo de Kiev tem vindo a aplicar, militantemente) defende, em exclusivo, os direitos fundamentais dos “povos originários da Ucrânia”, também designados por “povos autóctones da Ucrânia” ou “povos indígenas da Ucrânia” (cossacos e judeus caraítas), proibindo “a negação da etnia ou identidade étnica” destes povos. Só a estes o Estado garante proteção “contra atos de genocídio ou quaisquer outros atos de coerção ou violência coletiva”, “contra quaisquer ações destinadas a encorajar ou incitar o ódio racial, étnico ou religioso contra eles.”

Os demais ucranianos, nomeadamente os eslavos (em regra de origem russa e russo-falantes), não fazem parte da “nação pura”, são considerados como o fazia a Alemanha nazi, seres inferiores, humanóides, gente sem direito a ter direitos, o que é uma maneira de encorajar o ódio racial, a violência e o genocídio contra eles (os grupos nazis, integrados no aparelho de estado, não se cansam de pregar e de praticar a “cruzada branca” contra os pretos da neve).

HB e os seus amigos deviam ter vergonha de apoiar esta gente em nome da liberdade e da democracia, e fingirem que não percebem que com posições destas nos estão a conduzir para a fossa. O modelo industrial europeu baseado nas vantagens competitivas obtidas à custa do gás barato russo arderam. Agora vamos pelo cano de esgoto comprando gás aos EUA mais caro, mas é um gás da liberdade.

Limito-me a constatar factos. Eu percebo que as pessoas fiquem perturbadas quando perturbamos o repouso das suas certezas, construídas com as verdades que se “ouvem à noite nos telejornais”, para as quais HR está sempre disponível a contribuir. Quem sai desse registo e conta outras abordagens do problema é putinista. Por princípio, não tomo posição. Procuro apenas explicar os acontecimentos com (outros) argumentos. E aí é uma chatice. Cai o Carmo e a Trindade.

Não consegui ainda perceber o porquê de tanta acrimónia por causa da guerra na Ucrânia. Lembra-me os tempos do PREC em que famílias deixaram de se falar. Mas como a minha reforma e as minhas poupanças diminuem todos os dias, não é o caso de HR e de outros que vivem no quentinho do sistema, quero que esta guerra acabe, porque não pretendo sacrificar o meu futuro por causa da entrada da Ucrânia na NATO. Sugiro a HB a publicação deste texto nas suas páginas das redes sociais (FB, Twitter, LinkedIn), pode ser que contribua para o esclarecimento da sua audiência. Pelo menos, para não serem vulgares, boçais e comportarem-se com algum nível. Ninguém os tratou mal. Pensem que as suas certezas podem ter pés de barro. E já agora um bocadinho de respeito, porque enquanto HB andava pela Praça do Luxemburgo a fazer negócio e a tratar da sua vidinha, andava eu em Kabul a fazer queda na máscara por causa de um ataque do Hezbi Islami Hekmatyar ao local onde me encontrava.


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18 pensamentos sobre “O Burnay foi à tosquia e saiu tosquiado

  1. Que pena eu recusar usar o FB por uma questão de princípios. Este grande senhor Major General Carlos Branco escreve ainda melhor quando tem plena liberdade, do que quando tem as amarras editoriais do Jornal Económico.
    Obrigado Estátua, que bela leitura!

    Para a troca, recomendo esta leitura, do Coronel Austríaco Markus Reisner, um excelente analista militar cujo ponto de vista neutro q.b. sobre este conflito é uma lufada de ar fresco. Está em Alemão, mas isso não é nada que um tradutor automático não resolva. Vale mesmo a pena:

    https://www.bundesheer.at/cms/artikel.php?ID=11511

    • Deixo só um cheirinho da parte inicial do texto traduzido:

      “Os serviços de inteligência ocidentais estão constantemente a relatar as sérias fraquezas da gestão das operações Russas e estão até a prever que o ataque Russo irá em breve colapsar. Mas esse colapso não ocorre. O contrário parece ser o caso.”

      Compare-se este tipo de análise com a dos propagandistas e digam lá se a neutralidade q.b. não é uma lufada de ar fresco?

      Analisando factos, em apenas meio parágrafo fica explícita ou implícita tanta coisa:
      – mentiras fabricadas pela “intelligence”
      – imprensa limitada à difusão e repetição dessas mentiras
      – o colapso para breve das atuais linhas defensivas Ucranianas
      – os propagandistas ocidentais a dizerem o contrário, só para levar o público a acreditar na vitória e apoiar o envio de mais armas de nodo a garantir o prolongamento do conflito

      Nada que os mais atentos não soubessem já. Mas agora dito preto no branco por um militar ocidental de um país sem PCP. Vá, chamem “comunista” ou “putinista” a este também…

  2. Nil novum sub sole. Os generais outra vez nessa função ilustre de instruir i bambini nobili …. e o menino sempre tão distraído com o lobby!

  3. Dei-me ao trabalho de seguir a ligação para a lei de 1.7.2021, “sobre os povos indígenas da Ucrânia”. Está em ucraniano e traduzi-o todo com o Google. Não conheço a realidade étnica da Ucrânia para opinar mas aquilo que li pareceu-me ser a defesa de uma minoria da Crimeia:
    «1. O povo indígena da Ucrânia – uma comunidade étnica autóctone que se formou no território da Ucrânia, é portadora de uma língua e cultura originária, possui órgãos tradicionais, sociais, culturais ou representativos, considera-se um povo indígena da Ucrânia, é uma minoria étnica em sua população e não tem sua própria entidade estatal fora da Ucrânia. 2. Os povos indígenas da Ucrânia, que se formaram no território da península da Crimeia, são os Tártaros da Crimeia, os Caraítas e os Krymchaks.»
    Esta defesa baseia-se nos mesmos princípios (Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, entre outros diplomas) que, internacionalmente, são defendidos para outros povos autóctones minoritários como os ameríndios.
    Em nenhum ponto do texto li que «Os demais ucranianos, nomeadamente os eslavos (em regra de origem russa e russo-falantes), não fazem parte da “nação pura”, são considerados como o fazia a Alemanha nazi, seres inferiores, humanoides, gente sem direito a ter direitos».

    • Leia outra vez. Pense que a lei foi escrita por nazis e que os “não puros” da ucrânia foram amarrados a postes, perseguidos, mortos e desde logo PROIBIDOS DE FALAREM RUSO ou o dialeto que mistura ucraniano com russo. Bastava terem o aspecto ou não pronunciarem bem viva a ucrânia. Com tempo estude os tempos de hitler e a presunção de que só os arianos deviam viver. Se ainda permanecer ingénua, evite mostrá-lo porque o lobo mau pode apanhá-la e comê-la em 3 tempos. 1 abraço.

      • A sua (não) resposta está ao mesmo nível das dos que acusam de putinistas todos os que não idolatram o Zelenski. Contribui zero para a discussão. Nem perca mais tempo a responder se o nível continuar a ser esse.

    • Sabe que isso não é tão inocente como pensa…

      A história da evolução das diferentes etnias na Ucrânia é muito complexa, sendo que a Ucrânia, enquanto “nação”, surgiu no período compreendido entre o séc. IX e séc. XII.

      Todavia, antes disso, a Ucrânia, enquanto nação (nação entendida como o seu povo, e não como um território homogéneo e dotado de independência e autonomia), surge como consquência da ocupação do território ucraniano atual pelos povos Eslavos – estes, por sua vez, são povos originários de territórios como a Polónia, Eslováquia e Ucrânia Ocidental.

      Apesar disto, há dificuldades e discórdias entre historiadores no respeitante a determinar com certeza a origem destes povos eslavos.

      Por outro lado, os turcos foram responsáveis, desde muito cedo, por povoar a região da Crimeia e a zona sul da Rússia ao longo do mar negro e do mar cáspio – aquelas zonas do caúcaso, portanto: Arménia, Azerbeijão, etc. Daí resultaram os povos indígenas ucranianos mencionados como os habitantes autóctones da Península da Crimeia.

      Convém ainda referir que o território esbalecido entre o séc. IX e XII, conhecido como “Kievan Rus”, deu origem ao Reino de Ruthenia (ou Galicia Volhynia), que englobava os atuais estados bálticos, a zona leste da Polónia e a zona ocidental da Ucrânia e atual Bielorússia – não incluída a grande maioria da zona oriental da Ucrânia onde proliferavam os eslavos de leste, comummente apelidados de russos ou bielorussos.

      Portanto, a nação ucraniana é composta por uma mistura de várias etnias, estabelecidas em território ucraniano em períodos históricos concretos, entre elas as mencionadas no documento (embora essas se refiram apenas à península da Crimeia – que só se tornou Ucraniana porque um Krutschev embebado ofereceu a Península à Ucrânia, diz-se) e os Ucranianos propriamente ditos: os descendentes dos primeiros povos que se estabeleceram em “território ucraniano” no séc. IX após a saída dos Hunos e outros povos agressores dessa região.

      Qual é então o problema ? O problema é que a dita população étnica que é referida no documento pretende indicar aquela população ucraniana que tem uma história dentro da nação e território ucraniano: ou seja, aquelas pessoas que, desde o séc. IX, constituem a dita população Ucraniana.

      Problema: os russos não estão incluídos nisso – apesar de serem cidadãos ucranianos. Os russos (ou melhor, os seus descedentes – já explico mais abaixo o que quero dizer) nunca fizeram parte da nação ucraniana. Sempre foram uma minoria que nunca teve origem em território ucraniano e, historicamente, sempre foram imigrantes na Ucrânia.

      Agora, o documento não faz referência a populações ou comunidades imigrantes na história recente, mas apela, isso sim, à história mais longínqua que viu a criação de um povo indígena (ou povos) ucraniano propriamente dito – a prova disto é a clara referência e o exemplo com uma carga bem preponderante dos tártaros da crimeia, judeus caraítas e krymschaks (etnias antigas), que surgiram na zona da Crimeia em tempos idos e são, consequentemente, considerados como povos indígenas da Ucrânia.

      (Embora nunca tenham vindo da Ucrânia.)

      Problema ainda maior: em 2014, os russos (ou seus descendentes) constituíam cerca de 70% da população que habitava a península da Crimeia – e ainda uma maioria na região do Donbas (as repúblicas populares de Donetsk e Luhansk), falando maioritariamente o russo -, enquanto que os Tártaros da Crimeia, os Judeus Caraítas e os Krymschaks representavam uma minoria de cerca de 14% – ou seja, os “indígenas” eram uma minoria, enquanto que os não-indígenas representavam uma maioria na península e no Leste do País.

      Ora, no documento está referido que um povo indígena é «uma comunidade étnica autóctone que SE FORMOU NO TERRITÓRIO da Ucrânia, é portadora de uma língua e cultura ORIGINÁRIA [da Ucrânia, podemos imaginar], possui órgãos tradicionais [da Ucrânia], sociais, culturais ou representativos», ou seja, os russos e os seus descedentes (que é o que aqui interessa, uma vez que não há uma minoria de imigrantes russos, chegados a território ucraniano em anos recentes, a habitar a Ucrânia, mas sim os ditos russófonos – descendentes de antigos cidadãos soviéticos), que só foram habitar a Ucrânia em maiores números a partir da revolução de Outubro de 1917 e após a Segunda Guerra Mundial, não são considerados povos indígenas da Ucrânia porque:

      a) não são povos autóctones, uma vez que os russos nunca vieram da Ucrânia – nunca originaram de território ucraniano, mas sempre lá chegaram vindos da Rússia (eu sei, é chocante);

      b) a sua comunidade, historicamente, desde a formação da nação ucraniana, não tem origem em território da Ucrânia (claro, são da Rússia);

      c) não são portadores de uma língua e cultura originárias da Ucrânia (uma vez que no Donbass e na Crimeia a língua predominantemente falada é, precisamente, o russo);

      d) não possuem orgãos tradicionais sociais, culturais ou representativos, uma vez que habitam a Ucrânia há mais ou menos 70/80 anos, logo, não têm orgãos sociais e culturais tradicionais (históricos, mais uma vez) que justifiquem a sua classificação como um povo indígena.

      Tendo tudo isto em consideração, os russos (ou os seus descendentes) não têm os direitos previstos nesta lei pelas razões enumeradas e, como tal, não são consequentemente por ela protegidos.

      Não têm direito a representação política na Verkhovna Rada da Ucrânia, pois o “Estado PROMOVE A REPRESENTAÇÃO dos povos indígenas da Ucrânia” (e não diz nada acerca de promover a representação dos descendentes de imigrantes que, não obstante serem cidadãos ucranianos, não são considerados um povo étnico no seu meio porque não têm uma origem histórica na Ucrânia – tendo em conta a definição de povo indígena presente no documento), não têm direito a representação na dita “Verkhovna Rada da República Autónoma da Crimeia” (portanto, os russos da Crimeia não têm representação política) e nos órgãos de governo autónomo local da República Autônoma da Crimeia e da cidade de Sebastopol – a cidade de Sebastopol que, por acaso, nunca foi Ucraniana, mesmo após a oferta da península à Ucrânia, mas sempre se manteve Russa.

      Compreende porque é que esta última questão pode representar um pequeno problema legal e uma grande provocação à Rússia ?

      Já para não mencionar que, como consequência do referendo realizado na Crimeia em 2014, a população da Crimeia votou com esmagadora maioria e apoio para ser integrada como um território autónomo dentro da Federação Russa.

      Espero que tenha ficado esclarecida quanto à questão dos povos indígenas.

      A partir daqui, as autoridades ucranianas tinham carta branca para procederem à concretização da campanha de discriminação (claro eufemismo) que com tanto afã procuraram levar a bom termo durante 8 anos de Guerra Civil.

    • Acrescento algo que falhou a propósito da seguinte frase: “considera-se um povo indígena da Ucrânia, é um minoria étnica em sua população e não tem sua própria entidade estatal fora da Ucrânia”.

      Quer isto dizer: para além da população ucraniana (os “verdadeiros ucranianos”), um povo indígena é uma minoria (o caso dos Tártaros/Krymschaks e Judeus Caraítas) cuja etnia teve origem histórica em território ucraniano e cuja entidade estatal não esteja fora da Ucrânia – mais uma vez se comprova que os russos/russófilos/russófonos ou o que mais se lhes queira chamar não são considerados um povo indígena da Ucrânia e, mesmo em comparação com o povo ucraniano (uma vez que são uma minoria na Ucrânia – mesmo não o sendo no Leste ou na Crimeia), não são considerados Ucranianos.

      Portanto, o seu estatuto legal é de ilegal e não-cidadãos.

        • De nada.

          Se tiver curiosidade para tal, encontrei estas informações numa busca rápida na internet.

          Bem sei que a Wikipédia vale o que vale, mas, segundo um censo de 2001, calculava-se a presença de russos étnicos na Ucrânia como rondando os 17% – torna-se difícil determinar qual a percentagem desde então.

          https://en.wikipedia.org/wiki/Russians_in_Ukraine

          Enquanto isso, o Oblast de Donetsk calculava ter uma percentagem populacional de quase 39% identificando-se como de etnia russa.

          https://en.wikipedia.org/wiki/Donetsk_Oblast

          Juntei este link já que mencionei que os russos não eram uma minoria no Leste e na Crimeia – no caso da Crimeia é verdade (não o são), mas no caso de Donetsk já são considerados uma minoria.

          Tal só reforça a noção de que, enquanto minoria étnica não originária em território ucraniano e sem organizações sociais e culturais originárias da Ucrânia, não eram (nem são) considerados como um povo indígena da Ucrânia, não lhes sendo conferidos os mesmos direitos que às outras minorias étnicas do país – tudo isto embora fossem cidadãos tão legítimos como qualquer outro que lá habitasse.

          Pelo facto de não terem laços de sangue com povos “indígenas” da Ucrânia, não eram considerados como cidadãos do território.

          É terrível.

          Seria o mesmo que afirmar que descendentes de imigrantes de segunda ou terceira geração, vindos de Espanha para Portugal (por exemplo), não são cidadãos de um país, mesmo que tivessem cá nascido, estivessem devidamente integrados, falassem a língua como qualquer outro (embora mantivessem a língua dos seus pais e avós) e conhecessem a cultura do país que habitavam como aquela que os seus pais lhes legaram.

          Cumprimentos.

          • Parece-me que se tratará de um aproveitamento das leis e outras directivas internacionais destinadas a proteger minorias indígenas em países colonizados, minorias essas, efectivamente discriminadas por séculos de colonialismo, para justificar privilégios a minorias autóctones que, à partida, não sofrem qualquer discriminação. Esta é uma conjectura minha, não tenho a certeza se será isso. Seria mais como se uma futura Catalunha independente criasse leis para proteger os catalães “originais” em relação aos muitos espanhóis de outras regiões que vivem na Catalunha há gerações mas que nunca falaram catalão porque não é a língua que aprenderam em casa e não precisam de falar catalão para fazer a sua vida. Será isso?

  4. Será que com o gás americano as batatas cozem mais rápido?
    Estaremos às portas de o cozido à portuguesa ser considerado de refeição rápida?

  5. O comentário que segue foi despejado em 2014, a propósito da Crimeia, numa discussão noutro blogue. Como é relevante para a conversa acima, aqui vai de novo em copy paste, com ligeiras alterações que visaram, principalmente, suavizar-lhe o vernáculo, que estava um bocado cru. Note-se que o que abaixo escrevo resulta apenas da investigação de um leigo curioso e não tem pretensões de rigor histórico absoluto, podendo, por isso, ser objecto de justas críticas e rectificações de gente com a formação histórica que não tenho.

    ————————————————————————————————————

    Cara (…), há coisas que sei e outras de que não percebo nada, o que acontece demasiadas vezes para o conforto do meu ego. Quando assim é, o remédio é simples: procuro o máximo de informação sobre o assunto e só depois emito opinião. E se as montanhas de papel que tenho em casa não chegam para me iluminar os neurónios, mergulho na Estralinética e pimba: hoje em dia, nada mais fácil. Por isso, habituado, como te disse há dias, a outro género de rigor da tua parte, espanta-me que possas dizer barbaridades como esta:

    “Os russos (…) há muito que trataram de colonizar a península [Crimeia] com o envio maciço de cidadãos seus.”

    É falso que os russos “trataram de colonizar a península com o envio maciço de cidadãos seus”. É assunto tão susceptível de discussão como a afirmação de que os japoneses nunca bombardearam Pearl Harbor ou que foram os russos (vade retro!) a crucificar Jesus Cristo. Há muito que os russos são maioritários na Crimeia, os ucranianos sempre foram lá minoritários, e contra isto batatas. Estaline deportou para o Cazaquistão, no fim da II Guerra Mundial, à volta de 200 mil tártaros da Crimeia, por colaboração com os nazis. Mas deportou tártaros e não ucranianos. Os tártaros foram ali maioritários até ao século XIX, tal como os índios eram maioritários antes de Colombo, e não estou a ver as Américas de hoje a regressar à demografia pré-colombiana.

    De acordo com uma das fontes que consultei, a evolução demográfica da Crimeia foi a seguinte:

    __________________

    1923:
    150 000 tártaros
    306 000 russos + ucranianos (não é feita a distinção nesse ano)
    __________________

    1939:
    218 179 tártaros
    558 481 russos
    154 120 ucranianos
    __________________

    1959:
    0 tártaros (deportados por Estaline para o Cazaquistão)
    858 273 russos
    267 659 ucranianos
    __________________

    1970:
    6479 tártaros (que entretanto começaram a regressar do exílio)
    1 220 484 russos
    480 733 ucranianos
    __________________

    1989:
    38 365 tártaros
    1 629 542 russos
    625 919 ucranianos
    __________________

    Noutra fonte, a famigerada Wikipédia (saliento que não há coincidência total entre as duas fontes, embora tendencialmente apontem no mesmo sentido), os números são os seguintes, em percentagem (números absolutos apenas nos primeiro e último censos, de 1897 e 2001):
    __________________

    1897:
    33,11% russos (180 963)
    11,84% ucranianos (64 703)
    35,55% tártaros (194 294)
    __________________

    1939:
    49,6% russos
    13,7% ucranianos
    19,4% tártaros
    __________________

    1959:
    71,4% russos
    22,3% ucranianos
    0% tártaros
    __________________

    1979:
    68,4% russos
    25,6% ucranianos
    0,7% tártaros
    __________________

    1989:
    65,6% russos
    26,7% ucranianos
    1,9% tártaros
    __________________

    2001:
    58,5% russos (1 180 441)
    24,4% ucranianos (492 227)
    12,1% tártaros (243 433)
    __________________

    Como podes ver, cara (…), a realidade é exactamente o contrário da tua tese da “colonização maciça”, pois a percentagem de ucranianos foi sempre aumentando em relação aos russos. Se adoptasse o teu critério, (…), poderia dizer que os ucranianos “há muito que trataram de colonizar a península com o envio maciço de cidadãos seus”, mas não o faço porque sou alérgico à asneira.

    Vários estudos salientam também que, nos últimos anos, tanto os russos como os ucranianos têm diminuído em número e em percentagem (principalmente devido à emigração), enquanto a percentagem e o número absoluto de tártaros têm aumentado, devido ao regresso dos descendentes dos deportados por Estaline e ao facto de terem tendencialmente mais filhos do que as famílias russas ou ucranianas [à época eram ainda apenas 12%].

    Por que motivo o número de russos e ucranianos na Crimeia (mais os primeiros do que os segundos) foi progressivamente aumentando, até ultrapassarem os tártaros, que anteriormente (julgo que até meados do século XIX) eram maioritários, talvez se possa perceber por isto: durante séculos, a principal actividade económica dos tártaros muçulmanos da Crimeia consistia em raides maciços para norte e oeste, regiões hoje integradas na Rússia ou na Ucrânia, para arrebanhar e raptar homens, mulheres e crianças dessas zonas maioritariamente cristãs. Eram depois vendidos como escravos, principalmente para o Império Otomano e o Médio Oriente. A demografia da Crimeia foi sendo progressivamente alterada pelos descendentes desses escravos, até ao ponto em que os tártaros (hoje muito acarinhados pela russofobia ucraniana que os quer usar como carne para canhão contra os russos) se tornaram minoritários. Note-se também que o chamado Canato da Crimeia (dos tártaros) não se resumia à península, incluindo uma parte do que actualmente se chama Donbass, nomeadamente a zona de Mariupol, e também a zona de Kherson.

    Assim, quanto aos “coitados” dos tártaros, hoje acarinhados como “povo autóctone” pelos neonzis ucranianos, a minha simpatia é equivalente à que sinto pelos alemães da época nazi e abstenho-me de lhes lamentar as “desgraças”. Sai copy paste da Wikipédia:
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    “Slave trade
    Until the late 18th century, Crimean Tatars maintained a massive slave trade with the Ottoman Empire and the Middle East. About 2 million slaves from Russia and Ukraine were sold over the period 1500–1700. Tatars were known for frequent, at some periods almost annual, devastating raids on the Slavic peoples to the north. In 1769 a last major Tatar raid, which took place during the Russo-Turkish War, saw the capture of 20,000 slaves.”
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    Repito o que disse há dias: “A Crimeia fez desde o séc. XVII parte do Império Russo e, com o advento da URSS, ficou naturalmente integrada na República Socialista Soviética da Rússia e não da Ucrânia. O bêbado do Kruschev é que, em 1954, de forma absolutamente arbitrária, subtraiu a Crimeia à Rússia para a “oferecer” à República Socialista Soviética da Ucrânia. Kruschev era russo, de uma aldeia perto da fronteira com a Ucrânia, mas a dada altura o pai foi trabalhar para as minas do Donbass e levou a família com ele. Note-se que foi na Ucrânia que Kruschev desenvolveu a maior parte da sua acividade política, tendo mesmo casado com uma ucraniana.”

    A dramatização político-mediática da situação na Crimeia não tem só o objectivo de impedir a independência da península mas sim, também, o de extremar de tal modo a situação que, se a independência e integração na Rússia, por qualquer motivo, não forem por diante, a relação Ucrânia-Rússia esteja de tal modo degradada que a continuação da base russa numa Crimeia ucraniana se torne insustentável. Expulsos os russos, a base de Sebastopol acabaria nas mãos da NATO (ou seja, dos EUA) e o objectivo de vedar o acesso russo ao Mediterrâneo daria um passo de gigante, muito mais cedo do que nos sonhos mais húmidos da velha prostituta ocidental.

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    Faço de novo notar que o que transcrevo acima foi escrito em 2014, quando o referendo na Crimeia, para posterior adesão à Rússia, nem tinha ainda sido realizado!

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