Quem quer ser professor?

(Por José Gabriel, in Facebook, 15/08/2022)

(Algumas das ideias deste texto têm subjacente as alterações legislativas recentes que permitem que os detentores de qualquer licenciatura possam exercer a função docente. Ver notícia aqui. )


Foram anos – sobretudo a partir do final dos anos 90 – a agredir e diminuir a profissão, anos em que, para lamber o traseiro aos eleitores tudo foi permitido aos politiqueiros, toda a arrogância analfabeta foi atirada contra quem trabalhou na sua formação científica e pedagógica – a ordem dos termos corresponde mesmo a uma hierarquia.

E, ainda assim, eles, os professores, espalharam-se pelo país, viveram e trabalharam em vilas e cidades onde os seus alunos, na maioria, tinham já mais escolaridade que os pais e geriram os conflitos que essa realidade implica. Eles trabalharam num país em que pouco mais de 1% da população em idade escolar chegou ao Ensino Secundário, em que os níveis de analfabetismo operativo atingiam uma grande percentagem da população – nos anos 70 ultrapassava os 30%.

Eles tiveram as costas largas, de tudo foram acusados e considerados culpados – menos daquilo que realmente fizeram, que foi tirar este país do vil e triste estado de iliteracia funcional em que vivia e ao qual parece querer regressar.

Foram amados e odiados, bajulados e agredidos. Tiveram o apoio e encorajamento de muitos pais e alunos e a hostilidade de outros tantos. De tudo tiveram de retirar alguma coisa de positivo e de educativo, em todos os casos tiveram de racionalizar a sua frustração sob pena de enlouquecer. Não raramente, diminuíram-se a si próprios por excesso de escrúpulo ou insegurança nos eventos que viviam. Por verem excepções transformadas em regra sempre que os garnisés de serviço tudo contaminavam com o preconceito da negatividade.

Tiveram ministros que não teriam habilitações para dar uma aula no Ensino Público, tiveram outros que nunca foram mais que ratos de gabinete ou políticos de aviário, outros ainda que ganharam a sua legitimidade em comentários televisivos de programas de treta. Tiveram alguns, poucos, que realmente cuidaram.

Avisaram, oh como avisaram, que o aviltamento da profissão, a desqualificação científica e desagregação dos programas e do sistema escolar democrático iam afastar os melhores da vocação de professor em todos os níveis de ensino. Viram espalhar por todo o país uma imitação de ensino para a docência, pseudo licenciaturas que desprestigiam o conhecimento, mas favorecem os votos locais, enquanto subfinanciavam as que tudo faziam para manter uma qualidade digna.

Poucas profissões essenciais para o progresso do país foram tão agredidas pelos vários governos como os docentes. O resultado aí está: o governo, borrado de medo com a situação que se desenha a curto prazo, começa – e continuará – a tomar medidas à pressa e, como tal, desastrosas.

Parece que há quem queira recuar aos tempos idos em que Salazar dava a qualquer licenciatura habilitação para disciplinas das quais os graduados sabiam menos que os seus alunos – não estou a exagerar, como os profissionais bem sabem. Bem-vindos ao resultado de décadas de estupidez, eleitoralismo e indigência governativa. Não por causa da democracia, mas apesar dela.

Eis o produto do vosso senso comum sobre os “cursos que não dão para nada”, “ai filha, porque vais para a faculdade de Letras?”. Aí tendes o resultado. Temos a maior percentagem de licenciados em Direito por metro quadrado da Europa, mas se uma escola quer um professor de Grego ou Latim bem pode procurar de vela. De Matemática, só os que para lá foram por amor à arte. De Ciências, tendes o resultado de “ó filho, se queres ir para aí vai para engenharia que sempre ganhas a vida”.

À situação a que chegamos não é estranha a escolha feita pelo poder sobre a gestão da Escolas. Escolheram, em vez de uma gestão democrática com o controlo e ajuda dos pares dentro de cada organização, uma gestão submissa, permeável às pressões dos vários grandes, médios e pequenos poderes, politicamente servil e intelectualmente medíocre. Porquê? Porque os melhores – com honrosas e corajosas excepções – se afastam, por não quererem submeter-se a esta vil tristeza. Isto não é exclusivo do sector do Ensino; veja-se o que se passa na Saúde, nomeadamente na gestão hospitalar.

Chegou, pois, a vossa vez, ó formados na universidade do Grande Coiso, na Escola Ensine Tudo Sem Aprender Nada, ó licenciados em Sociologia do Mobiliário Urbano que sempre sonhastes dar Filosofia e Psicologia. É que reina de novo aquela mentalidade que vos impede de projetar uma ponte ou tratar de um doente mas, para ensinar, qualquer um serve.

Há anos, quando o governo da altura bajulava pedagogos finlandeses – os nossos governos gostam muito dos exemplos “lá de fora” – uma das especialistas finlandesas presentes, teve este desabafo: “Nós temos, de facto, algumas experiências de sucesso; mas o que invejamos aos portugueses é eles terem os professores licenciados”. Pois é. Ou pois era. Mas vai deixar de ser. Ou melhor: os professores até podem ser licenciados, mas de que nos vale ter um engenheiro mecânico, por ilustre e competente que seja na sua profissão, a locionar História ou Literatura Inglesa? – sei que o exemplo é caricatural, mas quem já viveu coisas semelhantes compreende onde quero chegar.

É isto. Voltamos ao tempo dos bacharéis que para tudo serviam por “terem estudos”. Voltamos ao tempo dos Abranhos. A culpa? É dos professores, claro. Não é sempre? …

Nota: este texto reflete, como penso ser notório, a experiência de um professor do Ensino Secundário. E também sindical e associativa.


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3 pensamentos sobre “Quem quer ser professor?

  1. Aprender é essencial para desenvolver a inteligência, e pensar será a vocação de muitos de nós. Não é preciso ir para a universidade se não se sentir atraído por ela, mas ir para o fim do ensino secundário parece-me o mínimo para se ter uma cultura geral digna desse nome. O que devemos denunciar não é o sistema escolar, mas a formatação da educação nacional: quantas pessoas com excesso de instrução não compreendem nada sobre o mundo e estão desfasadas? Quem se deixa enganar pela sociedade? Por políticos? Quem não analisa as coisas correctamente? São superficiais?
    Penso que a que a escola não se adapta aos atípicos. Além disso, não nos explicam para que serve (e só mais tarde é que obtemos esta percepção), não o fazem de uma forma divertida (o sistema não foi concebido para fazer com que as pessoas gostem do assunto e concentram-se mais no desempenho individual e não no desempenho colectivo (não ensinam as crianças a conhecer realmente os seus pontos fortes). Mesmo que não seja dito, também nos mantemos demasiado fechados no tempo, o que é uma pena ao nível da cultura geral. (Atenção, não estou a dizer que não se deve saber um pouco sobre o passado, mas o presente também é importante).

    No entanto, ao fazer com que os alunos gostem ou não odeiem, estarão muito mais interessados (usamos frequentemente a memória de curto prazo quando não nos importamos), o colectivo é também muito importante porque aprendemos a solidariedade e acima de tudo os alunos dotados ou aqueles que têm um avanço na ajuda aos seus pares sentir-se-ão valorizados e não desistirão quando o nível for mais difícil. E explicar o que acabou de aprender é por vezes muito mais fácil do que ensinar algo que foi aprendido há 20 anos…

    Estamos a falar da escola e mais precisamente do sistema escolar e não dos professores que são desvalorizados e não têm permissão para melhorar a escola porque estão subordinados ao nosso querido Ministro da Educação.

  2. Estava eu a meio do meu estágio pedagógico, a última etapa na licenciatura educativa que iria terminar em Agosto seguinte onde, com mais umas centenas de jovens de olhos brilhantes e a transbordar de motivação, nos preparávamos para ingressar na aventura docente, quando Santana Lopes decidiu fazer mais umas travessuras orçamentais, o Sampaio torceu o nariz e mandou aquela barraca de direita construida à pressão com a fuga para pastagens mais verdes da ovelha mor do PSD, o nosso Durão, o Ted Cruz português, para o aterro.
    Eleições antecipadas, euforia no outro lado do espectro da mediocridade política, e pimba, em Março assistia a um Socrátes, extasiado com uma maioria absoluta, a prometer uma nova era de prosperidade a partir de uma varanda no Largo do Rato. O país e as minhas perspetivas profissionais tinham piorado radicalmente antes sequer do 3.º período, mas eu era simplesmente demasiado novo e inocente para o perceber.
    Esse estágio iria oficializar-me como “profissional educativo”, daí o nome da última etapa de qualquer curso educativo de jeito: o estágio profissionalizante. Diziam-me que iria ficar à frente de toda aquela gente que por ali andava a entupir as listas: os farmacêuticos que ainda davam Química, os contabilistas a ensinar derivadas no secundário ou os ex-jogadores do clube de futebol local que, de alguma forma, acabaram todos a dar aulas de Educação Física (a mim inclusive), relíquias de um tempo onde as salas de aula eram preferíveis à instabilidade natural das profissões no setor privado. Na sala de aula, “se te portares bem”, o emprego “é para a vida”, as palavras preferidas de qualquer português desprovido de ideais e ambição.
    Ironicamente, era a perspetiva de passar o resto da vida a fazer só aquilo que mais me afligia na profissão, mas isso era um problema que só teria de ralar-me mais adiante, pensava eu, no pináculo da minha ingenuidade.
    “Ah, mas eles não são profissionais”, diziam, “tu vais ser professor a sério, não te preocupes.”
    Mas não. Tive que me preocupar e muito. Porra, durante os 2 anos após terminar o estágio nem fiz outra coisa. Preocupado e Precário profissional.
    Mal o Sócrates entrou na marquise do Palácio de Belém e caiu o céu. O choque! Depois de 4 anos de gestão ruinosa de direita, surpresa, o défice estava descontrolado… outra vez. O défice publico descontrolado, a imagem de marca da maldita alternância que bloqueia este país desde 1974. Pronto, mas vá, haja esperança. Sócrates é de “esquerda”. Certamente vai arranjar solução para isto que não inclua mais do mesmo. Que desta não sejam os suspeitos do costume a levar nas trombas. Que por uma vez se pense a longo prazo neste antro. Não… o livro de truques dos políticos de alternância, no que toca a crises económicas, infelizmente só tem duas páginas: saúde e educação. Quando há dinheiro, toda a gente ganha, menos os médicos e professores, esses privilegiados como o amigo MST gosta de nos apelidar. Mas quando falta, lá vai o governo, com o apoio tácito de uma população bronca e ignorante, que só dá valor aos professores nas pandemias, quando ficam umas horas com os filhos na mesma divisão, aos bolsos do mesmos. A questão aqui é: quantos ciclos destes aguenta Portugal até colapsar? Quando dois dos dois pilares fundamentais da nossa sociedade só levam com o martelo e nunca com cimento? Algo me diz que iremos descobrir em breve.
    Enfim, findo o estágio, o resto é fácil de adivinhar: Maria de Lurdes Rodrigues como ministra = desemprego direto, humilhações sem fim (“ah, és professor… coitado…”), recusado de empregos merdosos por “excesso de qualificações”, um conceito tão ou mais português que o caldo verde, explicações, ultrapassado nas listas por advogados a dar Português e psicólogos a tomar conta da Filosofia, CAPs, EFAs, RVCCs, etc. E tudo sustentado a recibo verde, para pressionar na ferida aberta. E esfregar um pouco de sal todos os meses, sempre que deixava 150 € de contribuições obrigatórias na Segurança Social sobre recibos de 170 ou 200 €.
    Aturei 2 anos disto. Ao fim do 1º, depois de uma entrevista que parecia estar no papo, para uma posição que me permitia a entrada na carreira de investigador se corresse bem, mas para onde fui convidado apenas porque ninguém se tinha dado ao trabalho de ler o meu CV como deve ser. Tomei a decisão de tirar um Mestrado Integrado em Engenharia assim que vi a desilusão evidente na cara de um dos entrevistadores, quando decidiu finalmente ler o documento, a meio da entrevista, diga-se, e lá chegou à linha “Professor de…”. Quase! Estava tudo a correr tão bem… se ao menos o tipo não fosse professor…
    Paciência. A partir daí nunca mais olhei para trás. Foi estudar, tratar da papelada e um ano depois estava a ter aulas de engenharia ao lado de miúdos que podiam ter sido meus alunos um par de anos atrás. A ironia? Paguei o Mestrado em Engenharia, mais 5 anos como estudante precário, a dar explicações e formações como o professor que Portugal teimava em não querer. Muita desta decisão partiu da irritação constante, da assumpção nojenta que como professor estava limitado intelectualmente a isso e nada mais. Pois aqui está um reles professor, aceite numa das melhores faculdades de engenharias publica do país e que terminou um mestrado integrado em 5 anos com melhor média que anos antes como educador.
    Nesta altura não consigo conceber um cenário onde pondere sequer entrar numa escola, quanto mais aceitar voltar a dar aulas. Estranhamente, nos últimos anos tenho recebido ofertas por parte dos poucos colegas que se agarraram com unhas e dentes durante a tempestade Maria Luísa. Estes aturaram muito mais que eu estive disposto, e agora presenciam a inversão da situação que tanta desilusão nos obrigou a engolir. Agora andam com os diretores e secretarias, desesperados com tanto horário, o novo ano lectivo a começar dali a semanas, e professores nem vê-los. Tudo o que é administrador anda aflito, a implorar aos poucos professores que ainda mantêm, para sondarem “os amigos e colegas”, mesmo aqueles que já se desenrascaram para outro lado. Nem que seja só um par de horas em part-time, dizem agora. A janela de oportunidade foi curta, mas hoje está mais que fechada, selada até. As minhas perspetivas profissionais inverteram mal acabei o 2º curso superior em 12 anos. Dei a minha última formação e explicação no dia em que fiz contas à vida e apercebi-me que tinha dinheiro suficiente acumulado para pagar o resto das propinas, rendas e demais despesas até receber o diploma. O próximo emprego já foi como engenheiro.
    Ocasionalmente ainda sai. Quando tenho de apresentar qualquer coisa em público ou explico algo a um colega. Depressa se apercebem que estou demasiado à vontade com aquilo e eu lá revelo que andei 2 anos a tentar safar-me como professor, mas infelizmente num país que não consegue ver além de 3 meses no futuro.
    A alternância portuguesa infelizmente não está apenas limitada à política…

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