A paz antes da justiça

(Viriato Soromenho Marques, in Diário de Notícias, 23/04/2022)

Sobre as razões da desordem do mundo, o nosso Padre António Vieira (1608-1697) soube definir com clareza, não só as duas categorias principais que permitiriam substituir o caos pela ordem como também a respetiva prioridade entre elas: “Abraçaram-se a justiça e a paz, e foi a justiça a primeira que concorreu para este abraço. Porque não é a justiça que depende da paz (como alguns tomam por escusa) senão a paz da justiça” (Sermão ao Enterro dos Ossos dos Enforcados).

A tese de que é à justiça que cabe criar as condições para a paz, parece ser confirmada tanto pela razão como pela longa experiência da história doméstica dos povos. A injustiça praticada por classes e fações sobre outras pode conviver, temporariamente, numa aparente ausência de conflito, mas nunca como uma paz solidamente ancorada. Contudo, já no plano internacional essa regra não se aplica universalmente. Vejamos o caso da guerra que nos tira o sono. A invasão russa da Ucrânia configura o crime de agressão de um Estado a outro, curiosamente, introduzido no direito internacional depois da II guerra mundial pela ação do jurista soviético Aron Trainin (1883-1957).

Em 2018, o Tribunal Penal Internacional (ICC), que julga indivíduos e não Estados, acolheu esse crime na sua jurisdição, levando com isso à possibilidade de chamar a juízo líderes políticos responsáveis por atos de agressão. Neste caso, a decisão de invasão da Ucrânia poderia ser imputada diretamente a Putin. Esse tema tem sido referido abundantemente no Ocidente. Contudo, com isso corremos o risco de trocar as prioridades. Agora, deveríamos concentrarmo-nos no calar das armas, obtendo uma forma de paz, mesmo que frágil. Na verdade, como escreveu Hobbes, os Estados habitam na margem do brutal “estado de natureza”. O direito internacional é imperfeito, pois não é acompanhado de um poder de coação universal. Dos julgamentos já realizados no âmbito de crimes de guerra, de Nuremberga e Tóquio à Jugoslávia, a justiça só foi aplicada aos vencidos.

Pensar que Putin pode ser levado a julgamento implica levar esta guerra até uma vitória sobre a Rússia, com o envolvimento direto das forças da NATO. Certamente, dada a imensa vantagem da NATO em homens e material, a Rússia seria derrotada no campo de batalha convencional. Contudo, a probabilidade de Putin responder ao que designa repetidamente como “ameaça existencial”, passando ao uso de armas nucleares táticas, é demasiado elevada. Estaremos prontos para uma escalada de destruição capaz de incendiar pelo menos a Europa, comprometendo a vida de centenas de milhões de pessoas? É a pergunta que nos deveremos colocar, bem como aos nossos governos.

Até 1989, ao contrário de hoje, não era preciso explicar aos políticos que quando estão envolvidas superpotências atómicas não podem existir vencedores, apenas vencidos. O apoio militar da NATO à Ucrânia numa guerra defensiva foi decisivo para confirmar a sua irrecusável soberania. Prolongar o conflito, para exaurir uma Rússia com visíveis fragilidades, significará mais vidas perdidas e um risco de escalada.

Chegou o tempo de a diplomacia parar a espiral de sofrimento. A paz tem, neste caso, prioridade sobre a justiça, e deve dar-lhe tempo. Perseguir incondicionalmente a justiça pela força das armas, seguindo até ao fim o lema de “faça-se justiça, mesmo que o mundo pereça” (fiat justitia, et pereat mundus) apenas conduzirá à mais desoladora paz possível, aquela em que os sobreviventes terão inveja dos que pereceram.


Professor universitário


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5 pensamentos sobre “A paz antes da justiça

  1. Agora sim, a ES começa a publicar algo que faz sentido, chamando os bois pelos nomes. VSM não fala em provocações, não fala em desnazificação, não fala do Batalhão Azov, mas utiliza claramente a palavra invasão. Já é um começo.

  2. Nestes tempos em que a razão parece ter abandonado as chancelarias ocidentais e as redações europeias, nestes tempos em que a histeria em massa anti-Putin parece tomar o lugar de uma reflexão profunda e uma resposta política incontornável, vou simplesmente recordar algumas realidades que o mundo delira parece ter esquecido.

    Mas não vamos encurralar demais o urso russo, porque a Ucrânia não vale um holocausto nuclear. É bom lembrar aos belicistas que brincam com fogo, o fogo nuclear claro. Quando a paz retornar e os ânimos se acalmarem, os historiadores analisarão essa guerra para identificar objectivamente as verdadeiras responsabilidades.

    A demonização ultrajante de um inimigo não faz parte da panóplia para uso de historiadores dignos desse nome.

    Enquanto isso, nao esqueçamos:

    Foram os Estados Unidos que recusaram em 1990 que a Rússia fosse atrelada à Europa.

    Foram novamente os Estados Unidos que prometeram a Gorbachev nunca expandir a NATOpara o Leste.

    Quando o Pacto de Varsóvia foi dissolvido em 1991, o Ocidente manteve a NATOos seus 16 membros, a maioria europeus. Vencedores da Guerra Fria, os EUA, em vez de construir a paz, integraram 14 países da ex-URSS à Aliança e instalaram os seus mísseis nas fronteiras da Rússia, que já não ameaçavam ninguém.

    Em 2022, cinco países da NATO ainda têm armas nucleares dos EUA em seu solo. Quem está ameaçando quem?

    Desde 1990, a NATO não é mais uma aliança defensiva, pelo contrário, é uma ferramenta ofensiva sob as ordens de Washington para governar o mundo.

    A NATO é sempre o agressor, na Sérvia, na Líbia, no Iraque, na Síria, no Afeganistão. Com os sucessos que conhecemos…

    Em 1999, a NATO bombardeou a Sérvia aliada a Moscou com uma armada de 800 aviões e dilacerou o país ao amputá-lo da província de Kosovo, que se tornou um estado mafioso, sede de todo o tráfico: seres humanos, armas, narcóticos e órgãos .

    O Ocidente chora pelo destino da Ucrânia, mas aplaudiu os bombardeios da infeliz Sérvia, injustamente acusada de genocídio. Esses atentados criminosos contra um pequeno país que não havia atacado ninguém duraram 78 dias. Os aviões da OTAN voaram 38.000 missões, resultando em inúmeras baixas e baixas civis.

    A recuperação da Crimeia por Moscou é, portanto, apenas o justo retorno do bumerangue pela independência de Kosovo, imposto a Belgrado em total violação do direito internacional e em desafio à Rússia, ainda muito enfraquecida para se opor a essa ignomínia.

    Quando Putin se recusa a ver a Ucrânia se tornar uma base avançada da NATO nas fronteiras da Rússia, foi exatamente isso que Kennedy recusou em 1962, quando Khrushchev queria instalar seus mísseis nucleares em Cuba.

    Não, não foi Putin quem enterrou os acordos de Minsk. É a Ucrânia que nunca os respeitou, recusando-se a conceder autonomia ao Donbass pró-russo.

    O Ocidente lamenta o destino da Ucrânia, mas desde 2014 os habitantes de Donbass também sofreram bombardeios ucranianos perpétuos sem que a Europa ou a América se comovessem com isso. 13.000 mortes em 8 anos.

    O que pensa Zelensky, aquele que faz chorar todas as chancelarias ocidentais?
    O regimento Azov, que tortura e decapita soldados russos, choca nosso grande lutador pelos direitos humanos, ou algumas vítimas são mais dignas de interesse do que outras?

    • “É bom lembrar aos belicistas que brincam com fogo, o fogo nuclear claro.” Portanto, os belicistas são os outros, o Putin é um amante incondicional da paz, um cordeirinho ???? Pena o regimento Azov não vir cá a Portugal, para decapitar quem escreve barbaridades destas………….

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