(António Guerreiro, in Público, 18/03/2022)

É tempo de ler Günther Anders. Este filósofo alemão, que viveu entre 1902 e 1992, foi aluno de Husserl e Heidegger, e primeiro marido de Hannah Arendt. Uma boa parte da sua obra foi dedicada à reflexão sobre a condição nuclear e o perigo para a humanidade que representava a bomba atómica, no tempo da guerra fria. Chegou mesmo a manter uma correspondência (posteriormente publicada) com o piloto da Força Aérea americana que lançou a bomba sobre Hiroshima, Claude Eatherly.
Esses escritos sobre a bomba e sobre a nossa existência sob o signo da bomba têm um tom tão apocalíptico que até a teoria do “equilíbrio do terror” como estratégia dissuasiva parecia muito mais tranquilizante. É verdade que ele utilizou o “método do exagero”, como reconheceu no início de um ensaio “sobre a bomba e as causas da nossa cegueira face ao apocalipse”, incluído depois no segundo volume de A Obsolescência do Homem (traduzo o título tanto da tradução inglesa como da tradução francesa, já que no original é Die Antiquiertheit des Menschen). Consiste esse método em acentuar os traços daquilo que se está a apresentar, de modo a dar um enfático destaque ao que é geralmente minimizado na sua importância.
Putin é o primeiro responsável pela actualidade de Anders, desde que, em jeito de ameaça, numa conferência de imprensa no dia 7 de Fevereiro, após um encontro com Emmanuel Macron, fez alusão ao perigo da escalada nuclear, “em que não haverá vencedores”, disse ele, remetendo implicitamente para a actual doutrina de estratégia militar que baseia a ideia de dissuasão no facto de o uso em larga escala de armas nucleares por dois ou mais países causar a completa aniquilação tanto dos que atacam como dos que se defendem. Esta forma de dissuasão tem um nome inglês que lhe fica muito bem: MAD, isto é, Mutually Assured Destruction.
A guerra nuclear tinha desaparecido do nosso horizonte por longo tempo. Por isso é que os textos de Günther Anders sobre essa questão, embora com um fôlego teórico e filosófico de notável dimensão, pareciam relíquias do imediato pós-guerra e do tempo da guerra fria. Mas agora chegou o momento em que uma nova realidade faz ressoar de outra maneira uma daquelas frases de que desdenharíamos até há pouco: “A bomba não está apenas suspensa sobre as nossas cabeças. A ameaça nunca terá fim. E só poderá ser adiada. O que pôde ser hoje evitado não o será amanhã. Amanhã, a bomba estará suspensa sobre a cabeça dos nossos filhos. Ninguém poderá desembaraçar-se dela. Por mais longe no tempo que forem as gerações por vir, por mais que elas fujam para lhe escapar, ela acompanhá-las-á na fuga”.
A esta inevitabilidade podemos chamar, com muita pertinência, destino trágico. Evidentemente, para Anders Hiroshima tinha marcado o nascimento de uma nova era da espécie humana: a era atómica. A essa nova era correspondia, segundo ele, uma nova geração histórica assim definida: “Nós somos os Titãs, seres omnipotentes, pelo menos enquanto não fizermos um uso definitivo dessa omnipotência”. A causa da cegueira geral face ao apocalipse, atribuía-a Anders a um “desfasamento prometeico”, isto é, um desfasamento entre o que nós podemos fazer e o que as nossas faculdades, com os seus limites, nos permitem sentir.
Nós, filhos de Prometeu, conseguimos com o nosso saber científico as mais elevadas e prodigiosas realizações, mas quanto ao resto continuamos a ser pequenos e não conseguimos estar à altura do Prometeu que há em nós. Uma prova dessa disjunção das nossas faculdades, encontra-a Günter Anders na resposta que um piloto de um bombardeiro deu a um jornalista que lhe perguntou o que é que ele pensava quando estava a executar a sua missão: “Não conseguia tirar da cabeça os 175 dólares que me faltava pagar pelo frigorífico”.
Porquê então a cegueira? Porque embora a bomba signifique o apocalipse (nenhuma outra palavra podia servir tão bem o “método do exagero”), a ideia de apocalipse é para nós uma simples palavra. Temos uma imaginação demasiado fraca quando comparada com o que podemos produzir. O desfasamento prometeico é uma disjunção entre o “saber” e o “compreender”. Curiosamente, esta explicação de Anders parece às vezes decalcada do modo como Kant analisa o sentimento do sublime.
Percebemos então que há o sublime da bomba, a bomba como irrepresentável. E isso é um perigo: um dia, chega a presidente de uma potência atómica um louco com a mania grandiosa de que é artista e activa o botão vermelho para realizar a sua obra de arte total.

Pensar no pagamento das prestações em falta do frigorífico enquanto se lança uma bomba atómica.
Uma variante da banalidade do mal …