Por quê os EUA e a NATO nunca foram sancionados por iniciarem guerras?

(Robert Bridge, in Resistir, 04/03/2022)

O Ocidente tomou uma posição extrema contra a Rússia por causa de sua invasão na Ucrânia. Essa reação expõe um alto grau de hipocrisia, considerando que as guerras lideradas pelos EUA no exterior nunca receberam a resposta punitiva que mereciam.

Se os eventos atuais na Ucrânia provaram alguma coisa, é que os Estados Unidos e seus parceiros transatlânticos são capazes de atropelar um planeta em estado de choque – no Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria, para citar alguns dos pontos críticos – com impunidade quase total. Enquanto isso, a Rússia e Vladimir Putin estão sendo retratados em quase todos os media principais como a segunda vinda da Alemanha nazista por suas ações na Ucrânia.

Primeiro, vamos ser claros sobre algo. A hipocrisia e os padrões duplos por si só não justificam a abertura das hostilidades por nenhum país. Por outras palavras, só porque os países do bloco da NATO vêm abrindo caminho de destruição arbitrária em todo o mundo desde 2001 sem sérias consequências, isso não dá à Rússia, ou a qualquer país, licença moral para se comportar de maneira semelhante. Deve haver uma razão convincente para um país autorizar o uso da força, comprometendo-se assim com o que poderia ser considerado “uma guerra justa”. Assim, a pergunta: as ações da Rússia hoje podem ser consideradas “justas” ou, no mínimo, compreensíveis? Deixarei essa resposta para o melhor julgamento do leitor, mas seria útil considerar alguns pormenores importantes.

Só para os consumidores de fast food dos media convencionais seria uma surpresa que Moscou vem alertando sobre a expansão da NATO há mais de uma década. No seu, agora famoso discurso, na Conferência de Segurança de Munique em 2007, Vladimir Putin perguntou de modo pungente aos poderosos globais reunidos à queima-roupa: “por que é necessário colocar infraestrutura militar junto de nossas fronteiras durante essa expansão [da NATO]? Alguém pode responder a esta pergunta?” Mais adiante no discurso, ele disse que a expansão dos ativos militares até a fronteira russa “não está relacionada de forma alguma com as escolhas democráticas de estados individuais”.

Não só as preocupações do líder russo foram recebidas com a quantidade previsível de desrespeito no meio do som ensurdecedor dos grilos, como a NATO concedeu adesão a mais quatro países desde aquele dia (Albânia, Croácia, Montenegro e Macedônia do Norte). Como experiencia mental que até um idiota poderia realizar, imagine a reação de Washington se Moscovo estivesse construindo um bloco militar em expansão contínua na América do Sul, por exemplo.

A verdadeira causa do alarme de Moscovo, no entanto, veio quando os EUA e a NATO começaram a inundar a vizinha Ucrânia com uma deslumbrante variedade de armas refinadas em meio a pedidos de adesão ao bloco militar. O que diabos poderia dar errado? Na cabeça de Moscovo, a Ucrânia começava a representar uma ameaça existencial para a Rússia.

Em dezembro, Moscovo, rapidamente chegando ao fim de sua paciência, entregou rascunhos de tratados aos EUA e à NATO, exigindo que eles interrompessem qualquer expansão militar para o leste, inclusive pela adesão da Ucrânia ou de quaisquer outros estados. Incluiu a declaração explícita de que a NATO “não realizará nenhuma atividade militar no território da Ucrânia ou outros estados da Europa Oriental, Sul do Cáucaso e Ásia Central”. Mais uma vez, as propostas da Rússia foram recebidas com arrogância e indiferença pelos líderes ocidentais.

Embora as pessoas tenham opiniões diferentes sobre as ações chocantes que Moscovo tomou a seguir, ninguém pode dizer que não foi avisado. Afinal, não é como se a Rússia acordasse em 24 de fevereiro e de repente decidisse que era um dia maravilhoso para iniciar uma operação militar no território da Ucrânia. Então, sim, pode-se argumentar que a Rússia se preocupava com sua própria segurança como justificativa para suas ações. Infelizmente, a mesma coisa pode ser mais difícil de dizer para os Estados Unidos e seus subordinados da NATO em relação ao seu comportamento beligerante ao longo das últimas duas décadas.

Considere o exemplo mais notório, a invasão do Iraque em 2003. Essa guerra desastrosa, que os media ocidentais classificaram como uma infeliz “falha de inteligência”, representa um dos atos mais flagrantes de agressão não provocada da memória recente. Sem se aprofundar nos pormenores obscuros, os Estados Unidos, tendo acabado de sofrer os ataques de 11 de setembro, acusaram Saddam Hussein do Iraque de abrigar armas de destruição em massa. No entanto, ao invés de trabalhar em estreita cooperação com os inspetores de armas da ONU, que estavam no Iraque tentando verificar estas alegações, os EUA, juntamente com o Reino Unido, Austrália e Polónia, em 19 de março de 2003 lançaram uma campanha de bombardeio ‘Choque e pavor’ contra o Iraque. Num piscar de olhos, mais de um milhão de iraquianos inocentes sofreram morte, ferimentos ou deslocamento por esta flagrante violação do direito internacional.

O Center for Public Integrity informou que o governo Bush, em seu esforço para aumentar o apoio público à carnificina iminente, fez mais de 900 declarações falsas entre 2001 e 2003 sobre a suposta ameaça do Iraque aos EUA e seus aliados. No entanto, de alguma forma, os media ocidentais, que se tornaram a voz raivosa da agressão militar, não conseguiram encontrar qualquer falha no argumento a favor da guerra – isto é, até depois de as botas e o sangue estarem no terreno, é claro.

Pode-se esperar, num mundo mais perfeito, que os EUA e seus aliados fossem submetidos a algumas duras sanções após esse “erro” prolongado de oito anos contra inocentes. Na verdade, houve sanções, mas não contra os Estados Unidos. Ironicamente, as únicas sanções que resultaram dessa louca aventura militar foram contra a França, um membro da NATO que recusou o convite, juntamente com a Alemanha, para participar do banho de sangue iraquiano. A hiperpotência global não está acostumada a tal rejeição, especialmente de seus supostos amigos.

Os políticos americanos, confiantes no seu divino excepcionalismo, exigiram um boicote ao vinho francês e à água mineral engarrafada devido à oposição “ingrata” do governo francês à guerra no Iraque. Outros agitadores da guerra traíram sua falta de seriedade ao insistir que o popular item de menu conhecido como “French Fries” (batatas fritas) fosse substituído pelo nome “Freedom Fries”. Assim, a falta do Bordeaux francês, juntamente com a tediosa reformulação dos menus dos restaurantes, parece terem sido os únicos inconvenientes reais que os EUA e a NATO sofreram por destruir indiscriminadamente milhões de vidas.

Agora compare essa abordagem de luva de pelica para com os EUA e seus aliados com a situação atual envolvendo a Ucrânia, onde a balança da justiça está claramente pesando contra a Rússia, – apesar dos seus avisos não irracionais de que se sentia ameaçada pelos avanços da NATO. O que quer que uma pessoa possa pensar sobre o conflito que agora ocorre entre a Rússia e a Ucrânia, não se pode negar que a hipocrisia e os padrões duplos que estão sendo levantados contra a Rússia por seus detratores perenes é tão chocante quanto previsível. A diferença hoje, porém, é que as bombas estão explodindo.

Além das severas sanções a indivíduos russos e à economia russa, talvez melhor resumida pelo ministro da Economia francês, que disse que seu país está comprometido em travar “uma guerra económica e financeira total contra a Rússia”, houve um esforço profundamente perturbador para silenciar notícias e informações vindas das fontes russas que possam dar ao público ocidental a opção de examinar as motivações de Moscovo. Na terça-feira, 1º de março, o YouTube decidiu bloquear os canais da RT e do Sputnik para todos os utilizadores europeus, permitindo assim que o mundo ocidental se apoderasse de outro pedaço da narrativa global.

Considerando a maneira como a Rússia foi vilipendiada no “império da mentira”, como Vladimir Putin denominou a terra dos seus perseguidores politicamente motivados, alguns podem acreditar que a Rússia merece as ameaças ininterruptas que agora recebe. Na verdade, nada poderia estar mais longe da verdade. Esse tipo de arrogância global, que se assemelha a algum tipo de campanha irracional de sinalização de virtude agora tão popular nas capitais liberais, além de inflamar desnecessariamente uma situação já volátil, assume que a Rússia está totalmente errada, ponto final.

Uma abordagem tão imprudente, que não deixa espaço para debate, sem espaço para discussão, sem espaço para ver o lado da Rússia nesta situação extremamente complexa, apenas garante mais impasses, se não uma guerra global completa, mais adiante. A menos que o Ocidente esteja buscando ativamente a eclosão da Terceira Guerra Mundial, seria aconselhável parar com a hipocrisia hedionda e os padrões duplos contra a Rússia e ouvir pacientemente suas opiniões e versões dos eventos (mesmo as apresentadas pelos media estrangeiros). Não é tão inacreditável como algumas pessoas podem querer acreditar.

[*] O autor é escritor e jornalista americano, autor de Midnight in the American Empire: How Corporations and Their Political Servants are Destroying the American Dream (Meia noite no império americano: Como as corporações e os seus serviçais políticos estão a destruir o Sonho Americano).   @Robert_Bridge


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10 pensamentos sobre “Por quê os EUA e a NATO nunca foram sancionados por iniciarem guerras?

  1. Portanto, segundo a sua opinião, um país não é livre de fazer as alianças que muito bem entende com outro ou outros países. Deve primeiro perguntar ao vizinho do lado se está de acordo com suas intensões, se não se sente ameaçado. Se o vizinho não estiver de acordo o melhor é não fazer alianças…

    Penso que a Rússia calculou mal as implicações do que se passou na praça Maidan. Nessa altura devia ter invadido a Ucrânia, pois tratou-se de um golpe de estado. Nesse momento teria sido legítimo repor a legalidade constitucional pela força das armas.

    Oito anos depois é tarde!

  2. Apenas uma breve dúvida. Sem achar que a política americana seja flôr que se cheire, que regime democrático eleito foi atacado pelos USA?
    Apenas para equilibrar as coisas..

  3. Este artigo é outro deplorável exercício de cinismo político publicado pelo “Estátua de Sal”.
    Basta o excerto seguinte, que abaixo reproduzo:
    “Assim, a pergunta: as ações da Rússia hoje podem ser consideradas “justas” ou, no mínimo, compreensíveis? Deixarei essa resposta para o melhor julgamento do leitor”.
    Tendo hoje presente o grau de violência da agressão russa contra a população civil da Ucrânia, a questão colocada por Robert Bridge ofende-nos, tamanha é a complacência obscena que o autor manifesta para com a natureza política do regime de Putin e a gravidade dos seus crimes.
    O que Robert Bridge escreve coloca-o na lista dos escribas de lucidez enviesada, que não se cansam de fazer a promoção hipócrita do seu anti-ocidentalismo moralmente falido.

  4. Lá porque os states tiveram um comportamento nalguns casos deplorável isso justifica os actos muito mais deploraveis do Putin?
    Palavras para que é um idiota, não português, transcrito por un idiota ainda maior que lamentavelmente é português.

  5. Os comentadores anteriores estão repletos de razão no reparo que fazem. Aliás, este blogue, que eu aprecio e frequento assiduamente, está a descredibilizar-se ao servir de caixa de ressonância de narrativas sobre erros do passado, quando o momento impõe a censura severa e a condenação veemente da inaudita violência que está a ser exercida sobre um estado soberano europeu e cristão por um país liderado por um tirano da pior estirpe.
    O momento não é para analisar e verberar os erros da política externa dos EUA/NATO, que, sem rebuço, todos condenamos e repudiamos. Tanto mais que esperançados de que vai haver um volte-face na política externa dos EUA e mesmo no da EU. Ora, a diferença é que se isto é normal e admissível que ocorra em países democráticos, o mesmo é inconcebível num país liderado por um autocrata de perfil mental obscuro e órfão de qualquer doutrina ideológica coerente, bastando atentar na subespécie de capitalismo que nele vigora.
    Blogue Estátua de Sal, com o devido respeito, a razão e a lucidez exigem que reavalie as suas opções de alinhamento sobre esta guerra. De resto, não precisamos que nenhum escriba, nacional ou estrangeiro, nos venha relembrar erros outrora cometidos no passado. O futuro da segurança da Europa e do mundo não podem ficar reféns de tropeções e entorses do passado.

  6. Resumindo: eu não recomendaria qualquer dos comentadores acima para tentar mediar um acordo de paz entre Putin e o “mundo livre”…

  7. O artigo de Robert Bridge faz-me lembrar (em caricatura) a situação de um homem a assediar sexualmente uma mulher, e os comentários serem do tipo: Está bem ele não devia ter feito aquilo, MAS ela é uma galdéria, e depois com aquela saia curta e o decote, ai o decote… estava a pedi-las…
    A Estátua de Sal, sem fazer censura (isso é para o democrático Puttin), deveria divulgar mais as opiniões contrárias. Recomendo o último artigo do Pacheco Pereira “Tempos Interessantes”.
    José Carlos

  8. De facto, o unanimismo da opinião publicada, (reparem que não digo opinião pública) nos jornais, nas televisões, etc., no mundo ocidental, Portugal incluído, é bem a prova de como a comunicação social das ‘democracias liberais’, faz o trabalho que lhe compete: ser a voz do dono. E, ao invés de uma análise imparcial e isenta das motivações que se encontram na origem do conflito, e de uma preocupação em encontrar as causas para conseguir eliminar os efeitos e pôr termo ao conflito, faz exatamente ao contrário, deita cada vez mais gasolina para a fogueira.
    Este autor, Robert Bridge, tenta analisar a situação, fornece factos, tenta levar-nos a refletir, a temperar a emoção com a razão, e logo vêm os arautos da liberdade de expressão criticar o Estátua de Sal por dar voz a uma voz discordante da ‘maioria encartada’. De notar que estas vozes discordantes não pululam na comunicação main stream; por isso, faz todo o sentido que este blog lhes dê oportunidade de serem ouvidas e lidas e por isso lhe estou grata. Quer dizer alguns dos comentadores pensam que a liberdade de expressão só é respeitável quando essa expressão vai ao encontro da deles e, não contentes, têm ainda a ousadia de dizerem paternalisticamente aos outros qual deve ser o seu alinhamento nesta guerra, como se já não bastasse a manipulação a que constantemente somos sujeitos que inibe qualquer veleidade de a maioria das pessoas ‘ousar pensar pela sua cabeça’ e que ainda por cima, leva outras a constantemente se autocensurarem.
    Quanto a não interessarem, a não virem ao caso, os erros do passado, (erros americanos e graves, note-se, ou já se esqueceram da bomba atómica – segunda guerra mundial- e do napalm no Vietnam, para não repetir os mais recentes) esses erros foram responsáveis pela morte e sofrimento de milhões de pessoas, e vêm ao caso sim, porque na altura ninguém os denunciou, quando agora andam tao empolgados com a desgraça presente e tao ansiosos por denunciar os maus da fita. Dois pesos e duas medidas, o que faz suspeitar que as preocupações não são com a desgraça alheia, (até porque esta afeta os ‘bons’, mas também afeta os ‘maus’) são outras.
    E já agora concordo que “O futuro da segurança da Europa e do mundo não podem ficar reféns de tropeções e entorses do passado”, mas será bom não esquecermos que se não conhecermos o passado, estaremos condenados a cometer os mesmos erros. E também insisto em que “o futuro da segurança da Europa e do mundo não podem ficar reféns” de um império que, como todos os impérios, está, acima de tudo, preocupado com o seu poder e com a sua dominação que terá como contrapartida a nossa submissão e até subserviência.

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