A ameaça nuclear de Putin

(Scott Ritter (*), in Resistir, 01/03/2022)

Vladimir Putin é um louco. Perdeu o juízo. Pelo menos é isso que os líderes do Ocidente gostariam que acreditasse. De acordo com a sua narrativa, Putin – isolado, sozinho, confuso e zangado com o desastroso desdobramento militar que a Rússia estaria a sofrer na Ucrânia – atacou, ameaçando ostensivamente o mundo inteiro com a aniquilação nuclear.

Numa reunião no domingo com os seus principais generais, o Presidente russo anunciou: “Ordeno ao ministro da Defesa e ao chefe do Estado-Maior General das forças armadas russas que coloquem as forças de dissuasão do exército russo num modo especial de serviço de combate”.

A razão para esta acção, observou Putin, centrou-se no facto de que, “os países ocidentais não só estão a tomar acções hostis contra o nosso país na esfera económica, mas também que altos funcionários dos principais membros da NATO fizeram declarações agressivas em relação ao nosso país” quanto à situação em curso na Ucrânia.

As “forças de dissuasão” de que falou Putin referem-se ao arsenal nuclear da Rússia.

O que fez as palavras do presidente russo ressoarem ainda mais foi que na passada quinta-feira, ao anunciar o início da “operação militar especial” da Rússia contra a Ucrânia, Putin declarou que “ninguém deveria ter dúvidas de que um ataque directo ao nosso país levará à destruição e a consequências horríveis para qualquer potencial agressor”. Ele enfatizou que a Rússia é “uma das potências nucleares mais poderosas e também tem uma certa vantagem numa gama de armas de última geração”.

Quando Putin emitiu essa ameaça, The Washington Post descreveu-a como “vazia, uma mera exibição de dentes”. O Pentágono, envolvido como estava na sua própria revisão da postura nuclear dos EUA destinada a lidar com ameaças como esta, pareceu não incomodado, com um responsável anónimo a notar que os decisores políticos dos EUA “não vêem nisso uma ameaça acrescida”.

Resposta da NATO

A NATO, a aliança militar transatlântica que está no centro da crise actual, emitiu uma declaração na qual observava que

“As acções da Rússia representam uma séria ameaça à segurança euro-atlântica, e terão consequências geoestratégicas. A NATO continuará a tomar todas as medidas necessárias para garantir a segurança e defesa de todos os Aliados“. Estamos a destacar forças terrestres e aéreas defensivas adicionais para a parte oriental da Aliança, bem como meios marítimos adicionais. Aumentámos a prontidão das nossas forças para responder a todas as contingências“.

Contudo, escondida próxima do fim desta declaração, estava uma passagem que, quando examinada de perto, sustentava o raciocínio por detrás da flexão dos músculos nucleares de Putin. “Realizámos consultas ao abrigo do artigo 4º do Tratado de Washington”, observou a declaração. “Decidimos, em conformidade com o nosso planeamento defensivo para proteger todos os Aliados, tomar medidas adicionais para reforçar ainda mais a dissuasão e a defesa em toda a Aliança”.

Nos termos do Artigo 4º, os membros podem trazer qualquer questão que os preocupem, especialmente relacionada com a segurança de um país membro, à mesa para discussão no seio do Conselho do Atlântico Norte. Os membros da NATO Estónia, Letónia, Lituânia e Polónia desencadearam a consulta ao abrigo do Artigo 4º, na sequência da incursão russa na Ucrânia. Numa declaração emitida na sexta-feira, o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, desenvolveu a declaração inicial da NATO, afirmando que a NATO estava empenhada em proteger e defender todos os seus aliados, incluindo a Ucrânia.

ACÇÃO MILITAR OFENSIVA

Três coisas se destacam nesta declaração. Primeiro, ao invocar o Artigo IV, a NATO estava a posicionar-se para uma potencial acção militar ofensiva; as suas intervenções militares anteriores contra a Sérvia em 1999, Afeganistão em 2001, Iraque em 2004 e Líbia em 2011, foram todas feitas ao abrigo do Artigo IV da Carta da NATO. Vista a esta luz, a premissa de que a NATO é uma organização exclusivamente defensiva, comprometida com a promessa de autodefesa colectiva, é destituída de base.

Em segundo lugar, enquanto o Artigo V (defesa colectiva) protege apenas os membros efectivos da NATO, que a Ucrânia não é, o Artigo IV permite que a protecção da NATO seja estendida aos não membros da NATO que a aliança considera como aliados, uma categoria em que Stoltenberg colocou claramente a Ucrânia.

Finalmente, a cobertura de Stoltenberg da Ucrânia como aliado da NATO veio ao mesmo tempo que anunciava a activação e movimentação da Força de Resposta da NATO de 40.000 homens, alguns dos quais seriam destacados para o flanco oriental da NATO, junto à Ucrânia. A activação da Força de Resposta não tem precedentes na história da NATO, um facto que sublinha a seriedade que a Rússia pode atribuir a esta acção.

Quando vistos a esta luz, os comentários de Putin na passada quinta-feira foram comedidos, sãos e responsáveis.

O que acontece se comboios da NATO ou jactos da UE forem atingidos?

Desde o início das consultas ao abrigo do Artigo IV, os membros da NATO começaram a fornecer à Ucrânia ajuda militar letal, com a promessa de mais nos dias e semanas vindouros. Estes carregamentos só podem ter acesso à Ucrânia através de uma rota terrestre que requer transbordo através de membros da NATO, incluindo a Roménia e a Polónia. Não é preciso dizer que qualquer veículo que transporte equipamento militar letal para uma zona de guerra é um alvo legítimo ao abrigo do direito internacional; isto aplicar-se-ia plenamente a qualquer carregamento ou entrega feita por um membro da NATO por sua própria vontade.

O que acontece quando a Rússia começar a atacar as entregas de armas NATO/UE/EUA/Aliados quando estas chegam ao solo ucraniano? Será que a NATO, actuando ao abrigo do Artigo IV, irá criar uma zona tampão na Ucrânia, utilizando a Força de Resposta nunca antes mobilizada? Uma coisa segue-se naturalmente a outra…

O cenário torna-se ainda mais horrendo se a UE actuar de acordo com o seu compromisso de fornecer à Ucrânia aviões e pilotos para combater os russos. Como seriam eles enviados para a Ucrânia? O que aconteceria quando a Rússia começasse a abater estas aeronaves assim que elas entrassem no espaço aéreo ucraniano? Será que a NATO criaria então uma zona de interdição de voo sobre a Ucrânia ocidental?

O que aconteceria se uma zona de interdição de voo (a qual muitos responsáveis no Ocidente estão a promover) for combinada com o destacamento da Força de Reacção para criar um território de facto da NATO na Ucrânia ocidental? E se o governo ucraniano se estabelecesse na cidade de Lvov, a operar sob a protecção deste guarda-chuva aéreo e terrestre?

A DOUTRINA NUCLEAR DA RÚSSIA

Em Junho de 2020, a Rússia publicou um novo documento, intitulado “Sobre os princípios básicos da política de Estado da Federação Russa em matéria de dissuasão nuclear”, que esboçava as ameaças e circunstâncias que poderiam levar à utilização de armas nucleares pela Rússia. Embora este documento declarasse que a Rússia “considera as armas nucleares exclusivamente como um meio de dissuasão”, delineou vários cenários em que a Rússia recorreria à utilização de armas nucleares se a dissuasão falhasse.

Embora o documento de política nuclear russa não apelasse ao uso antecipativo (preemptive) de armas nucleares durante conflitos convencionais, declarava que “em caso de conflito militar, esta Política prevê a prevenção de uma escalada de acções militares e o seu termo em condições aceitáveis para a Federação Russa e/ou os seus aliados”.

Em suma, a Rússia pode ameaçar utilizar armas nucleares para dissuadir “a agressão contra a Federação Russa com a utilização de armas convencionais quando a própria existência do Estado estiver em perigo”.

Ao definir as preocupações de segurança nacional da Rússia tanto para com os EUA como para com a NATO, em Dezembro último, Putin foi claro como cristal acerca da sua posição no que diz respeito à adesão da Ucrânia à NATO. Num par de documentos de uma minuta de tratado, a Rússia exigiu que a NATO fornecesse garantias escritas de que poria fim à sua expansão e assegurasse à Rússia que nem à Ucrânia nem à Geórgia jamais seriam oferecidas a condição de membros da aliança.

Num discurso proferido após as exigências da Rússia terem sido entregues, Putin declarou que se os EUA e os seus aliados continuassem a sua “posição obviamente agressiva”, a Rússia tomaria “medidas militares e técnicas de retaliação adequadas”, acrescentando que tem “todo o direito de o fazer”.

Em suma, Putin deixou claro que, quando se tratou da questão da adesão da Ucrânia à NATO, do estacionamento de mísseis americanos na Polónia e Roménia e dos destacamentos da NATO na Europa de Leste, a Rússia sentiu que a sua própria existência estava a ser ameaçada.

A DESCONEXÃO

A invasão russa da Ucrânia, quando vista da perspectiva da Rússia e da sua liderança, foi o resultado de uma longa intromissão da NATO nos legítimos interesses de segurança nacional do Estado e do povo russos. O Ocidente, contudo, interpretou a incursão militar como pouco mais do que a acção irracional de um ditador irado e isolado, que procura desesperadamente relevância num mundo que escapa ao seu controlo.

A desconexão entre estas duas narrativas poderia revelar-se fatal para o mundo. Ao minimizar a ameaça que a Rússia percebe, tanto de uma NATO em expansão como da prestação de assistência militar letal à Ucrânia, enquanto a Rússia está empenhada em operações militares que considera críticas para a sua segurança nacional, os EUA e a NATO correm o risco de não compreender a seriedade mortífera das instruções de Putin aos seus líderes militares quanto à elevação do nível de prontidão por parte das forças nucleares estratégicas da Rússia.

Longe de reflectir o capricho irracional de um homem desesperado, as ordens de Putin reflectiram a extensão lógica de uma postura de segurança nacional russa concertada durante anos, onde a oposição geopolítica à expansão da NATO para a Ucrânia se casou com uma postura nuclear estratégica. Todas as declarações feitas por Putin ao longo desta crise foram ligadas a esta política.

Se bem que os EUA e a NATO podem debater a legitimidade das preocupações russas, encarar a estratégia de segurança nacional de uma nação que foi sujeita a um controlo burocrático minucioso, apenas como o espectro temperamental de um autocrata desligado da realidade, representa um perigoso desrespeito pela realidade, cujas consequências podem revelar-se fatais para os EUA, a NATO e o mundo.

O Presidente Putin tem-se queixado frequentemente de que o Ocidente não lhe dá ouvidos quando fala de questões que a Rússia considera serem de importância crítica para a sua segurança nacional.

O Ocidente agora está a ouvir. A questão é, será ele capaz de compreender a gravidade da situação?

Até agora, a resposta parece ser não.

(*) O autor é Ex-oficial de inteligência do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA que actuou na antiga União Soviética a implementar tratados de controlo de armas, no Golfo Pérsico durante a Operação Tempestade no Deserto e no Iraque a supervisionar o desarmamento de ADMs.


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