A esquerda radical

(Carmo Afonso, in Público, 16/02/2022)

As pessoas insatisfeitas, neste caso os eleitores, tendem a simpatizar com quem assume o discurso destemido. Sucede que a esquerda está à defesa. Defende-se da qualificação de extremismo que lhe é imputada e caiu no pior dos males: deixou-se condicionar. Com isso perde eleitorado mais jovem e sobretudo perde a sua própria juventude.

O resultado das últimas eleições parece representar uma derrota para o BE e para o PCP. É um engano. Os grandes derrotados daquela noite são trabalhadores portugueses, os que vivem do seu trabalho, os que dependem do salário mínimo nacional (SMN), os que não são classe média e que provavelmente não chegarão lá.

Estamos a falar de milhões de portugueses. Existem em Portugal cerca de novecentos mil trabalhadores que vivem do SMN, parte deles certamente com outras pessoas a cargo. Faz sentido a pergunta: se tantos portugueses estão em situação de pobreza, ou quase pobreza, porque não tem esta esquerda, que se bate pelos seus interesses e direitos, uma votação mais expressiva? E também faz sentido perguntar se esta esquerda deixou de satisfazer as aspirações de quem sente urgência na melhoria das suas condições de vida.

O problema existe.

Esta esquerda sofreu a erosão do voto útil no Partido Socialista. Ponto assente. Mas algumas razões havia também para os partidos mais à direita terem igualmente sentido a erosão do voto útil no PSD. Não aconteceu. A IL e o Chega cresceram, não obstante a necessidade de reforçar o voto em quem poderia, à direita, ser primeiro-ministro.

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O que tem então esta nova direita que capta o voto dos eleitores? A resposta pode ser difícil de ouvir. Vejamos: esta direita não apresenta soluções colectivas – no sentido do que seria o melhor para todos – mas apenas soluções individuais. Votar no que é melhor para si mesmo. Quem vota na IL quer à partida prosperar, o que é absolutamente válido. Mas quer fazê-lo individualmente, ser um vencedor, apanhar o elevador social que, como se sabe, não tem a capacidade de um monta-cargas.

Uma boa concretização desta visão política é o simulador de poupança fiscal que a IL disponibilizou no seu site. Uma espécie de: “Eleitor, vamos ao seu caso específico”. Com a IL não existirá, entre o momento presente e o momento em que cada eleitor será uma pessoa abastada, um Estado que tributa a mais, distribuindo e desbaratando o dinheiro que, com mérito, esse eleitor ganhou. A ideia é que um dia serão todos ricos.

Nesta nova direita identificam-se inimigos. O Chega aponta armas ao sistema (o sistema que os deixou entrar e entre nós permanecer), aponta armas às minorias, aponta armas à classe política da qual faz parte. O Chega é o partido que está dispensado de cumprir a lei mas também, deve ser dito, de fazer sentido.

No dizer desses dirigentes, a governação do país tem-se caracterizado como sendo “socialismo”. Reparar que não radicalizam apenas o seu próprio discurso, incutem também a ideia do radicalismo dos seus opositores. Veja-se o caso do Partido Socialista; que dizer de um socialismo que, tendo conseguido uma maioria absoluta, recebeu congratulações dos bancos, dos banqueiros e do patronato? O socialismo do PS chama-se social-democracia e é puramente social-democrata a governação política dos últimos anos em Portugal. Já agora: foram quase todas à excepção da governação de Pedro Passos Coelho. Mas aqui está uma maneira eficaz de dispensar o PS de prosseguir políticas de esquerda.

As pessoas insatisfeitas tendem a simpatizar com quem assume o discurso destemido. Esse desejo de radicalidade – o de acabar com o mais do mesmo – faz até esquecer o que está em causa.

A radicalização daquilo que é puramente moderado e a diabolização dos partidos mais à esquerda fazem parte integrante da forma como estes partidos se apresentam ao eleitorado. Isto em conjunto com a sua própria radicalização. Estamos a falar da radicalização de discurso de ódio e discriminação, no caso do partido Chega, e da abolição do Estado Social no caso da IL. Neofascismo e anarco-capitalismo.

Alguma lição deverá a esquerda retirar daqui. As pessoas insatisfeitas, neste caso os eleitores, tendem a simpatizar com quem assume o discurso destemido. Esse desejo de radicalidade – o de acabar com o mais do mesmo – faz até esquecer o que está em causa. Sucede que a esquerda está à defesa. Defende-se da qualificação de extremismo que lhe é imputada. A esquerda mais à esquerda caiu no pior dos males: deixou-se condicionar. Com isso perde eleitorado mais jovem e sobretudo perde a sua própria juventude.

Pedro Nuno Santos (PNS) tem sido o político que, de tempos a tempos, consegue incendiar. O PNS, dirigente do partido do centro-esquerda. Este fenómeno diz muito: o eleitorado de esquerda precisa de fogo, da energia da luta e dos princípios que PNS sabe trazer para a oratória. Pois bem, essa energia e esses princípios existem de facto e encontram-se nos programas dos partidos que aparentemente perderam as eleições. Já agora: existem, por exemplo, nas propostas que apresentam para o problema da habitação, uma área em que PNS ainda não conseguiu implementar políticas com impacto.

Existe aqui um problema e existe aqui uma oportunidade. É assim que se diz no mercado. Começa assim.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

Advogada


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3 pensamentos sobre “A esquerda radical

  1. Não me parece que a receita de radicalização da autora do artigo consiga alcançar algum resultado que elimine ou reduza as consequências do disparate que o BE eo PCP geraram com a votação do orçamento, conduzindo a eleições que não podiam deixar de lhes correr mal. Em política não há nada que se substitua a uma avaliação cuidadosa das situações e das consequências da actuação dos vários agentes presentes no terreno. E essa avaliação não foi então feita, nem parece que esteja a ser agora empreendida. Com a sua visibilidade e poder reduzidos, uma actuação radical dos partidos considerados de esquerda pela autora será, lamentavelmente, irrelevante. Lamento que partilho, pois entendo que também eles poderiam ter um papel importante na evolução do país, com foco na desenvolvimento sócio-económico e na redução das desigualdades, em vez de concentração em causas exóticas e fracturantes.

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