(Manuel Loff, in Público, 15/02/2022)

São sempre reveladoras as explicações que sobre a política internacional emergem nas crises em que o Ocidente se descreve como um bloco. É o que acontece há meses na crise entre a Rússia e a NATO a propósito da Ucrânia. Esta fez emergir à superfície três preconceitos estruturantes que vale a pena expor.
1. Uma visão oriental e colonial da Rússia (e da Ucrânia). Dois tipos de explicação têm predominado. Uma de tipo geopoliticista, que, partindo do mais duvidoso que tem a Geopolítica (uma subdisciplina das Relações Internacionais que surgiu há cem anos nos meios académicos alemães em trânsito para o nazismo), vê o mundo através de lentes que descrevem cada Estado como uma só coisa, invisibilizando a pluralidade de opiniões e de interesses no interior das sociedades. Nestas explicações, tipicamente coloniais, os povos não passam de agentes passivos da vontade das elites. O segundo tipo de explicação veste uma aparência político-cultural: em vez dos detalhes da parafernália militar que preenchem o discurso anterior, deambula mais pelo que descreve como as idiossincrasias da cultura russa e deixa-se hipnotizar pela figura de Putin, no fundo substituindo a velha sovietologia por uma nova putinologia. É aqui que desaguam os recorrentes velhos mitos ocidentais originários dos séculos XVI-XVIII de uma Rússia oriental, autoritária e mística. Por falta de memória (ou de pudor), a quem subscreve estas teses não perturba nada que os fascistas dos anos 20 e 30 e o invasor nazi de 1941-45 tivessem descrito russos e ucranianos como asiáticos de cultura e características que requeriam uma disciplina colonial entre genocida e esclavagista. Nesta visão ocidentalista do mundo, aplica-se a russos, a ucranianos, à Europa descrita como não-ocidental aquela velha hierarquia paternalista (permitam-me que lhe chame diretamente racista) que vê vontade de democracia sempre que houver vontade de NATO e UE. Claro que, perante narrativas destas, não vale a pena recordar que Salazar foi também fundador da NATO, ou que foi depois de anos de integração europeia que a Polónia e a Hungria se transformaram nos belos exemplos de democracia que são hoje… Para falar de democracia, venham daí essas dezenas de ditaduras que os EUA e os seus aliados impuseram, apoiam e defendem!
2. Des-historicizar. Quanto mais nos concentramos no eterno presente em que todas estas teses navegam, mais nos afastamos dos contextos históricos que ajudam a explicar o que está em causa para russos e ucranianos. Ouvindo-as, quase parece que russos e a maioria dos ucranianos não formaram parte do mesmo Estado (o Império Russo, depois a União Soviética) durante três séculos, nem que ucranianos e russos reivindiquem uma mesma origem nacional no Rus de Kiev que nasce no século IX. É tudo menos inócuo que a parte da Ucrânia que nunca integrou o Império Russo, e que só em 1945 passou a fazer parte da União Soviética, tivesse permanecido séculos sob domínio polaco, depois austríaco, de novo polaco, até à ocupação nazi (1939-44), ou que a Crimeia tenha sido e seja etnicamente russa, por exemplo. Era bom tentar perceber as fragilidades da construção nacional da Ucrânia independente desde 1991, espelhadas em 30 anos de divisão eleitoral do país entre nacionalistas da Ucrânia norte-ocidental e aqueles que se sentem tão russos quanto ucranianos. Mas a História é uma chatice, tem demasiados detalhes, Putin é quem é, para que estamos aqui a perder tempo?…
3. Duplicidade de critérios. A hipersimplificação de argumentos que estas crises propiciam abrem espaço a uma duplicidade de critérios que denuncia no adversário aquilo que o nosso lado faz, sempre fez. Já irritou profundamente os ocidentais que Putin fizesse na Síria aquilo que norte-americanos, britânicos e franceses fizeram e fazem por todo o mundo, do Afeganistão à Somália, do Iraque à Líbia, ao Mali.
Que os EUA considerem que a sua segurança passa pela Coreia ou as Filipinas do outro lado do Pacífico, ou que façam o que vêm fazendo desde há mais de 200 anos nas Américas, é tudo legítimo, é tudo Ocidente. Contudo, que a Rússia não queira mísseis instalados a 800 km de Moscovo parece que não é a mesma coisa que os EUA não queiram mísseis em Cuba (1800 km). E, de facto, eles não estão lá.
Tudo isto tinha um nome há anos: imperialismo. Agora parece que se chama segurança.
O autor é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico
Historiador