CNN e Rendeiro: o que não se deve fazer

(João Garcia, in Expresso Diário, 14/12/2021)

João Garcia

Se há contrato sagrado dos jornalistas com a sociedade é o de salvaguardarem o sigilo de tudo quanto não revelam nas suas peças. Esta obrigação não é um direito dos jornalistas, mas, antes, um dever (…) Os jornais, televisões e rádios apenas informam. Não denunciam, não perseguem, não ajudam a capturar, não julgam. Informam – e para isso precisam de ser confiáveis.

(Texto atualizado às 17.52 de 14/12/2021 com acrescento de nota do autor que segue abaixo:)

( Depois da publicação deste artigo, a CNN Portugal contactou-me para garantir que não forneceu qualquer material à Polícia Judiciária. Terão sido as autoridades a compilar o material emitido.
A conclusão que tirei no texto resulta da forma como foi redigida a notícia. Titularam que “A entrevista que a PJ usou para tramar Rendeiro (versão inédita na íntegra)” já está nas autoridades sul-africanas e convidam a que se “veja e leia a versão inédita na íntegra da entrevista decisiva”.
A conclusão que tirei foi a de que só hoje ficou disponível para o público a versão integral, a qual já estava na posse da PJ e na África do Sul. Errei, esclarece a CNN, pois o que hoje publicaram é a compilação de tudo quanto tinham já divulgado, e que o “inédito” se refere apenas a ser a primeira vez que mostram todas as declarações em conjunto.
Sendo assim, não terá ocorrido qualquer colaboração com as autoridades. Pelo erro que me cabe, induzido pela forma como a notícia da CNN está redigida, aqui ficam as minhas desculpas, aos leitores, à CNN e ao Expresso.
Nos tempos que correm, de confusão permanente entre o jornalismo e o justicialismo, li a notícia como sendo complacente com esta situação, até porque enaltece a circunstância de o trabalho ter ajudado a “tramar” Rendeiro.
Porque não basta tirar o artigo da internet para ele desaparecer, aqui fica esta nota prévia. )


Li três vezes e não acreditei: a Polícia Judiciária teve acesso à versão integral da entrevista a João Rendeiro emitida pela CNN. É a estação que o anuncia, sem qualquer rebuço. Afirma, aliás, num tom que parece de autoelogio, que o material já foi remetido pela polícia para o Ministério Público. Felizes, portanto, por terem contribuído para a detenção.

Mais não diz. Porém, o pouco que diz é de enorme gravidade.

Se há contrato sagrado dos jornalistas com a sociedade é o de salvaguardarem o sigilo de tudo quanto não revelam nas suas peças. Esta obrigação não é um direito dos jornalistas, mas, antes, um dever – que às vezes custa caro e pode levar à prisão. Quem confia num jornalista tem de estar seguro de que só é relatado o que fica previamente combinado.

Saiba mais aqui

Se um órgão de comunicação aceita publicar uma entrevista a um foragido, fica obrigado a não fornecer quaisquer outros dados. Nem como chegou à fala com o procurado, nem o que foi dito de forma informal durante a conversa, nem os preparativos.

A sociedade tem de saber que há uma clara distinção entre jornalistas e polícias. Não é uma questão de menor ou maior consideração, é uma salvaguarda. Só assim é possível manter aberta a porta das redações a quem, por boas ou más razões – os tribunais que o decidam – quer contar o que sabe ou viveu.

Era bom que fosse bem compreendido que os jornalistas apenas servem para informar. E que não podem aceitar que o material que recolheram tenha outros destinos que não a publicação e os seus arquivos sigilosos. Os jornais, televisões e rádios apenas informam. Não denunciam, não perseguem, não ajudam a capturar, não julgam. Informam – e para isso precisam de ser confiáveis.

Acresce um outro motivo: não pode deixar-se que haja a mínima suspeita de que exista qualquer traficância de informação entre redações e autoridades. O “toma-lá-isto-para-depois-me-dares-aquilo” é o contrário do jornalismo. A desgastada mulher de César não se aplica só a políticos.

Os bons jornais e televisões recusam publicar fotografias de pessoas procuradas pelas polícias. Não porque queiram dificultar a captura, mas, entre outros aspetos, porque defendem o seu papel de independência em relação a todos os poderes.

Em 1998, para falar apenas de um caso que conheço bem, após o Expresso ter publicado a entrevista de José Pedro Castanheira a Rosa Casaco, um dos assassinos de Humberto Delgado que andava fugido, foram várias as pressões, formais e informais, para que Castanheira desse outras informações para lá do que escreveu. Recusou, obviamente.

A entidade reguladora da comunicação, a ERC, a propósito da cedência de material gravado e não transmitido pela RTP, já repudiou esta possibilidade. Considera a ERC que “os jornalistas assumem compromissos de confidencialidade com a fonte, os quais, se forem desrespeitados, não terão apenas consequências na vida da pessoa que está origem da informação, como também na credibilidade do jornalista em causa, como já se referiu. E, sobretudo, terão efeitos na atividade jornalística em geral, já que todas as pessoas detentoras de informações melindrosas que revistam interesse público recebem o sinal de que não podem confiar na classe jornalística”.

Não é impunemente que as buscas a redações – apenas me lembro de uma, no antigo “Tal e Qual” – e a casa de jornalistas, bem como a serem alvos de vigilância policial, de que foi alvo Carlos Rodrigues Lima, jornalista da “Sábado” – também recordo um caso apenas – merecem repúdio, e gozam de proteção especial.

Garantia pelos vistos desnecessária, para a CNN Portugal.

A notícia do canal português não dá pormenores. Não diz se o fez voluntariamente, se perante algum mandado. Pouco importa. A forma como dá conta do ocorrido – veja agora “a entrevista que a PJ usou para tramar Rendeiro (versão inédita da integra)” – assume a traficância como coisa natural. Deixa a suspeita de não ter havido sequer uma decisão judicial, nem refere quaisquer esforços para a contrariar. “Tramar” Rendeiro parece ser um propósito e motivo de orgulho.

Começou mal a nossa CNN, tenho pena. Estreou-se a anunciar uma entrevista exclusiva, quando afinal era partilhada com um jornal; agora fornece material inédito à polícia. Não acredito que a casa-mãe aprove. Oxalá não seja um “farol” para o jornalismo português. A proteção das fontes é o bê-à-bá do jornalismo.


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7 pensamentos sobre “CNN e Rendeiro: o que não se deve fazer

  1. É preciso ter lata!

    “Se há contrato sagrado dos jornalistas com a sociedade é o de salvaguardarem o sigilo de tudo quanto não revelam nas suas peças.”

    Se há contrato sagrado dos jornalistas com a sociedade é o de salvaguardarem a verdade acima de tudo e não os interesses dos mais ricos e poderosos. E o não conspurcarem ainda mais a imagem dos políticos, que são eleitos democraticamente pela sociedade, ao contrário dos próprios jornalistas, dos juízes e membros do MP, dos médicos, dos polícias, dos militares, dos professores e dos funcionários públicos em geral, em relação aos quais é raríssimo assistir-se a uma crítica que seja por parte da comunicação social.
    É muito popular “dar porrada” nos políticos, mas tentar explicar às pessoas porque é que a nossa Justiça é a vergonha que é, para além do palavreado habitual da falta de meios – leia-se, aumentos de ordenados e do número de funcionários -, isso não vale a pena.

    “Quem confia num jornalista tem de estar seguro de que só é relatado o que” é verdade e não o que interessa a determinados grupos económicos ou políticos, naturalmente de direita, como acontece com praticamente toda a comunicação social portuguesa.

    “Os jornais, televisões e rádios apenas informam. Não denunciam, não perseguem, não ajudam a capturar, não julgam.”
    O que diria o Sócrates disto? Ui! Palavra/pessoa maldita!

    “Acresce um outro motivo: não pode deixar-se que haja a mínima suspeita de que exista qualquer traficância de informação entre redações e autoridades. O “toma-lá-isto-para-depois-me-dares-aquilo” é o contrário do jornalismo. A desgastada mulher de César não se aplica só a políticos.”

    Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Esta é mesmo de gargalhada. Meu caro Garcia, já ouviu falar em violação do segredo de justiça? Nunca viu a polícia prender ninguém em directo na televisão?

    “Os bons jornais e televisões recusam publicar fotografias de pessoas procuradas pelas polícias. Não porque queiram dificultar a captura, mas, entre outros aspetos, porque defendem o seu papel de independência em relação a todos os poderes.”

    Pode-me dizer em que país do mundo é que as coisas são como defende?

    “Em 1998, para falar apenas de um caso que conheço bem, após o Expresso ter publicado a entrevista de José Pedro Castanheira a Rosa Casaco, um dos assassinos de Humberto Delgado que andava fugido, foram várias as pressões, formais e informais, para que Castanheira desse outras informações para lá do que escreveu. Recusou, obviamente.”

    Obviamente, o PIDE que nessa entrevista se gabou de ter chefiado a brigada que assinou o General que, obviamente, demitiria o bafiento ditador, se as eleições que com esmagadora maioria ganhou não tivessem sido uma gigantesca fraude, agradeceu esta magnífica demonstração de seriedade ao serviço do jornalismo e graças a ela pôde morrer tranquilo e em paz, ao contrário do General sem Medo, barbaramente assassinado. Foi realmente uma bela peça, com grande interesse na divulgação da verdade dos factos, que ficará nos anais do jornalismo. Deve encher os jornalistas do Expresso de justificado orgulho.

    Extraio três conclusões de todo este indignado artigo:

    1. Parece-me um frete do Expresso à irmã SIC, canal concorrente da CNN Portugal.
    2. Para Garcia, se foi o acesso à versão integral da entrevista que permitiu a captura do foragido, seria preferível que ele continuasse em liberdade, a gastar os milhões que roubou a tantos depositantes e que nós, com os nossos impostos, temos de pagar.
    2. A CNN Portugal é que veio manchar o magnífico panorama jornalístico português. Não foram os jornalistas, nem os órgãos a que pertencem, que, por culpa própria, por falta de credibilidade, caíram nas ruas da amargura. Não! Tudo estava bem neste domínio em Portugal e a CNN é que veio estragar tudo. É preciso ter lata!

    PS – Uma palavra para o foragido: mas alguém o obrigou a dar a entrevista que pelos vistos contribuiu para a sua prisão? Afinal, parece que o homem não é tão esperto como se pensava. Vá lá mas é ver o sol aos quadradinhos por uns (poucos) anitos. Não tarda, esta magnífica justiça portuguesa põe-no cá fora, por razões humanitárias, como fez com o Oliveira Costa.

  2. Tão simples quanto se avalia.
    – Meros interesses do Poder, dos interesses da manutenção do Poder !
    A Imprensa, seja ela qual for, até parece que existe ou foi de vontade existir, para servir Poder ! Mas … a ganância serve o Poder. Ou não será assim ?!

  3. Mas, a sério? Acha mesmo que é assim, como diz, e cito abaixo? Basta ver algumas peças dita de jornalismo de investigação. Mas alguém o obrigou a dar a entrevista e não autorizou que a mesma fosse publicada? E quando se entrevista alguém em direto numa qualquer TV também há que ter os cuidados que diz ter que haver?

    “Era bom que fosse bem compreendido que os jornalistas apenas servem para informar. E que não podem aceitar que o material que recolheram tenha outros destinos que não a publicação e os seus arquivos sigilosos. Os jornais, televisões e rádios apenas informam. Não denunciam, não perseguem, não ajudam a capturar, não julgam. Informam – e para isso precisam de ser confiáveis.”

  4. na sua prematura existência, ultrapassa já em larga escal o pior que há em jornalismo… só compreensivel (?) por querr ser concorrente directa da CMTV…

  5. Como gostaria de ter escrito o que ‘Mário’ disse no seu comentário (salvo uma outra coisa de mero pormenor). A hipocrisia (ou lata!) de que enferma o artigo de João Garcia é, como a de tantos outros articulistas ou comentadores desta nossa praça, insuportável e muito difícil de denunciar, porque traduz o jornalismo que tomou conta quase totalmente da CS deste País e que, por via desse quase monopólio de facto, não deixa passar a sua crítica ou denúncia. Como bem referiu, uma CS que vai em directo assistir a actos como a detenção de quem quer que seja não é de forma alguma isenta e independente. O mesmo se poderá dizer da independência de quem a convocou para esses directos. E acrescento como é comovente ver o comentador-mor do reino chorar sobre a divulgação de fotografias de alguém apanhado em pijama (se fosse de smoking, tudo bem!) e ter ficado calado perante as já repetidas transmissão em directo de detenções.
    O conceito de liberdade de comunicação social bem como o de pluralismo terá porventura de ser reequacionado, quando se está perante um país em que todos os media parecem servir os mesmos interesses. Existe em Portugal algum jornal de grande circulação, ou estação de televisão, ou emissora de rádio que quebre esse monopólio de facto? Alguém consegue pôr eficazmente a boca no trombone quando a propagação do som não está assegurada? Se até a área de informação da RTP é o que é?

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