O preço do abraço do urso ao PCP

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 19/10/2021)

Daniel Oliveira

Recordo que foi o PS que recusou um acordo escrito em 2019. Porque queria navegar conforme os seus interesses táticos. E , nessa navegação à vista, está a acontecer com o PCP o que já aconteceu ao Bloco: cansaço com o incumprimento de compromissos e cativação sistemática de verbas acordadas. Não é o PCP e o BE que o dizem, são os próprios ministros. Até o PAN se queixa. Entendimentos à esquerda não é meter os outros no bolso. É o que se fez na geringonça. Não é isto.

Agora, a negociação é com o PCP, a quem António Costa agradece ter viabilizado o Orçamento do Estado do ano passado oferecendo-lhe… nada. Já aqui deixei as razões mais profundas pelas quais os partidos à esquerda do PS não poderiam aprovar um orçamento de contenção, num país que recupera de uma das crises mais graves da sua história democrática depois de ter gasto menos do que os países com que se compara no combate à pandemia e quando os limites ao défice ainda não foram repostos.

Com os miseráveis 0,5% do PIB de estímulo à economia e a melhoria do saldo estrutural, num momento dramático para recuperar da crise, sobrou imensa margem para o foguetório de compromissos que serão ou não cumpridos. Mas isso não chega. Nem é o que interessa ao PCP. Seis orçamentos e muitas derrotas eleitorais depois, a questão para o PCP tornou-se mesmo as leis laborais, onde o PS não prescinde do que a “troika” fez. Tem medo. E sem isso, dificilmente ganhará o PCP.

A situação não é fácil para os comunistas. Depois de uma pesada derrota eleitoral, e com o BE um pouco mais livre por ter saltado para fora do barco no ano passado, não se podem dar ao luxo de ser responsabilizados por uma crise política. Até por saberem que, em eleições antecipadas, a probabilidade de serem ultrapassados pela extrema-direita é altíssima.

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António Costa sabe isto e está a esticar a corda. E fá-lo da pior forma, com um discurso condescendente que transforma o PCP num partido inofensivo, mesmo como aliado. Situação desconfortável que os comunistas têm resolvido com uma retórica que não bate certo com os seus votos e promessas de luta que a fragilidade atual do movimento sindical torna inconsequentes. Só que isto tem limites na sua eficácia e como várias eleições têm provado, esses limites foram ultrapassados.

Este abraço do urso de António Costa, está a tornar-se fatal para os comunistas. Não se trata dos seus eleitores estarem zangados com esta opção, trata-se dela ser indiferente para o resultado final da governação. Uma aliança entre socialistas e comunistas só pode acontecer num momento transformador ou, como foi depois da troika, de urgência social para a reposição de direitos. É impensável num governo de contenção orçamental em plena emergência económica. É contranatura e já não é a negociação de mercearia em torno de medidas avulsas que resolve a contradição. É preciso algo mais que justifique o sacrifício eleitoral a que o PCP se está a entregar há seis anos.

Ao aproveitar a fragilidade do PCP para garantir um aliado que, devido às circunstâncias, se transforma num refém, António Costa está a matar um partido fundamental para a esquerda. Dirão que não cabe a ele fazer esta ponderação. Cabe. A fragilização do PCP acabará por confirmar o presságio ainda por cumprir, mas que se pode transformar num perigo real: a transferência de um determinado eleitorado para o campo do protesto da extrema-direita.

Costa pode sonhar com um PS a ocupar o lugar de Macron, encostando os democratas a escolher entre os socialistas e um governo com o Chega. Mas pode acabar como os democratas italianos ou os socialistas franceses, remetendo toda a esquerda para um papel secundário. O país precisa do PCP. Seria bom que o legado de Costa fosse a “geringonça”, que nasceu como promessa de uma mudança, e não a destruição do resto da esquerda. Há limites no preço a pagar pela sobrevivência política de um só homem.

Qualquer observador experiente percebe quando está perante um jogo de aparências ou uma negociação. Se o Bloco de Esquerda quisesse negociar, não fazia a exigência de acordos escritos em público, mas à mesa de negociações. O BE só não quer ficar na posição de refém em que o PCP se colocou, onde todas as escolhas são péssimas. E nenhum governo que queira negociar reage publicamente a essa exigência com um público “então manda lá isso por mail”. Seria de esperar que, perante o risco de crise política, fosse o primeiro-ministro a mostrar-se empenhado no processo negocial. O que vemos é displicência e o empenhamento em exibir responsáveis políticos por uma possível crise.


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