(Pacheco Pereira, in Público, 24/07/2021)

Se há coisa que, em Portugal em 2021, não é deprimente são as eleições autárquicas, as mais democráticas de todas as eleições.
Existe uma prática, que se repete em cada eleição autárquica, de gozar com aquilo que veio a ser conhecido como “tesourinhos deprimentes”, ou seja, cartazes eleitorais ridículos, bizarros, estranhos, absurdos, engraçados, chame-se-lhes o que se quiser. Nunca participei nesse riso, porque se há coisa que, em Portugal em 2021, não é deprimente são as eleições autárquicas, as mais democráticas de todas as eleições, em particular pela participação de dezenas de milhares de pessoas por todo o país num acto de escolha dos seus representantes, com uma proximidade sem paralelo entre eleitos e eleitores.
Aqui, “mais democráticas” não é um julgamento sobre a democraticidade das outras eleições, regionais, legislativas e presidenciais – as europeias merecem uma análise diferente –, mas a verificação de uma mobilização que penetra fundo, nos concelhos e nas freguesias, e que é a única que merece o epíteto de popular.
Comecemos pelos “tesourinhos deprimentes”, uma típica crítica elitista diante de campanhas muitas vezes artesanais, com pouco dinheiro, que não têm ao seu serviço agências de publicidade nem de comunicação, retratando o amadorismo de quem as faz, e o gosto plebeu entendido como “mau gosto”. Nem todos podem pagar criativos, nem ter a Mosca a fazer as campanhas da Iniciativa Liberal, nem atirar dinheiro para muitos publicitários que produzem cartazes sem qualquer imaginação, com as cores escolhidas por critério de “psicologia de massas”, candidatos alindados pelo Photoshop, palavras de ordem e promessas estereotipadas e tão vazias de conteúdo, como o vácuo mas perfeito, que mesmo assim consegue ter algumas partículas lá dentro.
Se quiserem, isto é que eu acho deprimente. Acresce que as campanhas autárquicas são as mais parecidas com as eleições nas grandes democracias, na Índia ou no Brasil, por exemplo.
Os “santinhos” das campanhas brasileiras dariam para centenas de programas de “tesourinhos deprimentes” e, no entanto, aquela selva de candidatos que se apresentam como trabalhadores, pastores evangélicos, palhaços, desportistas, médicos, marceneiros, mecânicos, etc., tem um lado de genuinidade, que muito dificilmente se podia repetir aqui, se, por exemplo, os candidatos tivessem de se apresentar como sendo profissionais de alguma coisa, ou pensassem que ser um bom pintor ou carpinteiro é uma honra.
Claro que hoje já há uns candidatos mais espertos que perceberam que se fizessem umas coisas para alimentar o engraçadismo “deprimente” podiam ter uma publicidade que nunca teriam se fossem mais estereotipados. O “marido da Lara”, candidato do PS em Óbidos, é disso um exemplo, virando o feitiço contra o feiticeiro e usando os engraçadistas para lhe servirem a campanha de graça.
Dito isto, as eleições autárquicas têm, como todas as outras, as mesmas perversões gerais e algumas que lhes são próprias. As campanhas autárquicas reproduzem muitas das degenerescências que hoje estão inscritas no sistema político, o aparelhismo das escolhas (o caso de Gaia do PSD é exemplar), as clientelas instaladas, os interesses pessoais de muitos candidatos, a procura de lugares, carreiras e poderes para distribuir, a necessidade pura e dura de ter um emprego e um salário, seja nas câmaras, seja nas freguesias ou nas empresas municipalizadas. Também é verdade que muitas listas de independentes são dos que ficaram em minoria ou não foram escolhidos pelos partidos, mas há muito genuíno independente.
E reflectem, principalmente nos grandes municípios, as mesmas perigosas tendências da política actual, como é o caso do populismo agressivo da candidata do PSD da Amadora, um clone do Chega. Mas, mesmo assim, também fora dos grandes municípios, estas eleições são aquelas em que partidos como o Chega têm menos probabilidades de crescer, em particular quando o voto permanece preso a personalidades e circunstâncias locais.
Eu acredito numa velha máxima dialéctica que vinha dos gregos, passou por Hegel para desaguar em Engels, que é a da passagem da quantidade à qualidade. Sou um firme partidário da quantidade, coisa muito negligenciada nos dias de hoje em detrimento da qualidade, que muitas vezes não é qualidade nenhuma. E olho para as autárquicas: 308 municípios, 3091 freguesias. Estas são as únicas eleições, juntamente com as regionais, em que o voto dos corvinos conta. E, se tivermos em conta de que na maioria dos municípios há pelo menos quatro listas, vamos em 1200; e, se nas freguesias houver pelo menos duas listas (a tendência hoje é para haver mais), temos 6000, ou seja, haverá pelo menos à volta de 8000 campanhas diferenciadas. Nestas campanhas estão envolvidas à volta de 100.000 pessoas. E são produzidos, mais ou menos, o mesmo número de “objectos” de campanha, cartazes, panfletos, autocolantes, “brindes”, jornais, páginas de Facebook, imagens no Instagram, etc.
É isto que eu chamo quantidade.
P.S. – No Arquivo Ephemera somos os únicos com capacidade para cobrir estas eleições, nos mínimos aceitáveis. Com a rede de voluntários pelo país fora, cerca de 150 em 2017, conseguimos nesse ano acompanhar 1600 campanhas, recolher cerca de 35.000-40.000 “objectos”, dos quais uma parte importante está digitalizada e publicada. Embora as pastas estejam sempre abertas, a experiência mostra-nos que em cada eleição se consegue completar as anteriores – mesmo assim o total é um pequeno número. A maioria dos restos desta memória perde-se.
Historiador