(António Guerreiro, in Público, 23/07/2021)

Catástrofes naturais, sempre as houve, mas o modo como foi percebido e representado universalmente o dilúvio que devastou povoações inteiras, na Alemanha, revela que há hoje uma nova consciência, uma enorme sensibilidade à responsabilidade da acção humana na variação cosmológica em que nos encontramos. Até há pouco tempo, o problema era o da insensibilidade ecológica; agora, entrámos na fase da hipersensibilidade, de tal modo que temos a percepção de que estamos a assistir a uma aceleração desenfreada da história geológica.
O problema — muito evidente — é que ninguém sabe o que fazer e todas as medidas programadas para diminuir as emissões de dióxido de carbono, ainda que bem-sucedidas, resolveriam apenas uma pequena parte do impacto ecológico do nosso modo de vida. E, como disse uma vez Bruno Latour (o sociólogo e filósofo mais lido e discutido internacionalmente nesta matéria), um Estado armado para a mutação ecológica não pode existir, era necessária a mobilização colectiva, universal, da sociedade civil. Devemos, aliás, duvidar seriamente da ligeireza com que os poderes políticos nos querem convencer de que possuem os instrumentos eficazes e um controlo do tempo certo para realizar uma mutação ecológica.
Mas a dimensão colossal do desastre provocado pelas cheias, na Alemanha, causou espanto e pavor porque acontece num universo de classes geo-sociais privilegiadas e lançou assim o aviso de um perigo iminente que não tem o mesmo poder de alerta quando atinge territórios habitados por classes sociais desfavorecidas ou mesmo na miséria. Que repercussão têm sobre os grandes decisores políticos e sobre a opinião pública ocidental os milhões de deslocados em África e na Ásia por causa das secas e das cheias?
Esta nova categoria política, as classes geo-sociais, também da autoria de Bruno Latour, emerge a partir de uma mutação das lutas políticas, que o sociólogo francês explica desta maneira: o clássico conflito das classes sociais transformou-se numa luta de classes geo-sociais, a partir do momento em que já não são apenas as dimensões económicas que contam, mas outras dimensões ligadas à habitabilidade do planeta. A exploração e a desigualdade não deixaram de existir, mas elas exercem-se no interior das zonas de habitabilidade, que se tornam um grande motivo do conflito político. Não é que Bruno Latour não reconheça que as classes sociais não tenham sido sempre classes geo-sociais, mas agora, sob o efeito desta nova variação cosmológica em que ganhámos a consciência de que há a responsabilidade da acção humana sobre o clima e todas as condições que permitem a vida na Terra, acentuou-se enormemente o factor “geo” na definição de classe social.
A grande novidade do nosso tempo é que há meia dúzia de indivíduos no mundo para os quais não serve nenhuma definição de classe. São precisamente aqueles que fazem agora a experiência de se subtrair à “zona crítica” e passar para o exterior do nosso planeta, para fora de Gaia. A noção de “zona crítica” é também de Latour: designa a camada exterior da Terra, onde estão reunidas as condições de habitabilidade dos seres vivos (Critical Zones é precisamente o nome de uma grande exposição comissariada por Bruno Latour, em exibição desde Maio de 2020 em Karlsruhe, na Alemanha, no centro de arte ZKM, isto é, Zentrum für Kunt und Medien).
Face ao tamanho do nosso planeta, e ainda muito mais se passarmos para a escala do universo, esta zona é bastante reduzida. Por este dias, em que milhões de cidadãos estavam em confinamento, no mundo inteiro, foi a vez de Jeff Bezos, num gesto de soberania sobre todos os poderes e contingências terrenas, desconfinar absolutamente, fazendo uma incursão experimental para fora da “zona crítica” e, até, para fora da Terra, numa nave lançada de uma estação no deserto do Texas. Bezos deixa de ser geo-socialmente definível, está fora da luta de classes e aspira a situar-se acima de Gaia e não no interior dela, como todos nós. Olhará a Terra sem se sentir culpado de a degradar. Nós, por enquanto, só podemos ter essa mesma sensação, como diz Latour na abertura do seu último livro Où suis-je?, olhando para a lua, isto é, tornando-nos um pouco lunáticos.

Um pensamento sobre “Catástrofes e novas lutas de classe”