O futuro dos jovens socialistas

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 25/06/2021)

Miguel Sousa Tavares

(Até tens razão, ó Miguel. Mas achas que, inseridos na União Europeia, esse farol do neoliberalismo a que tu teces loas, seria possível fazer diferente? Ó santa ingenuidade. Comentário da Estátua).


Acabado de ser reeleito secretário-geral do PS, com uma votação norte-coreana de 94%, António Costa dirigiu uma mensagem aos jovens socialistas exortando-os a envolverem-se mais na política e no que ela, afinal, tem de mais importante: a resolução dos problemas do dia-a-dia das pessoas e a antecipação dos problemas do futuro, que os jovens terão de enfrentar amanhã. Belas palavras, repetidas de geração em geração, e que, na prática, significam apenas isto: enquanto o PS e António Costa se mantiverem inabaláveis nas sondagens e nas urnas e a sagrada quota dos jotinhas socialistas for respeitada nas próximas listas de deputados, todos estarão contentes e em paz. Do resto, dos problemas do dia-a-dia dos portugueses e do futuro deste país, encarrega-se a política do “já posso ir ao banco?” — genial síntese não apenas de uma atitude de quem vive em eterna pedinchagem sem disfarce, mas igualmente de quem se dispensa de pensar, de planear, de criar por si. De ousar ver além do próximo cheque.

Mas se, porventura, entre aqueles jovens-velhos da política houvesse um verdadeiramente jovem e atrevido no que interessa, teria aproveitado para interpelar o secretário-geral: “Camarada António Costa, por acaso leu o último relatório das Nações Unidas sobre o ambiente, que irá servir de base de discussão na Cimeira da ONU sobre o Clima (o COP 26), em Novembro, em Glasgow?” Não, Costa não leu. Na melhor das hipóteses, irá ler, por alto e no avião a caminho de Glasgow, algumas linhas preparadas pelo ministro Matos Fernandes, debitando as habituais banalidades de que Portugal está na “linha da frente” do combate às alterações climáticas, isto e mais aquilo.

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Mas não é disso que fala o relatório da ONU. Não é de boas intenções, daquelas que enchem o inferno: é do próprio inferno que avança sobre nós e que cada vez está mais próximo. O relatório chama-lhe a “próxima pandemia” e avisa que para esta não há vacina, será mais prolongada e terá efeitos muito mais devastadores, podendo durar décadas e conduzir à fome, ao déficit energético, ao caos ambiental e social, a guerras e migrações que a Idade Contemporânea nunca viu. Trata-se, como toda a gente inteligente ou informada sabe, da falta de água no planeta, causada pelas secas prolongadas ou súbitas com origem nas alterações climáticas. Há muito que relatórios semelhantes nos vêm avisando para isto, e o que este tem de mais assustador é que é mais recente, reunindo dados mais actualizados, mais bem medidos e melhor analisados. Em Glasgow, os governantes do planeta serão confrontados com a realidade que muitos teimam em não querer ver e chegará a hora da verdade, já sem um Trump como desculpa para a inércia colectiva. Sendo, porém, verdade que uns países estão mais ameaçados de imediato que outros. E entre os mais ameaçados estão, primeiro que todos, os países do Sul da Europa e, depois, os da África Ocidental. Azar o nosso, Portugal fica exactamente no Sul da Europa (e, não fosse o relatório dizê-lo, ninguém aqui tinha ainda dado por isso). Mas o relatório também diz que a ameaça da falta de água é agravada “pelo uso ineficiente dos recursos de água, a degradação dos solos devido à agricultura intensiva, a deflorestação, o uso elevado de fertilizantes e pesticidas, o pasto intensivo e a elevada extracção de água para fins agrícolas”. Oh, que azar o nosso! Tirando a deflorestação, que remete para a floresta amazónica e a política agrícola-incendiária de Bolsonaro, tudo o resto é exactamente o que caracteriza a nossa “agricultura moderna”, tão louvada e acarinhada pela nossa ministra da Agricultura. Ou seja, estamos no epicentro do sismo e a fazer tudo o que podemos para que ele nos atinja em cheio.

Há dias, a dita senhora, Maria do Céu Antunes, deu uma entrevista ao jornal “Negócios” que é em si mesma todo um programa. Um programa para o desastre e uma profissão de fé na irresponsabilidade. A declaração mais chocante dessa entrevista é quando ela, interrogada sobre os infelizes imigrantes asiáticos vivendo em contentores em Odemira, pagos a 200 ou 300 euros por mês nas estufas, tem o supremo desplante de responder isto: “Se lhes chamar contentores, dá uma ideia errada das excelentes condições que existem.” Esta frase na boca de um governante do PSD ou do CDS já teria feito a senhora ministra emigrar para a terra dos felizes habitantes dos contentores; mas, como é de um Governo dito de esquerda e apoiado por toda a esquerda, passa incólume porque há coisas mais importantes a salvaguardar.

E há, de facto, coisas mais importantes a reter nesta entrevista. Esta frase, por exemplo: “Os regimes intensivos são dos mais eficientes na utilização dos factores de produção. Sejam recursos naturais, como a água e o solo, sejam pesticidas e fertilizantes, porque a agricultura de precisão é utilizada para tornar esta agricultura mais competitiva. É esta que alavanca as nossas exportações.” Honra lhe seja feita, a ministra não esconde nada: o seu pensamento é claro como a água, mortal como um pesticida. Revela uma absoluta ignorância, uma total irresponsabilidade de gestão, uma abordagem completamente ultrapassada e primária àquilo que deve ser o papel de uma agricultura sustentável no ordenamento do território, na defesa do ambiente e preservação dos recursos, na fixação de populações e protecção dos pequenos agricultores e da agricultura não invasiva. É mais um ministro que só quer saber dos dinheiros da PAC e das exportações, mais um que nos vem com as quotas do azeite sem querer saber da exaustão dos solos, da escassez de água, do fim da biodiversidade, da emigração das populações rurais. Alguém lhe terá contado da rega gota-a-gota e computorizada — coisas que já existem há décadas —, e ela, fascinada, concluiu que isso era a “agricultura moderna”. Porém, esqueceram-se de lhe explicar que se é verdade que um hectare regado assim poupa mais água que um hectare regado à mangueira, já dez hectares não poupam mais. E cem hectares ainda poupam menos; e mil, muito menos. E por isso a senhora autoriza tudo o que seja “moderno”, e quanto mais “intensivo” mais moderno lhe soa — seja amendoal intensivo no Alqueva ou seja, no Algarve, essa coisa exótica do abacate, que tanta água gasta e tanta falta nos fazia… ­Aliás, ela está descansada, porque “neste momento” não corremos o risco de faltar água no Algarve, no Verão, e tem até um plano para o uso “muito racional de água no Algarve” — o qual não passa, claro, por proibir mais abacates ou laranjais intensivos, mas por investir a astronómica quantia de um milhão de euros talvez em macumbas para encomendar chuva. Já no Perímetro de Rega do Mira — onde se situam as suas acarinhadas estufas de Odemira, exemplo de verdadeira agricultura moderna no meio de um parque natural, um autêntico farol das exportações e símbolo do seu “sonho de uma sociedade mais justa” —, aí, sucede que, como era de esperar, esgotou-se a água da Barragem de Santa Clara e já nem dá para manter o caudal ecológico do rio Mira. Então, a solução socialista é manter a água às grandes empresas das estufas de agricultura intensiva e tirá-la aos pequenos agricultores locais que restam: em nome das exportações. Para depois se queixarem que o interior está abandonado, que ninguém cuida das terras e que assim os incêndios proliferam sem solução.

Alguém devia explicar à ministra (talvez o seu colega do Ambiente, se não existisse apenas no papel) que a agricultura em Portugal consome 75% da água que gastamos e que esta vai acabar em breve se ela continuar a autorizar olivais e amendoais super-intensivos no Alqueva, laranjais e abacates no Algarve, estufas na costa alentejana.

Todas as manhãs, mal a visse, o seu chefe de gabinete devia dizer-lhe: “Bom dia, senhora ministra, a água vai acabar.” Até que um dia cortava-lhe a água na casa de banho e, quando ela perguntasse o que se passava, ele responderia: “Acabou-se a água, senhora ministra, foi toda para o olival, os abacates e as framboesas.” Mas isso não vai acontecer nem António Costa a vai dispensar. Isso seria pior do que faltar a água em Portugal, seria reconhecer que algum membro deste Governo é incompetente.

Alô, jovens socialistas: bem-vindos ao vosso futuro!

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


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2 pensamentos sobre “O futuro dos jovens socialistas

  1. E EU A PENSAR QUE ESSA COISA DO NEOLIBERALISMO ERA APENAS UMA OBSTINAÇÃO DESSE EMPEDERNIDO NEOLIBERAL “PASSOS COELHO”.
    FOI PRECISO O PS TOMAR O PODER PARA SE FAZER LUZ E CONSTATAR QUE NÃO É POSSÍVEL, FAZER DIFERENTE, DEBAIXO DESSE FAROL NEOLIBERALISSIMO QUE É A UNIÃO EUROPEIA.
    SANTA INGENUIDADE A MINHA, DIABÓLICA HIPOCRISIA A DA ESTÁTUA.

    Ó MIGUEL JÁ AGORA ACRESCENTA OS NOGUEIRAIS NO ALENTEJO QUE ALEM DE SEREM UM SORVEDOURO DE ÁGUA SUPERIOR AOS AMENDOAIS E OLIVAIS, DÃO MAIS UMA MACHADADA NO RENDIMENTO DOS PEQUENOS AGRICULTORES PARA QUEM AS NOZES TAL COMO AS CASTANHAS REPRESENTAM UM PEQUENO EXTRA AOS SEUS MAGROS RENDIMENTOS DE SUBSISTÊNCIA.

    A primeira fábrica de nozes em Portugal
    São qualquer coisa como 614 campos de futebol com nogueiras a perder de vista, que vão produzir 4 mil toneladas de nozes na zona de Évora. Investimento de 48 milhões é do grupo Sogepoc, que quer abastecer o mercado europeu e intrometer-se entre os dois maiores fornecedores mundiais, Estados Unidos e Chile.

  2. A falta de água em Portugal
    Sem embargo das questões suscitadas pelo MST (ao contrário do que este quer fazer crer não me parece que o problema se deva ou se restrinja ao governo socialista) o caminho para ampliar a oferta de água em Portugal parece óbvio, uma vez que 97,5% da água do planeta está no mar.
    A dessalinização da água do mar é cada vez mais comum em países desérticos ou com falta de fontes disponíveis de água potável, como sucede em Israel (em que mais da metade da água potável consumida, 600 bilhões de litros por ano, vem do mar) no Médio Oriente (que produz 75% da água dessalinizada do mundo) e em certos países de África, como é o exemplo de Cabo Verde.
    Mas o seu uso não se restringe a esses locais e já está bastante difundido no mundo, sendo já utilizado em países, como Austrália, Estados Unidos, Espanha e Japão (Associação Internacional de Dessalinização – IDA).
    Como referiu o empresário José Roquete numa entrevista ao Público/Rádio Renascença (Fevereiro de 2018) «só há uma alternativa: é ir buscar a água onde ela está, que é o mar. E em Portugal falar de dessalinização é uma coisa que ainda está lá por trás do sol posto, ignorando que a Espanha é o 4.º país do mundo na produção de água dessalinizada. A Espanha tem mais de 700 dessalinizadoras instaladas que, só por si, produzem a água utilizável para Portugal inteiro. Aqui em Portugal, que eu saiba, temos uma muito pequenina em Porto Santo. Mas o que não existe é a perceção… é que o podia dizer: “Talvez para o ano”. Mas esta questão não se põe tal é o estado de negação».
    Propunha JR a introdução de dessalinizadoras na costa do Algarve, com o transporte e vazamento da água do mar dessalinizada na bacia hidrográfica do Alqueva.

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