Como tramar os jovens

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 08706/2021)

É um desastre geracional. Num mundo laboral de contratos experimentais e de trabalho à peça ou à jorna, ou de trabalhadores transformados em empresários em nome individual para efeito do não pagamento da segurança social pela entidade contratante, só pode haver uma corrida para o fundo da tabela salarial e para a desvalorização do trabalho qualificado.


Afinal era mesmo inconstitucional, diz o Tribunal, que chumbou a norma que permitiu a duplicação do período experimental para 180 dias, nos casos em que o trabalhador à procura de primeiro emprego já tenha tido um contrato a prazo de 90 ou mais dias. O Tribunal aceitou a opção daquela lei noutras matérias, como sobre a caducidade dos contratos coletivos ou mesmo sobre o período experimental para desempregados de longa duração. Mas a sua decisão, mesmo que somente sobre um dos pilares do ajustamento ao Código Laboral aplicado pelo anterior governo, então apoiado pelo PSD, tem um impacto profundo.

O facto é que esta duplicação do período experimental tem uma história perversa. O Governo estabelecera um acordo com a esquerda sobre alterações ao Código Laboral, incluindo a redução da sucessão de contratos a prazo e outras normas que foram apreciadas como protetoras dos direitos sociais. Festejado o sucesso da negociação ao final de uma tarde prometedora, soube-se no dia seguinte que, pela madrugada ou alvorada do dia, tinham sido acrescentadas algumas medidas negociadas à sorrelfa com as associações patronais, incluindo o nefando período experimental (e a curiosa extensão do tempo para os contratos verbais).

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A rutura com a esquerda foi amplificada pela perceção desta má fé negocial. Compreende-se assim porque é que a questão da revisão do Código Laboral, que já era um ponto fulcral das negociações entre o Governo e a esquerda, passou a ter este interdito atravessado: o PS nunca aceitou rever aquele acordo que negociou de madrugada com as associações patronais e alegou mesmo essa razão para recusar um acordo para a legislatura com o Bloco, como lhe foi proposto depois das últimas eleições. A engenharia do trabalho experimental, do trabalho temporário e da precarização tornou-se uma questão de honra para o Governo. Agora, o Tribunal Constitucional determinou que um dos pontos essenciais dessa mudança do Código é ilegal.

O episódio tem uma leitura política e constitucional, mas tem também outra dimensão maior, estratégica, que responde à seguinte questão: é a precarização a forma adequada para garantir emprego aos jovens ou, pelo menos, ser-lhes-ia prejudicial mexer nestas regras? Se bem percebo o argumento de Ricardo Costa, na última edição do Expresso, a sua resposta é que não se deve alterar esta lei, que teria servido a criação de emprego, ideia retomada por muitos comentadores e decisores. Escreve ele que “a generalização da precariedade nos serviços e a uberização do trabalho são mudanças brutais mas que só podem ser combatidas com inteligência e um forte crescimento económico. Quem acha que altera isso numa lei está enganado. Mais grave: pode prejudicar os jovens, que foram os mais castigados nesta crise”. Pergunta por isso, de modo retórico, “se a recuperação do emprego a partir de 2014 se fez com esta legislação, qual é o sentido de a mudar agora?”. O argumento é óbvio, não mexam nas leis do trabalho.

O problema é que os factos não parecem conviver bem com qualquer proposta situacionista. É evidente que, sendo a uberização e plataformização uma mudança violenta, somente o crescimento económico cria emprego. Só que, se o trabalho continuar a ser precarizado, esse caminho trama os jovens. Os dados publicados na semana passada pela Fundação José Neves demonstram esse perigo. Estudando os anos desde a crise da dívida soberana, incluindo portanto cinco anos de recuperação económica até 2019, os resultados são constrangedores: os jovens qualificados, com ensino superior, perderam 17% de salário. E, depois de tanto crescimento de emprego, foram postos de lado: têm agora uma taxa de desemprego de 19,4%, o triplo do desemprego médio nacional. A “recuperação do emprego a partir de 2014, com esta legislação” não lhes serviu. Acresce que 15% dos jovens licenciados estão a trabalhar abaixo das suas qualificações. Para as mulheres, pior ainda, o fosso salarial agravou-se com o progresso da sua formação: o desnível salarial entre homens e mulheres é, segundo a Fundação, de 21%, mas chega a 32% no caso das mulheres com mestrado.

É um desastre geracional. E é um processo consolidado pela precarização: num mundo laboral de contratos experimentais e de trabalho à peça ou à jorna, ou de trabalhadores transformados em empresários em nome individual para efeito do não pagamento da segurança social pela entidade contratante, só pode haver uma corrida para o fundo da tabela salarial e para a desvalorização do trabalho qualificado. Os empresários que esfregam as mãos de alegria pelas margens de curto prazo geradas por esta devastação social, ou o Governo que apregoe este sucesso, não compreendem o vazio que estão a criar. Ou compreendem bem demais.


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3 pensamentos sobre “Como tramar os jovens

  1. Pois.

    O PS entregue a si mesmo é um partido de direita.

    Por isso é necessária uma extrema esquerda com força para corrigir o neoliberalismo “do PS real” e a geringonça foi uma inesperada sorte grande para o país.

    Por isso tenho votado na extrema esquerda apesar de saber que dispondo de um poder absoluto eles provavelmente me limpavam o sebo por falar abertamente “segredos” que toda a gente sabe mas que eles gostavam de poder censurar. Como que o regime soviético era uma ditadura sangrenta.

    Curiosamente grandes vultos do marxismo desde sempre diziam exatamente o mesmo.

    Por exemplo, Trotsky, (não sei se sabem quem é) dizia-o da URSS a partir de Estaline.

    Kautsky, (este não sabem de certeza) dizia-o logo a respeito de Lenine e Trosky.

    Mas isso não interessa nada aos camaradas.

    Ah! Tinha-me esquecido. Ter pele branca e testiculos e não reconhecer que por causa dsso seja um monstro opressor/perseguidor/cheio de privilégios/Zzzzzzzz também faz de mim um alvo a abater pela esquerda mais demente.

    O facto de ganhar praticamente o salário minimo e ainda ser roubado descaradamente pelo patronato, o que faz com que na realidade ganhe menos, apesar de provavelmente ter mais estudos que o meu querido patrão não interessa nada à esquerda.

    Testículos e palidez para estes idiotas torna-me detentor de um privilégio ostentoso e nababesco, digno das mil e uma noites, pelo qual devo pedir desculpas por ter nascido com estes apêndices culposos e nojenta coloração.

    Enfim, temos de nos haver com a porcaria que temos e por isso já votei no idiota do senhor conselheiro de estado e no seu camarada-inimigo mortal, tio Jerónimo.

  2. Para quem pense que exagero, lembro que, por dizer o que eu digo. Que a URSS era uma ditadura. O amado líder do senhor conselheiro de estado, camarada Trotsky, teve direito a explicações privadas gratuitas de “centralismo democrático” em casa levando com uma picareta nos cornos até interiorizar o conceito.

    E por cá, em 74, os simpáticos capangas da UDP, formação que agora integra o bloco e do qual faz parte a mana Mortágua, espancaram com barras de ferro um grupo de rivais do MRPP que não quiseram compreender à primeira a versão correta do marxismo lelinismo.

    Como pormenor simpático ainda afogaram no Tejo um dos líderes do MRPP, Alexandrino de Sousa, desde então cognonimado o escafandrino.

    Se fazem isto uns aos outros o que não me farão a mim…

    Enfim, como a direita se puder arranca-me a pele para fazer um tapete para o meu querido patrão, tenho de votar neles.

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