O que Ana Rita Cavaco ouviu dizer e as duas faces da mesma incivilidade

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 04/02/2021)

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Deixo para a edição semanal desta sexta-feira o texto sobre o debate que se instalou em torno dos casos de vacinação indevida e a demissão de Francisco Ramos, no que ela tem de compreensível, de acertado, de errado, de inevitável e de lamentável. Na desproporção mediática que cria dinâmicas que podem tornar impossível qualquer gestão desta pandemia, com custos para as nossas vidas. Como digo, fica para outro texto. Esta quinta-feira quero falar de uma personagem que tem tudo a ver com isto.

Dois dos bastonários ligados à área da saúde – pelo menos que eu tenha dado por isso, não se confundem com eles os dos farmacêuticos, psicólogos, médicos dentistas e nutricionistas – têm desempenhado um papel lamentável nesta pandemia. Esse papel é essencialmente político, extravasando a já ilegítima tentativa de se substituírem aos sindicatos. Mas não me vou dedicar a Miguel Guimarães. Não porque seja irrelevante. O poder absurdo que a Ordem tem na porta de entrada das especialidades também ajuda a explicar algumas das dificuldades que vivemos. Apenas porque, apesar de tudo, não o quero misturar com uma pessoa que promete ter futuro na cada vez mais desprestigiada política nacional. É para isso que está a trabalhar, pelo menos.

A bastonária Ana Rita Cavaco entra num outro campeonato. Já não estamos, no seu caso, a falar de aproveitamento político. Estamos a falar de um comportamento que degrada o espaço público, intolerável em quem ocupa o lugar que ocupa. Apesar de apenas 19 mil dos mais de 70 mil enfermeiros lhe terem dado o seu voto, é inconcebível que a classe se consiga rever no seu comportamento ofensivo e tóxico.

Sobre os casos de utilização indevida de vacinas, que não são uma originalidade portuguesa, Ana Rita Cavaco tem liderado uma caça às bruxas. Não se trata de denunciar casos de abuso. O abuso deve ser denunciado. Seria normal que quem tem poderes delegados pelo Estado usasse melhores vias do que as redes sociais, mas já não espero que alguém ainda ligue a isso. Grave é que a bastonária acuse pessoas sem qualquer tentativa de recolher provas, usando o poderoso argumento de “ouvi dizer”. Foi o que fez com Jorge Botelho, secretário de Estado da Descentralização e Administração Local, e a sua mulher, Margarida Flores, diretora regional do Instituto de Segurança Social do Algarve. Esclareça-se que nada sei sobre estas duas pessoas, para além dos cargos que ocupam e de serem, ao que parece, marido e mulher. Nem sei são competentes. Isso é, neste caso, relevante.

Escreve a bastonária (tenho de estar sempre a sublinhar que é bastonária, porque custa a acreditar): “Também ouvi dizer que a Presidente da SS de Faro, ilustre esposa de um Secretário de Estado, eu para nomes sou horrível, mas acho que a ilustre é Margarida Flores e o partner é o SE da administração local, acho que se chama assim. Pegou nela, dizem, na família e nuns amigos socialistas e toca de fazer de fura filas e chicos espertos a tomar a vacina. Se assim for, a quantidade de trastes por metro quadrado no País, que é pequenino, está insuportável! Oh criaturas horrorosas, fina flor do entulho! Que gente é esta meu Deus. Atenção, dizem…”

Ana Rita Cavaco sabe, como todos hoje sabem, que espalhada a mentira já não há como a travar. Mas a coisa piora. Quando foi contactada por um dos visados para a informar de que nem sequer fora vacinado, a bastonária (sim, bastonária) acrescentou um postscriptum: “Entretanto ligou-me agora o SE Jorge Botelho, agora fixei o nome, referindo que não foi vacinado, nem ele, nem a esposa mas que tem critérios para ser. Ficou aborrecido com o que as pessoas dizem. Achei que devia pôr aqui a sua posição mas confesso que fiquei confusa, não foi mas tem critério. Lembrei-me de outra coisa também, o critério neste país para se ter um alto cargo público, família.”

Perante a informação de que estava a difamar alguém, a bastonária (é mesmo bastonária) não pediu desculpas, não corrigiu o que escreveu. Preferiu manter a dúvida: “confesso que fiquei confusa.” E passou ao ataque, sobre as relações familiares na ocupação de cargos públicos, sem qualquer relação com os factos em causa e o processo de vacinação. Errar numa acusação desta natureza é grave, mas pode acontecer a qualquer pessoa num gesto imediato e irrefletido de que se arrepende. Saber que se mentiu e manter a insinuação, em vez de pedir desculpas pela injustiça cometida, define o caráter de alguém.

Jorge Botelho e Margarida Flores já tornaram pública a intenção de avançar com processos crime por difamação contra Ana Rita Cavaco. Sabem, todos sabemos, que isso não limpará os seus nomes do diz-que-disse. Sei por experiência própria que estas acusações permanecem para sempre no ar. E que a bastonária (pois, bastonária) continuará a usar um estilo que resulta.

O estilo de Ana Rita Cavaco é fácil de reconhecer. E nem os insultos relacionados com características físicas das pessoas escapa ao mimetismo de Trump e da sua cópia nacional – “a gorda fura filas”, foi como chamou à presidente da Câmara Municipal de Portimão, por ela ter dito que era obesa. Alguma vez imaginámos ler de um qualquer bastonário o termo “gorda” para se referir a um qualquer detentor de cargo público, por mais censurável que fosse o seu comportamento? O que aconteceu à nossa exigência para isto já não nos incomodar? A que ponto chegámos para alguém que dirige uma ordem profissional falar assim e tudo ser normal?

A tristeza com que vejo espertalhões passarem à frente para receberem a vacina é a mesma com que vejo uma bastonária com poderes delegados do Estado a liderar uma caça às bruxas nas redes sociais, chamando “gorda” a uma autarca ou difamando pessoas porque “ouviu dizer” que tomaram a vacina indevidamente e recusando-se a corrigir a difamação quando é esclarecida. São duas faces da mesma informalidade e desprezo por regras legais e de civilidade. Uma não se opõe à outra. São cozinhadas no mesmo caldo.

Para percebermos como está invertida a ordem moral das coisas, basta deixar uma pergunta. Francisco Ramos demitiu-se da liderança da task-force depois de ter ele próprio detetado irregularidades no processo de vacinação no hospital onde tem responsabilidades de direção. Se Ana Rita Cavaco descobrisse irregularidades na Ordem dos Enfermeiros, demitia-se? Acho que todos sabemos intuitivamente a resposta. E todos percebemos que tipo de pessoas estão a fazer julgamentos públicos de que tipo de pessoas.


11 pensamentos sobre “O que Ana Rita Cavaco ouviu dizer e as duas faces da mesma incivilidade

  1. Concordo totalmente mas… na prática, o que se pode fazer para não termos de ouvir essa horrivel senhora bastonária? Enfermeira? Que medo!

  2. Embora a bastonária ponha no condicional a acusação, pois escreve ” se assim for” o que quer dizer que não dá os factos como confirmados, que fique bem claro que de forma alguma concordo com a sua atitude a todos os titulos deplorável de não reconhecer o erro e fazer a devida mea culpa. Quanto ao referir-se como gorda à presidente da câmara de Portimão não fez mais do que traduzir para a linguagem do povo o termo obesa. As senhoras finas são obesas as mulheres do povo são gordas.
    E já agora uma presidente de câmara não terá mais atribuições a desempenhar do que fazer que meche em computadores para fazer que faz videochamadas para visitas virtuais?
    Lá na terra não haverá centenas de jovens super aptos para fazer tais funções?
    Que figurinhas tristes e ridiculas desta e quejandos, para agarrar umas sobrinhas de vacina.
    Já agora o senhor Francisco Ramos que se demitiu e bem da task force em função da balbúrdia que por lá grassa e de que era até ontem o responsável, porque é que não se demitiu tambem da entidadade que invocou como desculpa para se demitir da outra. Será que não é para não perder o princepesco salário, que recebe da instituição a que preside e que por sinal pertence à Cruz Vermelha, instituição esta que anda por aí a pedinchar sobras de IRS etc, que eu na minha injenuidade pensava que era administradada parcimoniosamente.
    Quanto à COVID não sei quando chegara a minha vez mas contra estas instituições pedinchonas já quase estou vacinado contra todas .
    E já agora senhor Daniel comentador, digo comentador, dou-lhe os meus sinceros parabens pela sua indignação pelo nefasto comportamento da senhora bastonaria, digo bastonaria, embora ela fizesse aquela publicação, não enquanto bastonaria mas sim como A.R. Cavaco, (irra, logo Cavaco), pois terá sido na sua conta pessoal duma dessas redes sociais das quais eu muito me urgulho de ser abstemio. Mas já agora senhor comentador, digo comentador porque é uma figura pública e enquanto tal, gostaria de o ver tão indignado, tão contundente e tão mordaz na critica a 1os, 2os e 3os ministros rebatendo as mintiras publicas que tentam impingir e a tantas outras figuras publicas de renome nacional e até internacinal que proferem os mais pérfidos impropérios e usam os mais rascas adjetivos para se referir ou classificar aqueles de quem não gostam, além da ilucidez de raciocinio e do embotamento mental de que muitos padecem.
    Senhor comentador, digo comentador, aguardo pacientemente a sua regeneração.
    Ps. Penso que já demorou mais, pois você é uma pessoa inteligente, sem ironia, e por outro lado ja evoluiu muito.

    • Cobardola!… Porque não dá a cara, dando a sua identificação pessoal, mostrando a cara que esconde agaxado por trás do biombo? Precisamos de gente de coluna direita …

    • Acho que o senhor, em vez de comentar o que dizem os comentadores, deve ir para a escola aprender a escrever e , já agora, aprender a comentar com argumentos válidos e validados pelas notícias íntegras, que ainda existem, raramente, na praça pública.

  3. Se Ana Rita Cavaco pertencesse as esquerdas que tomaram de assalto a saúde em Portugal nem uma linha teria sido escrita por Daniel Oliveira sobre este episódio ridículo que ocupa uma coluna no Expresso…Tão fofinho.😂

    • Arlindo Teles

      Tão fofinho! As “Esquerdas que tomaram de assalto a Saúde”, para si, são quem ? O PSD,o CDS, a IL e aquele grupelho neo-fascista que tem como “expoente” um fantoche “papa-hóstias” e ex-seminarista ?

      Tão…fofinho ! Mas com a “conversa” tão gasta…

      Divirta-se a vêr esta reportagem da TVI24, de ABRIL DE 2015, sobre o caos no SNS.

      Quem estava no governo? Era a “caranguejola” da “p(M)áfia do aldrabão-mór coelho, do portas submarinista, (depois a d. cristas) e da mentira loura albuquerque…

      E o ministro da Saúde, era o Paulo de Macedo (tudo gente de “esquerda”)…

      Divirta-se, que o filme “tem muita graça”…

      https://m.youtube.com/watch?v=yVvWZmwMqRM

  4. Nunca gostei da senhora bastonária, mesmo antes da pandemia, soa-me a falsa. Porém quando vi um comentário sobre o que ela tinha escrito. Fiquei estupefata, julguei não ser possivel e confesso que fui verificar a vericidade da notícia à sua pagina de facebook.
    Vivemos tempos esquisitos

  5. Se os meus ascendentes fossem acefalos talvez ne nomeassem Zé Do Pipo, ou quiçá Lenin, mas como pensavam, eu chamo-me Cógito.
    Não gostam, temos pena.
    As ofensas ficam com quem as diz e nomeadamente se ao faze-las, ainda se contradiz.
    Talvez a minha identificação completa fosse interessante para integrar uma lista vermelha de candidatos a um hipotetico e futuro GULAG.

  6. Lamentável Estamos perante uma sra. que por acaso, é só por acaso, é bastonário da ordem dos enfermeiros, por 19 mil votos. A formação , como mestre, não lhe trouxe o mais importante, e que é dado e aprendido ao longo dos anos: educação. Quem de facto é esta sra. que esteve no governo da troika, que nunca se importou que os enfermeiros trabalhassem 40 horas, não fossem aumentados, desde que ela não o fizesse, desde que se tivesse auto-aumentado, que tivesse processos disciplinares, e remetidos às gavetas. A falta de educação para com a Presidente Câmara Municipal de Portimão, tivesse razão, não lhe dá o direito de a ” cilindrar” com impropérios, ou com os outros intervenientes ” porque ouvi dizer”. Também ouvi dizer muita coisa, mas sem provas, não concretizou qualquer acusação. Tudo o que aqui foi explanado, encontra-se on line para todos tirarem o devido conhecimento sobre esta sra.que acima de tudo tem medo de perder a liderança e ir para um hospital fazer o seu trabalho ( ainda se lembrará)

  7. Não comento o que a Bastonária dos enfermeiros diz ou faz, porque então também teria de comentar a forma como este Governo, mais precisamente a Sra Ministra da Saúde tem tratado os profissionais de saúde, nomeadamente os enfermeiros. Qual o reconhecimento, quais os incentivos que tem tido para com eles? O que tem feito pela sua carreira? Caso nunca visto até conseguiu desprover uma categoria profissional, o que constitui uma ilegalidade. Os profissionais saúde precisam de ver reconhecido o seu valor, que bem tem sido demostrado nesta luta contra um inimigo invisível, muitas vezes pondo a sua vida em risco. O que tem feito o Governo e mais concretamente a Sra Ministra? Nada…
    Se a atitude da Sra Bastonária dos Enfermeiros deve ser criticada, certamente que não a única !!!

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