A mentira no pequeno ecrã

(António Guerreiro, in Público, 05/02/2021)

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A quem se dispõe a ver e ouvir os principais noticiários televisivos, à noite, pelas 20h, em qualquer um dos principais canais (RTP1 — salva-se a RTP2 — SIC e TVI) é-lhe infligida uma dose superlativa e alongada de notícias e reportagens sobre o Covid-19 que são exactamente iguais às notícias e reportagens do dia anterior, quase iguais às da semana anterior e horizontalmente encadeadas, sem picos nem descontinuidades, nas do mês anterior. A única coisa que difere é o teor de dramatismo, a acentuação, a mímica dos jornalistas (categoria na qual o vencedor absoluto é o clown José Rodrigues dos Santos).

Todos os dias, o empenho destes jornalistas em nos fazer imergir na peça que eles interpretam em vários andamentos (perigo, desastre, tragédia apocalipse) deixa-nos obtusos, anestesiados, irritados ou aterrorizados, conforme o nosso grau de permeabilidade e de “literacia mediática”, como se diz hoje. Sem negar a gravidade da pandemia, devemos perceber que quanto mais este jornalismo obeso e com a cegueira da enumeração se aplica a mostrar menos dá a ver, quanto mais imagens nos fornece mais visão nos confisca, quanto mais nos quer convencer de que toca a realidade e a verdade mais produz ficção e mentira. Este jornalismo da mesmice — dos mesmos factos, das mesmas pessoas e do mesmo tom — que encena pela redundância uma ilusão de totalidade (e que, por isso, precisa sempre de muito tempo, é uma espécie de roman-fleuve diário) coloca-nos perante um enigma: os jornalistas fazem-no por genuína convicção, por convicção induzida através de um mecanismo coercivo, ou sem nenhuma convicção, mas enquanto funcionários pragmáticos? Ficaríamos a saber alguma coisa de útil e mais aprofundada se eles se dispusessem a falar da sua profissão e das circunstâncias em que trabalham sem ser para cantar hinos e celebrar os sucessos da instituição que lhes dá emprego. John Maynard Keynes disse uma vez dos seus pares: “Os economistas estão ao volante da nossa sociedade, mas deviam estar no banco de trás”. É justo e razoável achar que Keynes tinha razão em 1946, quando fez essa afirmação, e continua a tê-la hoje. Vão para ele os créditos se dissermos mais ou menos o mesmo de quem vai ao volante deste jornalismo que nos é servido diariamente na televisão (não falo agora dos jornais porque aí, apesar de tudo, a paisagem é menos monótona e mais plural).

Atentemos no seguinte: o canal de televisão que à segunda-feira, num programa de fact checking chamado Polígrafo, traça “uma linha em nome dos factos”, dizendo-nos “onde acaba a verdade e começa a mentira”, é o mesmo que levou uma hora e meia a mentir-nos no Jornal da Noite que antecede esse programa. Não mente por dizer mentiras ou falsear imagens, não é a actual questão das fake news e da pós-verdade que aqui surge como pertinente ou a solicitar análise. Mente pelo encadeamento de palavras e de imagens, pela poluição discursiva e visual que produz, pelo tom adoptado (a dimensão prosódica do discurso, digamos assim), arrastando-nos para uma das regiões mais poluídas do planeta. Ai, nem palavras nem imagens são zonas a defender. Cumpre-se um formulário que encontrou uma representação eloquente no mais repetido estribilho dos últimos meses: “Hoje há X mortes a lamentar”. Temos à nossa disposição outras maneiras de dizer, de fazer, de dar a ver (mesmo na televisão em Portugal: é preciso dizer que nem tudo se equivale, não há apenas os jornais televisivos das 20h, nem todos praticam o mesmo tipo de jornalismo) que, sem a pretensão de um polígrafo, nos facultam elementos suficientes para percebermos onde está a mentira. Há uma cena do filme Palombella Rossa em que o protagonista, um deputado comunista interpretado pelo próprio realizador, Nanni Moretti, entrevistado por uma jornalista, começa a fazer um relato de lutas ecológicas e políticas travadas por comunidades indígenas do Peru. A entrevistadora, achando o assunto pouco interessante, interrompe-o e faz-lhe perguntas sobre o seu divórcio e o seu estilo de vida. Atingindo o extremo da impaciência, o entrevistado dá uma bofetada à jornalista e grita-lhe: “Ma come parla? Come parla?”, como quem diz: “Como é possível falar dessa maneira? Como posso eu continuar a falar consigo?”


6 pensamentos sobre “A mentira no pequeno ecrã

  1. Muito obrigada por este artigo e esta forma lúcida de interpretar as notícias. Felizmente ainda há quem dignifique a profissão de jornalista, tão necessária neste isolamento forçado.
    Na minha opinião, a mediatização do medo que, diariamente, expelem os telejornais, é uma forma perversa e insidiosa de terrorismo psicológico,
    Culpabilizar os cidadãos pelas falhas do sistema é sinistro. Reduzir tudo à pandemia, ignorando o que, realmente, se passa no mundo é demolidor e paralizante. É um insulto à nossa inteligência.
    Agora, mais do que nunca, precisamos de jornalismo com ética e qualidade.
    Venham mais artigos como este!

    • Nota. Maria João, olhe aqui, há outros artigos como este, bem, não exactamente como este…, no suplemento Ípsilon. Eu leio-os regularmente e, sem ser fanático, quase sempre estou de acordo. E mais: percebe-se hoje que o António Guerreiro lê bastante durante a tarde-noite-madrugada e que, aparentemente, desperta no dia seguinte ao natural sem o recurso aos enervantes pipis do despertador (eu, que pouco me emplumo como sabem, informo quec há meses acordo a ouvir a voz da Maria de Medeiros num poema lindíssimo, Quando se ateia em nós o fogo preso, sacado num .pdf do Drama Box da Misia…); e, estremunhado, sigo atentamente as notícias das televisões por cabo, de segunda a sexta, e me interrogo de cada vez que surge mais uma acção de campanha da conceituada parelha António Temido, Marta Costa & C.a, SA, sempre bem-dispostos, porreiraços, a rirem!, e disponíveis para listarem conselhos práticos e a darem esperanças sobre os elixires do processo de vacinação (“Um sucesso…”, ouviram o PM?), pastilha que as TV’s acompanham em directo durante aquela meia ou três quartos de hora e que conduz os espectadores da RTP, da SIC N e da TVI24 até às 11 da manhã… E é claro que, claramente bem entendido portanto, que-que depois ecoa o resto do dia até surgirem os números martelados pela turma da Graça Freitas nas caves da DGS (306, 303, 290, 256, 252…). E eu, que sou um honrado pequeno-criminoso, normalmente quando chega também a sexta-feira faço o relatório e contas sobre a tragédia da Covid-19 em Portugal, tal e qual como faz o António Guerreiro, e somo quase 1500 mortos numa semana que, por sua vez, acumulam com quatro semanas no mês e aos desgraçados nos barracões das “enfermarias” e nos 900, 1000, 1100 nos cuidados intensivos… E eu ainda, que sou um HPC ou apenas um vulgar criminoso segundo a Marta Temido, fico a pensar: mas do que é que estes filhos da puta do governo do PS estão a rir? Um dia destes pergunto ao Ricardo Costa, o coitado não tem culpa eu sei, se ele sabe os motivos irmão andar risonhamente no País com mais mortos no mundo.

      Liga o despertador, António Guerreiro, e vê as TV’s que se calhar consegues escrever umas crónicas um bocado mais inteligentes.

      • Desta vez é certo. Fiquei com a minha estupidez, que já é muita, à flor da pele! Mas afinal que verborreia é esta e qual o seu sentido? Pois não me parece que tenha, em concreto, algo a ver com a crónica, porque nada do diz está em questão! A minha pouquíssima inteligência não conseguiu captar. De facto, este texto escrito por RFC deve ser apenas para sujeitos com inteligência ou, sei lá, para génios como ele. Será um texto escrito para um stand up de mau gosto?

  2. Uma análise escorreito. Sim nos órgãos de comunicação visual há um ataque massivo a inteligência dos telespectadores. Põe de lado a imprensa escrita mas como sabe está infectada pelo mesmo vírus há mesmo um jornal que sai todos os dias a demolir um Governo e ninguém se ocupa de o desmentir. Já agora no jornal onde escreve temos as crónicas de um insensado , por ser novo e tão versátil no bullying e por Marcelo numa manhã de neblina em Belém ter descortinado o personagem. Tem ele como atributos ser filho do interior e ter tirado um curso , sem maldade mas foi de jornalismo ou de qualquer outra coisa, que permite mostrar que os jovens do interior também são capazes das mesmissimas desonestidades dos que nasceram na grande cidade. Já escrevi demais desculpem mas estou a desabafar. Sou de esquerda e apoio este Governo é que ainda há gente como eu e está calada e eu por causa do confinamento estou faladora.

  3. AS NOTICIAS

    (Um Manual para Utilizadores)

    “…É fácil acreditar que a maior inimiga da Democracia seria a censura sobre as noticias e
    que a total liberdade de dizer ou publicar fosse a sua grande aliada.
    Mas os tempos modernos demonstram que há maneiras mais insidiosas e cínicas de privar as pessoas da vontade para participarem na política ; estas maneiras consistem em confundir, aborrecer e distrair os cidadãos, apresentando as noticias de uma maneira desorganizada, desarticulada e intermitente, o que resulta na incapacidade das audiências de focarem a sua atenção por tempo suficiente nos factos relatados.

    Um ditador contemporâneo desejoso de conservar o poder absoluto não teria necessidade de recorrer a meios tão sinistros como o condicionamento das noticias: Apenas necessitaria assegurar que elas fossem publicadas em grande numero seguindo uma ordem arbitrária, sem nenhuma explicação sobre o seu contexto, mudando constantemente de assunto, impedindo a que nenhuma fosse dada a necessária relevância que por instantes parecia merecer .

    Apenas isto seria suficiente para diminuir a capacidade das pessoas de apreenderem a realidade política – eliminando toda e qualquer vontade que porventura tivessem de a alterarem, garantindo assim que o status quo ficaria para sempre igual simplesmente pela publicação constante de noticias em catadupa e não pela sua censura.

    A percepção que as noticias sobre política são aborrecidas não é uma questão menor ; pois quando estas falham ao não provocarem a curiosidade e a atenção das audiências devido às técnicas como são apresentadas, uma Sociedade fica perigosamente incapaz de enfrentar os seus dilemas e de ter capacidade de mudança e de se melhorar….”

    Alain de Botton – “The News: A Users Manual”

  4. Li o artigo de AG e parece-me que acertou de facto num ponto que há muito tenho vindo a verificar. Fiquei operplexo com o comentários de KFC e, então, desta vez, tive a certeza. Fiquei com a minha estupidez, que já é muita, à flor da pele. Mas afinal que verbosidade é esta e qual o sentido em relação à crónica de AG que a minha pouca inteligência não conseguiu apanhar? De facto, este texto escrito por RFC deve ser apenas para sujeitos com inteligência que não como a minha, mas apenas para génios como ele. Algum humor negro parece preparado para um espetáculo de Stand Up.

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