Na vertigem da desrazão

(Viriato Soromenho Marques, in Diário de Notícias, 23/01/2021)

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Escrevo na pior fase, até agora, da crise pandémica mundial. Portugal é agora um trágico campeão. A contar, não a partir de cima, do sítio onde se vislumbra o céu, mas a partir do fundo, do temível lugar de baixo onde todas as culturas milenares situam o inferno. Nos próximos 40 dias poderemos perder tanta gente para a covid-19 como o número de soldados que morreram em 13 anos de guerras ultramarinas. Afinal, este “vírus bonzinho” continua a semear morte e miséria e a deixar muitos líderes políticos, que julgavam ter o assunto resolvido com as vacinas e a propaganda, a fazer pagar aos seus povos o preço da tóxica combinação de ignorância com arrogância.

O que hoje acontece com a pandemia, e o que irá suceder, salvo ocorra um milagre, daqui a dez ou quinze anos com a entrada em cena de disruptivas reações em cascata, provocadas pela aceleração da crise ambiental e climática, é a confirmação da completa erosão do senso comum, essa faculdade que nos liga ao mundo. Essa erosão resulta de um longo e complexo processo histórico, com raiz na Europa de Quatrocentos, que os académicos costumam designar como modernidade. Estamos a viver o crepúsculo universal do programa renascentista de Pico della Mirandola (1463-1494): compreender o homem como uma criatura destinada por Deus à liberdade de escolher o seu destino. Ao fim de algum tempo, a parceria com Deus deu origem a um afastamento completo. Como Laplace disse a Napoleão: na ciência Deus é uma hipótese desnecessária. O cristianismo tinha sido o amparo espiritual dos europeus nos mil anos de escassez medieval. Mas, quando a ciência trocou o serviço da verdade pela busca fáustica do poderio tecnológico, o narcisismo humanista, exaltado na contemplação das suas possibilidades infinitas, deixou mergulhar Deus num longo eclipse.

A modernidade não só dispensou o Criador, como escravizou o mundo natural da Criação à voragem de uma economia que deixa desertos no seu rasto. A partir do século XIX, o primado tecnológico transformou-se numa infeção cultural, que contaminou todas as esferas da existência. A natureza deveria submeter-se, obedientemente, a todos os desvarios do imperativo tecnológico que perdeu a mínima consciência dos limites. Alguns exemplos. Em 1934, Sydney Chapman (1888-1970) sonhava limpar a atmosfera da camada de ozono para aumentar a sensibilidade dos aparelhos astronómicos à radiação ultravioleta mais remota! Não lhe ocorreu perguntar se isso acarretaria danos colaterais. Seria Thomas Migdley (1889-1944), responsável também pela calamidade para a saúde pública resultante da invenção da gasolina aditivada com chumbo, a produzir os clorofluorcarbonos (CFC), que provocaram a depleção da camada de ozono. Todavia, foi por puro acaso que Migdley usou para o seu novo produto o cloro (CI) em vez do brómio (Br), que teria um efeito destruidor sobre a camada de ozono estratosférico cem vezes maior! De acordo com cálculos do nobel da Química Paul Crutzen, se tal tivesse sucedido, em 1976 a humanidade teria sido aniquilada sem sequer perceber porquê…

A reclusão forçada pela pandemia deu-nos oportunidade de escutar os sons de uma natureza que submetemos e esquecemos, como se dela não fizéssemos parte. Mas que ninguém espere uma nova sabedoria nascida da tragédia. Quando esta pandemia se dissipar, o cruzador da modernidade zarpará de novo a todo o vapor, cumprindo o lema extremo que Pessoa foi buscar ao general romano Pompeu: “Navegar é preciso; viver não é preciso.”

Professor universitário


7 pensamentos sobre “Na vertigem da desrazão

  1. Nem tudo estará perdido.
    Graças ao Plano Temido, o Plano Naconal de Vacinação, aprovado dois meses antes do final de 2020.
    Sem o qual, veríamos agora, lares de idosos, bombeiros, autarcas, políticos ou miitares, além do pessoal da saúde,
    a dsiputar-se uns aos outros na prioridade da vacina.
    Fácil, com tanta licenciatura da ministra a assessores encartados do Partido, foi pensar e elaborar a Lista do C.

  2. Talvez fosse sensato colocar em perspectiva o facto de Todos os Anos morrerem, em Portugal, aproximadamente 6 vezes o número de pessoas que morreram nessa guerra. Por muito que isso surpreenda, antes de existir este virus, já se morria, e das mais diversas causas, e, extraordinário, continua-se a morrer delas, e cada vez mais ( são mortos menores, mas mesmo assim… ). Talvez quando se começar a olhar com mais racionalidade e menos emoção para tudo o que se está a passar, se possa realmente ponderar sobre as reais causas da mortalidade sazonal em excesso ( e nesse excesso o virus é apenas uma parte ), se foi o virus ( que tem as costas largas ), ou a forma desastrada e alarmista como se lidou com a situação, levando ao caos SNS ( não só os hospitais ) e o tecido socio-económico à beira do colapso.

  3. “O cristianismo tinha sido o amparo espiritual dos europeus nos mil anos de escassez medieval. Mas, quando a ciência trocou o serviço da verdade pela busca fáustica do poderio tecnológico, o narcisismo humanista, exaltado na contemplação das suas possibilidades infinitas, deixou mergulhar Deus num longo eclipse.”

    Mas que raio de propaganda fundamentalista religiosa é esta ?

    Agora a estátua além de incentivar à agressão a quem tenha a cultura de saber que o Lenine não derrubou o czar mas um governo democrático entrou em modo de esquizofrenia total e posta propaganda beata digna do bible belt ?

    Ó Soromenho, não foram maldosos cientistas ateus que iniciaram a destruição da natureza supostamente defendida por beatíficos crentes.

    Já a merda da tua bíblia é taxativa em afirmar que os outros seres foram sujeitos ao homem por deus, com ordem para se servirem deles a seu bel prazer.

    Os desastres ambientais começaram milênios antes da ciência moderna.

    A Europa era uma floresta com a dimensão da Amazónia quando a revolução neolítica começou a destruição em massa do ambiente com queimadas para abrir terrenos ao cultivo.

    Ainda no inicio da idade média a Europa estava coberta de florestas, que a merda dos teus pios monges descreviam como “desertos” no sentido de terem escassa população humana. No final desses mil anos de “amparo de deus” já nem tanto.

    Grande parte das florestas tinham sido convertidas em terrenos de cultivo, madeira para construção naval e combustível. Incluindo o combustível com que se queimavam vivas as vitimas da merda do teu deus nas praças principais das cidades europeias.

    A única diferença é que a ciência permitiu um aumento da força humana, o que acelerou a capacidade da humanidade para fazer merda ambiental.

    Mas se fossemos “amparados por deus” com um governo de evangélicos não havia desastres ambientais porque os crentes respeitam muito a natureza ?

    Vê-se com os Trump e os Bolsonaro.

    O que nos faltava agora no meio disto tudo era um renascimento do fanatismo religioso.

    PS

    Ó estátua chama-me fascista e incita outra vez os teus esbirros a darem-me “dez vezes com um barrote nas costelas” que não me importo, mas textos destes são combustível para fanáticos evangélicos e opus dei.

    Isto é nojento. A ultima coisa que precisamos é de um regresso do Deus Pátria Familia com a exploração da histeria em volta de uma crise de saúde pública.

    • Se tivesses percebido o texto não escreverias tanta aleivosia. Infelizmente, não tens meninges para tanto. Repito a minha usual ladaínha para contigo: “Pai, perdoai-lhe, porque não sabe o que diz”.

      • Pois.

        A culpa é da modernidade porque “dispensou o criador”.

        Saíste um intelectual de primeira.

        Por falar nisso, já descobriste que o Lenine não derrubou o czar mas o esquerdista democrata Kerensky ou continuas a debitar aldrabices idiotas ?

  4. “A modernidade não só dispensou o Criador, como escravizou o mundo natural da Criação à voragem de uma economia que deixa desertos no seu rasto. A partir do século XIX, o primado tecnológico transformou-se numa infeção cultural, que contaminou todas as esferas da existência. A natureza deveria submeter-se, obedientemente, a todos os desvarios do imperativo tecnológico que perdeu a mínima consciência dos limites.”

    MENTIRA.

    A Bíblia incentiva o homem a usar a natureza a seu bel-prazer.

    E as grandes empresas que destroem o ambiente são dirigidas por ateus ?

    Na extinta URSS talvez.

    Nos crédulos EUA e no ocidente em geral ?

    Nope.

    A maior parte da população é crente e os empresários pertencem a uma casta tradicionalmente ultra-conservadora deve haver mais crentes entre eles do que na generalidade da população.

    Quem não se lembra do grande papador de hóstias Ricardo Salgado que até tem uma capela particular onde um padre vai dar missas particulares à sua beata família de ladrões?

    O Soromenho pode dormir descansado, a maior parte dos empresários que destroem o ambiente são tementes a deus.

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