(António Guerreiro, in Púbico, 21/01/2021)

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Aquela figura com pinturas no corpo e adornos de um xamã que se destacou entre a multidão de invasores do Capitólio é tão saturada de significação e de um teor expressivo tão intenso que se oferece ostensivamente a um estudo iconológico. Uma análise comparativa, mesmo sem elaborações antropológicas e sem precisar de grande erudição iconográfica, descobre facilmente que os gestos e a atitude daquele “xamã”, tal como foram filmados, são muito semelhantes aos dos primatas, numa das cenas mais impressionantes de 2001: Odisseia no Espaço, o filme de Stanley Kubrick. Trata-se de uma daquelas imagens que suscitam o uso de um instrumento analítico que devemos a Freud: o conceito de Unhemlich, aquilo que é sinistro e inquietante porque a sua estranheza é ao mesmo tempo familiar.
Aquele “xamã”, ficámos a saber, é um fã do QAnon, esse fenómeno online de difícil classificação, uma intersecção de teoria da conspiração com a gamification da realidade. Ele irrompeu no interior do edifício onde se cumprem os protocolos mais representativos da democracia liberal moderna como quem emerge de um paganismo primitivo. É bem conhecida a relação histórica que as ideologias fascistas e da extrema-direita mantiveram com o paganismo. Foi assim com o fascismo italiano, que desenterrou toda a simbologia da Antiguidade romana; foi assim com o nazismo alemão, que usou e abusou dos antigos mitos germânicos. Quando quis fundar uma “Nova Direita”, o francês Alain de Benoist também se aplicou numa restauração pagã.
A ideia de uma “dialéctica do Iluminismo” pode, com toda a pertinência, ser aqui evocada: a racionalidade política e a razão crítica fundadoras da nossa civilização moderna, secularizada, estão expostas aos demónios do mito, da magia, das emoções alimentadas por uma visão paranóica da realidade. E é tudo isso que pudemos perceber, de forma concentrada e superlativa, na gestualidade patética daquele “xamã” que exibia um pathos heróico e teatral. O que ele representa, já conhecíamos muito bem. Mas aqui, tudo isso surge sob a forma de uma imagem poderosa e concentrada no seu teor iconológico que nos mostra em linguagem visual as forças que atravessam e ameaçam a sociedade americana e que têm também emergido, com intensidade variável, noutras latitudes.
Os conflitos políticos, transformados num complexo regressivo que faz surgir a tensão entre o pensamento racional e visões que se afastam de todo o realismo, criam uma realidade paralela, potencializam um delírio colectivo que tem algumas afinidades com as práticas mágicas. E essa amálgama constituída por ideias sem palavras é transposta para o plano de um programa político-ideológico. Não proporciona discussão, debate, diálogo. Como se dialoga com um “xamã” nas salas do Capitólio?
Há aqui outra lição importante que importa aprender. É uma lição do domínio da filosofia da História. O Iluminismo incutiu uma ideia de progresso da civilização (progresso moral, cultural, técnico) que, apesar de todas as provas em contrário, tende a ser visto como irreversível. Daí, uma expressão que ouvimos tantas vezes: “Como é que isto é possível no século XXI?”. No século XX, já se dizia a mesma coisa. E no século XIX também. Ora, está bem à vista que não há, neste domínio, conquistas irreversíveis. As Luzes acendem-se e apagam-se, ora estamos expostos ao seu brilho, ora chega a escuridão. Este movimento é, aliás, ainda mais complicado do que a simples alternância: aquilo a que os sociólogos e filósofos da Escola de Frankfurt, a partir do observatório do nazismo, chamaram “dialéctica do Iluminismo” consiste na sombra que as próprias Luzes engendram, na razão que se transforma no seu contrário. Um dos maiores génios da história da arte e das ciências da cultura do século XX, Aby Warburg (Hamburgo, 1866-1929), que teve até há poucos anos uma irradiação que pouco ultrapassava alguns círculos especializados, fez uma vez este diagnóstico:
“a nossa civilização é, em todos os momentos, esquizofrénica”. O que ele quis dizer é que ela está sempre submetida a uma tensão e é atraída por dois pólos opostos. Não há nenhum progresso que seja definitivo. O movimento da história não impede um xamã no Capitólio e um Nero na Casa Branca.
Livro de recitações
“Professora, quando é que isto acaba? Já não aguento mais!”
Lúcia Vaz Pedro, professora de Português no ensino secundário, in Público, 19/01/2021
Reclamando o fecho imediato das escolas, esta professora põe na boca de um seu aluno estas palavras desesperadas. Nos últimos anos, todas as crises (sociais, económicas e, agora, sanitárias) deram azo a que se acenasse a um conflito geracional: dos velhos instalados contra os jovens que não têm onde se instalar; dos beneficiários de uma reforma generosa à custa de quem não tem garantias para poder atravessar a velhice de maneira cómoda. Sabemos muito bem que este “conflito” é, por enquanto, uma especulação que se faz com intenções políticas. Mas não podemos deixar de pensar que esta pandemia, embora sendo muito mais fatal para os mais velhos, é um desastre irreparável para os jovens, sobretudo os adolescentes. Para eles, o tempo não tem a mesma medida que o tempo dos mais velhos: um ano é uma porção enorme de tempo nas suas vidas. O “já não aguento mais” é um estado a que se pode chamar experiência dos limites.
O que mais me impressionou no xamã foi ser um nacionalista americano travestido de índio.
Bem, para um verdadeiro xamã os americanos seriam invasores genocidas.
Quanto à teoria do Qanon é muito seca, prefiro as dos homens lagartos, os iluminati, os black helicóptero, o pizza gate ou os fema camps.
A direita americana está cheia destas teorias que davam filmes de ficção cientifica espetaculares. Como é que eles acreditam mesmo nisso é que é obra.
Enfim, cada doido com as suas teorias da conspiração. As da esquerda são que o povo português anda a perseguir os pretos.
Não é muito diferente em termos de demência da dos homens lagartos que vieram de Vénus apoiar o partido democrata. Mas dava um filme mais rasca.
“As Luzes acendem-se e apagam-se”
Ó como é verdade.
Relembremos aqui outro crime contra a democracia, esse bem sucedido, a revolução bolchevique de 1917.
https://youtu.be/riOLSslKvxU
Neste filme feito pelo propagandista(e génio do cinema) Einsenstein, num estilo heroico mais tarde copiado pelos nazis, apresenta o derrube de um governo democrático como luta pela liberdade. O que também foi copiado pelos nazis.
O assalto ao palácio de inverno para derrubar o governo de esquerda democrática de Kerensky é uma antevisão do que seria o ataque ao capitólio pelos trumpistas em 2021.
A diferença é que as milícias comunistas estavam muito mais pesadamente armadas que as de Trump e a democracia americana é muito mais sólida do que a ainda frágil recém nascida democracia russa assassinada por Lenine.
Notemos que os bolcheviques estavam a derrubar um governo democrata, de esquerda.
Mas neste filme de propaganda cenas como a bota bolchevique a pisar a coroa imperial dão o mote à narrativa de que foram os bolcheviques estavam a derrubaram o czar.
É totalmente fake, o czar tinha sido derrubado meses antes pelos mesmos democratas que agora os bolcheviques derrubavam para impor a ditadura totalitária comunista.
Os historiadores comunistas não conseguem negar abertamente estes factos históricos mas recorrem à táctica de evitar o assunto. O Kerensky era um burguês e tal, não vale a pena falar nisso… Mesmo que fosse, ao contrário dos bolcheviques era uma democrata. Mas ainda por cima era um democrata de esquerda, líder do partido socialista revolucionário que iniciou DEMOCRATICAMENTE as reformas sociais de que depois os comunistas vão usurpar a paternidade.
É o campo do fake total, Lenine era o Trump do seu tempo.
O que é triste é o facto de os comentadores políticos que atacam ferozmente os agentes da viragem à direita que se está a processar no Ocidente Democrático, não saberem explicar as verdadeiras razões dessa viragem. Isto é, não atribuem a atual situação a decisões tomadas pelos governos democráticos do pós guerra, durante 50 anos.
1. A autorização de concentrações capital que criaram empresas grandes de mais para poderem falir e grandes de mais para não pagarem impostos.
2. A autorização de criação de offshores e dos mecanismos que autorizam as empresas a usá-los para fugir aos impostos.
3. A criação de leis da comunicação social que protegem os jornalistas quando publicam notícias comprovadamente falsas. Em qualquer outra atividade em vende gato por lebre fica sem alvará para continuar a vender.
4. O não combate à criação de lóbis dentro do sistema judicial, que conduzem a perda do direito à justiça para grande parte da população.
Eram problemas que, nos anos 50, não tinha expressão, mas que são fundamentais corrigir agora para conseguirmos inverter a viragem à direita das intenções de voto.
A lição de esquizofrenia não faz qualquer sentido, no seu conteúdo.SE realmente a sociedade estivesse esquizofrénica viviamos numa sociedade anarquista. Temos que afastar os estereótipos sobre a esquizofrenia. A doença não serve de bode espiatório para tudo.