No desespero, não estamos todos no mesmo barco

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 16/11/2020)

Daniel Oliveira

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Independentemente dos abusos a que assistimos nas manifestações de empresários e trabalhadores da restauração, não nos devemos desviar do essencial. E o essencial não são os oportunistas que organizaram a descida da Avenida da Liberdade e se colaram àquelas pessoas no Rossio, liderados por um menino de gestão que tem um primo que tem um hotel, que por acaso é do Chega e que “sozinho” organizou uma manifestação “apartidária”. Esses são os abutres do costume.

O fundamental também não são algumas das exigências que podemos considerar excessivas, entre as quais está seguramente a ideia de que o Estado deve qualquer apoio a empresas que não pagaram os impostos que deviam – como se a solidariedade só tivesse um sentido. O importante também não é os protagonistas que mais aparecem, cuja situação será das que menos me preocupa. O fundamental é que há um sector (não é o único) que está a desabar e que isso terá repercussões devastadoras na economia e no emprego.

Não estou seguro de que o “meio confinamento” de fim de semana seja uma medida sensata. Já o disse: a ausência de números fiáveis, resultado da saúde pública ter sido sempre o parente pobre de um sistema hospitalocêntrico, torna arriscado este tipo de escolhas. E é considerável a probabilidade de o mal causado ser maior do que se pretende prevenir, por não sabermos ao certo que parte dos famosos 67% resultam de contactos familiares fora do agregado familiar.

Esta pandemia é, para quem queira mais do que procurar um culpado, uma boa lição de política. O hábito de resumir tudo a “vontade política” esbarra com aquilo que a política realmente faz: escolhas que têm quase sempre consequências negativas. A infantilização da nossa comunidade, viciada na “denúncia” e com pouco hábito de reflexão coletiva, imagina que basta a ação de políticos honestos e informados para que tudo corra pelo melhor. Isso não existe. Neste caso, a escolha é entre deixar os cuidados intensivos chegar ainda mais depressa ao seu limite ou destruir a economia. É algures entre as duas coisas que estará a escolha menos errada. Quanto pior for a informação com que os decisores trabalham maior a probabilidade de erro. Coisa que o político que “não gosta de gabinetes” mas de “obra feita” nunca percebeu. Nem os eleitores que o apreciam.

Vivemos, na primeira vaga, num quase consenso. A crise começou logo a sentir-se em vários sectores, mas havia a convicção generalizada de que isto ia passar mais ou menos depressa. Agora, quando começa a ficar claro que a pandemia não acabará a tempo de salvar os que vivem as situações mais dramáticas, as posições deixaram de depender de divergências de opinião, mesmo que influenciadas pelo contexto de quem as tem. Passaram a ser uma luta pela sobrevivência. É difícil pedir a quem perde o emprego ou tudo o que tinha que ignore o seu drama pessoal em nome de um bem comum, que é sempre mais abstrato e, neste caso, com uma enorme margem de dúvida. Não é egoísmo, é desespero. E num país pobre, vai ser ainda mais difícil responder a este desespero.

Na primeira vaga, parecia que estávamos todos no mesmo barco. Com a pandemia e a crise, o barco está a afundar-se, aqui e em quase todo o lado. E fica cada um no seu bote, dependente das suas circunstâncias. É o preço que pagamos por sermos um dos países mais desiguais da Europa e um Estado Social demasiado curto, ao contrário do que nos vendem há anos.

Não tenho como dizer a quem vive uma tragédia pessoal que se esqueça de si e dos seus e pense primeiro nos outros. Essas pessoas têm direito a estarem cansadas. Porque o seu cansaço resulta de um caminho para o abismo sem fim à vista.

À crise económica sucede uma crise social. E a elas sucederá uma crise política, que serão os mais irresponsáveis a aproveitarem primeiro. Por isso, é fundamental que não se instale um ambiente de censura social à crítica, que apenas favorecerá quem não olha a meios para ter ganhos políticos. Com sentido de responsabilidade e não promovendo uma desobediência que num momento como estes se paga com vidas e apenas daria argumentos para limitar liberdades, não se pode entregar a divergência aos “aldrabões pela verdade”. Os que realmente querem ajudar com a sua crítica não seguem o caminho fácil de negar a origem do problema. Já os negacionistas organizados apenas querem lucrar com a tragédia sem ter de discutir as soluções.

É difícil, em momentos como estes, ouvir a razão. Mas os que vivem as situações mais dramáticas não se devem entregar nos braços de quem usa a sua tragédia para instalar um caos que tornará tudo ainda mais demorado e penoso. Os restantes, sobretudo os que com toda a fadiga não vivem dramas destas dimensões, que baixem o dedo acusador. O desespero não desculpa tudo, mas exige a nossa capacidade de ouvir quem grita.


12 pensamentos sobre “No desespero, não estamos todos no mesmo barco

  1. Ó Daniel !
    Enquanto o pau vai e vem, anda daí largar dois coices no Orçamento !
    Tal qual a Mula da Cooperativa !
    O Costa não sabe cantar o Fado !!!

  2. Um texto sensato que colocano o dedo na ferida (as más escolhas políticas que no que diz respeito ao SNS – um sistema “hospitalocêntrico” para maiores lucros privados), pede moderação e compreensão para o desespero dos cidadãos sempre esquecidos pelas decisões governamentais e elites incapazes de se colocarem na pele dos mais desfavorecidos. Acresce alertar para o perigo de dar voz aos oportunistas que, uma vez instalados no poder nada melhorarão e talvez ainda piorem as vidas dos mais pobres. Porém, quem mais responsável é (por criar e alimentar situações de desespero ao longo de vidas inteiras de quem vive na pobreza e em condições de menor dignidade) são as elites que mantêm em funcionamento há quatro décadas a mesma iniquidade social e económica.

  3. Ou seja, vamos ter outra vez uma PAF no poder.

    E desta vez, em vez do Portas vamos ter o Ventura como primeira dama.

    Cortesia dos cretinos da esquerda que passam o tempo a chamar nazi ao povo, por desporto.

    A estupidez é tanta que parece que é de propósito.

  4. Daniel Oliveira “Mas os que vivem as situações mais dramáticas não se devem entregar nos braços de quem usa a sua tragédia para instalar um caos que tornará tudo ainda mais demorado e penoso. ”
    Como se faz isso? É altura de considerar uma proposta qeu me parece que ainda não investigou a fundo (e daí talvez uma opinião algo negativa se tenha precipitado):
    Que tal abrirmos nós os braços para o abraço solidário que se impõe em Portugal e na UE?
    – Um Rendimento Básico Incondicional a nível europeu (complementar a um nacional, p.ex) Basic Income Europe

    Já está a circular uma Iniciativa de Cidadãos para levar este tema à UE:
    https://pt.eci-ubi.eu/

    Mais info aqui:
    https://www.facebook.com/RendimentoBasicoPortugal/posts/3578367672207508

    • Porque é uma patetice cujo objectivo é acabar com serviços universais como saúde e educação e deixar cair de vez o direito ao trabalho.

  5. Off.

    Nota. O ex-ministro Mr. Magoo esteve hoje a responder no julgamento do Azeredo Lopes, do Fechaduras e do Navalhinha…

    Amanhã há mais., hoje foi uma sova apenas de quatro horas.

    😉

  6. Este RFC, se algum dia botar corpo que o autorize a ir prá tropa, e se com sorte for além de varrer a parada,ainda verá como as coisas se passam naquela realidade.
    A tropa como corpo organizado é anterior à religião !!! Antes das coisas espirituais há que tratar da segurança!
    Sistema super testado,com regras próprias que até um lateiro entende,mas que funcionam!
    Julguemos a tropa pelos resultados práticos que apresentar, Deixemos os jogos,ditos espirituosos,cambalhotas e tranpolins para os palhaços!
    Tenham juízo!

  7. todos têm a sua própria razão, o texto do Daniel é revelador da ignorância das elites e do povo, porque no fundo coitados, gostam de imitar os famosos e os “nobres” e depois são burros, egoístas e invejosos, mentirosos, chibinhos, e os supostamente superiores são os bobos da nação, seja na televisão, nas festinhas, em qualquer lugar, que figurinhas tristes. Como é que é possível com toda esta nata, criar-se um futuro coerente e justo para todos ?
    Uns vão enterrando, os outros, gostando, e assim passam todos os tempo, a fazer de conta que são “felizes”, quando para mim são mais tristes que os animais presos no ZOO ou os presos, que coitados, não se enquandram, neste manicómio nacional. :P:D

  8. A direita burra não suporta que a sra.Directora e a sra. Ministra façam,diariamente, a conferência de imprensa !
    Tira-lhe quase todo o material susceptível de boatos terroristas!
    E a qualidade das perguntas boçalíssimas dos injustamente acusados de jornalistas é de uma pessoa se rebolar pelo chão! Cuidado, Hermann José ! Há quem,involuntariamente, te ponha em cheque !!!

    • — Parabéns pela recuperação do armamento, grande alívio..! Não te quis chatear hoje

      — Eu sabia, mas tive que aguentar calado o porrada que levei. Mas, como é claro, não sabia que ia ser hoje.

      Nota. Quando vais ao julgamento do Azeredo Lopes, Fechaduras e Navalhinha, Tiago?

      https://pbs.twimg.com/media/EnMYhXuWEAA_mGo?format=jpg&name=small

      ______

      Nota. Epá, o Azeredo e o Tiago Barbosa Ribeiro foram contigo à cena de Tancos? Deste-lhes boleia, ó calhambeque?!

      🙂

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