Um cão a dançar na chuva

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 17/10/2020)

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Ontem fiquei feliz a ver um cão dançar na chuva. Sei que o meu ontem não é o vosso ontem, mas ontem é um conceito elástico e sendo um e outro ontem diferentes, não passam do mesmo. O tempo covid está dissolvido na água dos dias iguais. Ontem, portanto. Era um vídeo do WhatsApp e o cão dançava ao som de ‘Singing in the Rain’, de Gene Kelly. Uma canção do tempo em que importávamos felicidade da América. O cão saltava e parecia brincar com as gotas de chuva grossa num bailado de felicidade e liberdade. Felicidade é o que nos falta, tornou-se um bem proibido. Não podemos consumir um instante de alegria sem que venha a suspeita. Não podemos abraçar os pais e os filhos, não podemos abraçar os amigos, beijar os amantes, ou ter amantes, não podemos, nas palavras melífluas e orwellianas dos vigilantes, confraternizar. Nem com a família. Nem beber álcool fora de horas. Nem dançar na chuva ao som de uma canção. A polícia pode pensar que nos embriagámos. Deixem-se disso. Talvez pela mesma razão que um cão a dançar na chuva nos emociona, as prédicas de mestre-escola têm efeito por causa do grau de infantilização a que estamos remetidos.

Quando digo nos emociona, no plural, em vez de me emociona, sei o que digo. Reenviei o cão a dançar na chuva a meia dúzia de amigos e todos expressaram, por palavras breves ou emojis, a sua alegria. Aquilo tinha-lhes feito bem. O emoji com dois corações no lugar dos olhos foi o mais utilizado. Estou a falar de adultos com vidas profissionais completas, uma educação superior, experiência de vida e o cinismo protetor que a acompanha. Quando passámos a utilizadores em vez de cidadãos, sendo utilizador o update de consumidor, passámos a usar as partes menos complexas do cérebro. Em vez de articular uma frase, grande trabalho, podemos usar uma careta amarela e engraçada e assim demonstrar as nossas emoções. Crianças, portanto. Crianças com signos simples e evidentes, mais fáceis de combinar do que um brinquedo da Lego.

Tudo foi simplificado para nos neutralizar, equalizando as emoções individuais num emoji coletivo, para normalizar no mínimo tempo e espaço disponíveis. Na sociedade em que vivemos, economizar tempo é mais importante do que economizar dinheiro, e quando nos sobra tempo podemos gastá-lo a colecionar mais cães a dançar na chuva, gatos furibundos e outros bonecos e vídeos das redes sociais, que têm uma hierarquia de popularidade. Em todo o caso, prefiro o cão feliz a dançar na chuva do que um sul-coreano a dançar gangnam, que foi outrora e durante um bater de pestanas o mais popular vídeo da internet. Visto por milhões, o selo da qualidade.

Infantilizámos. Passámos de ser uma sociedade europeia que privilegiava o pensamento e a racionalidade, a filosofia e a literatura, ou a literatura como filosofia moral, a uma sociedade de crianças grandes que brincam umas com as outras ou mutuamente se agridem com furor por coisas sem importância. A agressão tem como contrapartida a lisonja, propiciada por fotografias idiotas em pose e dando a ilusão da beleza e da viagem, ou do luxo e da intimidade, do erotismo empacotado. É um filme inofensivo de banalidades que nada acrescenta nem diminui, serve de sintoma da infantilização.

As sociedades ditatoriais são sociedades infantilizadas, onde as ordens são para cumprir e a opinião é censurada ou, como tudo o resto, relativizada ou neutralizada. A selfie não é perigosa. Nas sociedades asiáticas ditatoriais ou semidemocráticas, quase todas, as massas não têm o poder de contraditar os poderes, o partido, o rei, a nomenclatura, o politburo, a corte, os generais, a tradição, o costume, com todos os acessórios da ditadura tosca ou da ditadura centrada e inteligente. Nessas sociedades, como qualquer viagem num transporte público pode atestar, as pessoas veem bonecos no telemóvel o tempo todo. Manga, posts, fotografias, vídeos, desenhos ou grafismos de qualquer ordem. As massas consomem imagens, não consomem discursos, porque não os podem contraditar. Livros e filmes são censurados quando quebram um tabu nacional ou local. Talvez venha desta obediência o êxito destas sociedades no combate à pandemia. Do mesmo modo que se diz a uma criança cala-te e obedece porque sim, diz-se a um povo, faz o que te mando porque sim. Se aliarmos a este diktat a tecnologia e a riqueza e disponibilidade dos recursos, temos a receita para eliminar a covid sem danos. É isto ou o isolamento total, que estará condenado no dia em que se abrir a primeira janela para deixar entrar o ar fresco. Caso da Nova Zelândia.

No meio de mensagens vagas ou contraditórias, avançamos como crianças com medo do escuro. Nem ousamos perguntar se este modo de abordar a pandemia será o certo, o racional, o útil e o eficaz. Os governos comportam-se como crianças caprichosas e assustadas, decretando quarentenas, novas regras e confinamentos de um dia para o outro, destruindo indústrias e milhões de empregos, assustando as pessoas e usando a esmo profissionais e peritos, alguns de última hora e mais peritos do que seria desejável, quase todos com ameaças e profecias de charlatães. Salva-se meia dúzia. No escuro, jaz o vírus e aquilo que não nos é dito. Como são tratadas as pessoas no hospital? Qual o perfil dos internados e dos mortos? Quais os medicamentos que estão a ser usados? Quantos recuperados estão doentes e com sequelas? Como mata e quanto debilita o vírus, ao certo? A estatística não cobre as nossas dúvidas, mas a estatística diz-nos que uma pequeníssima percentagem de pessoas morre. O que interessa é saber como e quanto se recupera. É das sequelas que as pessoas têm medo. E sobre isso sabemos pouco. E quantos mortos continuam a fazer as doenças do costume, aquelas de que ninguém fala e que não estão a ser tratadas? Mais. Muito mais.

As dúvidas são legítimas porque já nos foi dito tudo e o seu contrário. Desde as máscaras não serem úteis e serem perigosas à obrigatoriedade de máscaras na rua e ao vento.

Infantilizados, coagidos, aprisionados em regras que não entendemos, aterrorizados por mensagens e contagens, abdicámos de pensar pela nossa cabeça. Estamos proibidos não apenas de fazer o que queremos, estamos proibidos de pensar o que queremos porque nada sabemos. Eles é que sabem. E cenas como as de Trump, a criança mal-comportada que contamina com o vírus da estupidez tudo o que toca, não ajudam à clareza.

Quando sairmos deste pesadelo, e este quando é opcional, estaremos mais tristes, mais irritados, mais agressivos, mais violentos, muito mais doentes do que quando entrámos. E infinitamente mais pobres. E talvez um dia possamos perceber como é que um cão a dançar na chuva se tornou na nossa alegria.

13 pensamentos sobre “Um cão a dançar na chuva

  1. “Passámos de ser uma sociedade europeia que privilegiava o pensamento e a racionalidade, a filosofia e a literatura, ou a literatura como filosofia moral”

    Sim. Quando eu era jovem o pessoal europeu passava o tempo todo a filosofar pelas esquinas.

    Ou era a gregoriar cerveja barata pelas esquinas ?

    Estas conversas dos “bons velhos tempos é que eram” são muito giras.

  2. Este mimimi todo por causa de não poderem ir a festas e bares e dar uns abraços e bacalhaus.

    Têm todo o conforto do mundo, alimentação farta, tóxicos vários, meios de comunicação que lhes permitem conversar com a familia mais distante que viva do outro lado do mundo.

    Mas choram porque têm de embebedar-se em casa e não no bar. Ou melhor, por terem de embebedar-se mais cedo porque o bar fecha mais cedo.

    Quando se pensa no que passaram gerações anteriores como na IIGM e ainda passam, por exemplo na Síria fica a grotesca a choradeira destes meninos mimados.

    Contemporâneos nossos morrem de fome, em bombardeamentos ou afogados aos milhares no Mediterrâneo e este pessoal chora baba e ranho porque não pode ir a festas !!!

    Isto é de dar razão ao Spangler e ao Mao Tzé Tung, o ocidente está mesmo decadente.

      • Ui!

        Nota. Com essas mordomias de saudades do A Bem Da Nação! e se, em vez da espingardaria quanto mais do porta-aviões, te exibires alegremente de esfregona na mão, de bata e com um carrapito na cabeça, e se, em vez de batatas com feijão para clientela mais habituada à tasca do galego (onde limpam as beiçolas às mangas enquanto, despejando um tercero jarro, dão espaço às mais alucinadas teorias do nacionalismo desmiolado contra a pretalhada e tal, se os convidares para a tua saleta e lhe servires chá e bolachinhas quentinhas, ainda tens direito a uma cruz suástica de plástico e te dizem que é uma estrela do xerife…, Bang-bang, ó d’A Estátua!

      • Cara estátua.

        Vejo que o RFC já o promoveu a si a colaborador “fascista, racista e machista” .

        Depois de me ter promovido a mim a Hitler de estimação, agora você foi promovido a Quisling ou quiçá você seja o nosso novo marechal Pétain.

        Não se preocupe. Eles já promoveram 99% do povo português a “fascissssta”.

        A Joacine até tjá ratava os seus camaradas do Livre por racistas e promoveu o Daniel Oliveira que você aqui costuma postar a “extrema direita”.

        Basta não concordar ou até ter dúvidas sobre alguma coisa, seja o que for, que eles digam que atribuem logo o prémio. Até uns aos outros.

        Dentro em pouco não haverá ninguém que não tenha sido promovido a “fascisssta de botas”. Até na esquerda.

        Adaptando o grande Almeida Garret aos tempos actuais, em vez do “Foge cão que te fazem barão” agora é “Não adianta fugir que um dia toda a gente acaba tratada de Fascissssta”.

          • Sim, Mas não se esqueça de usar a cruz de ferro que ele lhe ofereceu.

            Já todos os portugueses têm uma.

            Eu acho que certa esquerda montou uma fábrica gigantesca de cruzes de ferro. Aquilo teve pouca saída, porque não há muitos verdadeiros apreciadores e eles ficaram com montanhas daquilo em armazém.

            Então eles desataram a oferecê-las a toda a gente, estilo compre um pãozinho e leve dez cruzes de ferro com um certificado de maior fascista, machista e racista lá da rua autografado por uma data de académicos e internautas de esquerda.

            Ou mesmo que não compre nem faça nada leva com as cruzes e o certificado à mesma que o armazém está a rebentar com aquilo.

  3. Passámos de ser uma sociedade europeia que privilegiava o pensamento e a racionalidade, a filosofia e a literatura, ou a literatura como filosofia moral”

    Se a Clara gosta tanto destas coisas, porque não aproveita o tempo que o fim da porra das festas lhe deixa livre para ler uns livros ?

    Nunca tivemos tanto acesso a cultura. Com uns toques no teclado encomendamos um livro de filosofia (ou porno) no outro lado do mundo, que nos chega a casa nuns dias. Até on line se apanham excelentes livros.

    Eu estou a encomendar um ao mesmo tempo que escrevo isto.

    Deixe-se de lamúrias e viva para quilo que diz que é importante.

    Ou é só conversa da treta e a porra das festas dos socialites é que para si são importantes ?

    • A CFA desmascara-se a si própria: numa semana é contra causas “fracturantes”, na seguinte queixa-se da violência doméstica ou da falta de deputas; numa semana queixa-se do despesismo e diz que é preciso “reformar”, na seguinte queixa-se da falta de dinheiro para a cultura que só os amigos consomem (infelizmente); etc & tal.
      A nossa elite não sai muito disto porque também é a que o sistema promove, que era uma chatice dar palco a quem tem ideias.

  4. Como sempre gostei muito. Não é assim tão banal e pérfido o artigo-comentário, antes pelo contrário. As sequelas, os medicamentos para tratar do Covid, as irritações e alterações do foro neurológico, etc. E digo etcétera porque o portal da saúde para marcar consultas é ‘giro’. Se não tem cuidado ainda fica a tratar do cartão de cidadão na Alta Autoridade, com um novo pin o que vai baralhar tudo. Se preferir pode ir pessoalmente ao centro de saúde, cena surrealista que é inútil. Veem estas coisas a propósito da irritação e de dar cabo a um Santinho! Os portugueses são brilhantes a improvisar, medíocres a planear e péssimos a coordenar.

  5. Nem 8 nem 80 nem muito menos 666 ou sei lá 333, ma sempre 69. Porque os jovens devem perceber que para crescer devem apanhar chuva, chafurdar na lama e amar a natureza em vez de cagar nela, e, simultaneamente aprender a dosear os fumos, bebidas e outros brinquedos didáticos que não fazem mal nenhum se forem em doses mínimas e claro sempre naturais, pois, o químico causa o cancro e outras doenças. Em relação à “liberdade”, para se ter, devem-se respeitar todos os outros, começando por nós próprios, em relação às noites, com a C0ViDA, é mais seguro fazerem festas em casa, usem a vossa imaginação, vocês são tão férteis quanto todos os demais seres vivos do universo, não sei é se são tão sensatos ou inteligentes, já que incontornavelmente gostam de ser egoístas e violentos, amem-se a todos, fumem e comam erva e assim serão não “felizes”, já que isso não existe, mas sim realizados e claro espiritualmente elevados e isso fluirá naturalmente, através de boas vibrações, fechem os olhos e sonhem e façam de conta que são dragões da cor que quiserem, mas façam isso sentados e com os pés na terra, olhem para o sol inspirem as radiações e expirem as más vibrações para assim resolverem os vossos problemas, dilemas, frustações, etc. :P:D

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