Pela obrigatoriedade da Educação para a Cidadania

(Sandra Maximiano, in Expresso Diário, 04/09/2020)

Sandra Maximiano

Cerca de 100 personalidades, 88 homens e 13 mulheres, maioritariamente de direita, de uma classe social privilegiada, entre as quais o ex-Presidente da República Cavaco Silva, o ex-primeiro-ministro Passos Coelho e o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, assinaram um manifesto a apelar à não obrigatoriedade da disciplina de Educação para a Cidadania e Desenvolvimento. Para os signatários, os pais têm o direito à liberdade na educação dos conteúdos da disciplina que advogam ser ideológicos e o Estado deve apenas cooperar e não impor esta educação.

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Eu até consigo nutrir alguma simpatia conceptual por aqueles que defendem a liberdade de escolha individual e se levantam contra um Estado extremamente intervencionista e paternalista no que respeita à formação e educação dos cidadãos em matérias éticas e morais. Conceptualmente, a ideia de o Estado poder impor através da fixação de um currículo escolar o conceito de bom cidadão pode ser assustador, sobretudo quando pensamos em regimes totalitários. Mas a este nível, tenho dois pontos a ressaltar.

Primeiro, vivemos em democracia, e, não sendo menos verdade que existe uma certa escolha curricular para a disciplina, os conteúdos resultaram do trabalho de um grupo multidisciplinar com um vasto conhecimento científico de áreas sociais e exatas. A definição de conteúdos é consistente com o ensino da cidadania em sociedades democráticas e modernas com uma visão global dos problemas mundiais. Mais, em democracia o debate sobre os conteúdos da disciplina e a importância destes é certamente dinâmico e pluralista e deve seguir o contexto económico, social e ambiental do país e do mundo.

Segundo, a construção da cidadania na sociedade tem sido sobretudo assente em decretos de leis e imposta por penalizações. Veja-se o mais recente exemplo das multas para as beatas de cigarro deitadas para o chão. Estas multas fazem apenas sentido porque há ainda uma grande maioria de cidadãos que não respeita o espaço público nem o meio ambiente, havendo assim a necessidade de alterar este comportamento através de uma atitude mais coerciva. No entanto, idealmente, o que se pretende é que os cidadãos modifiquem o seu comportamento de uma forma mais intrínseca e estrutural onde o recurso a penalizações seja cada vez menos necessário. Para isso, a educação formal e informal, nas escolas e em casa, é extremamente importante. Se colocarmos numa balança estes dois “veículos de construção de valores de cidadania”, ou seja, a educação, por um lado, e as leis e as penalizações, por outro, a educação é certamente o meio que melhor defende a liberdade de escolha.

No que respeita aos conteúdos da disciplina, estes são latos e abordam temas como direitos humanos, educação ambiental, interculturalidade, participação cívica, igualdade de género, violência doméstica, segurança rodoviária, voluntariado, literacia financeira e sexualidade. No entanto, parece-me a mim, que a questão mais fraturante se prende com a

questão da sexualidade. Como o professor universitário e antigo reitor da Universidade Católica Manuel Braga da Cruz, mentor do abaixo-assinado, disse ao Diário de Notícias, “eu não sei o que é o estado a fazer educação sexual. Mais, afirmou ainda que “os pais consideraram que a educação sexual e de género, que não são propriamente assuntos de uma educação para a cidadania, são de grande sensibilidade moral e até religiosa”. Esta visão da disciplina é bastamente redutora, ideológica e totalitária.

Os pais, ao imporem a sua posição baseada num dogma religioso deixam espaço aberto para que se possa recusar o ensino de outras matérias, como por exemplo, o ensino do evolucionismo que contraria as crenças criacionistas. Não se deve restringir conteúdos porque estes chocam com dogmas religiosos ou outras crenças, o que se deve fazer é considerar práticas de ensino inclusivas e respeitadoras. A fé e a ciência não têm necessariamente de estar em conflito e não cabe aos professores criarem esse conflito e imporem escolhas. No que respeita ao evolucionismo, por exemplo, os estudantes não precisam de ser obrigados a acreditar que os humanos se desenvolveram de outras espécies, é preciso apenas que entendam porque é que os cientistas apoiam tal teoria e qual a evidência na qual os cientistas fundamentam a visão. Este é o tipo de ensino que permite abordar questões fraturantes de uma forma plural e justa.

Ensinar questões de grande sensibilidade moral e religiosa pode não ser tarefa fácil, mas o que é perigoso é transformar o ensino numa educação à la carte, onde aos pais seja permitido restringir os horizontes dos filhos. Permitir aos pais a objeção de consciência tornando a disciplina facultativa cria grandes injustiças para os jovens. Nem todas as crianças nascem numa família privilegiada, com disponibilidade de tempo para educar e com a capacidade para abordar determinados temas. Cai-se no perigo de muitos pais, sem perceberem a fundo quais são os conteúdos da disciplina, se sentirem chocados com um ou outro tema que pode ser mais sensível em termos religiosos e então impedirem o acesso aos seus filhos a conteúdos estruturantes. Assusta-me pensar nas famílias com baixa educação escolar e poder económico, que vivem em localidades mais isoladas onde o papel da religião é muito fundamental, mas que pode obscurecer a escolha destes pais. Se ter o Estado a escolher pode ser assustador, ter o padre da aldeia a escolher parece-me a mim bastante mais tenebroso.

Por último, há quem ressalte o perigo de os conteúdos da disciplina serem políticos. É verdade que o são. Mesmo os temas que aparentemente podem não levantar qualquer celeuma são políticos. Veja-se o caso do voluntariado. A promoção da atuação voluntária constitui uma das formas de construção de uma cidadania ativa e participativa, fortalece a integração das classes, promove a igualdade e a inclusão e ajuda os voluntários no seu processo de crescimento e realização pessoal. No entanto, apesar da importância do terceiro setor, para alguns, o seu crescimento pode implicar a diminuição da ação social do Estado.

A meu ver, o facto de os conteúdos serem políticos intensifica a importância da obrigatoriedade da disciplina. O debate de ideias e o pensamento crítico não deve estar apenas acessível a elites. A sobrevivência e crescimento da democracia, nomeadamente o combate à

abstenção, a maior transparência na condução de políticas públicas e a diminuição da corrupção estão dependentes do desenvolvimento de uma sociedade educada e participativa.

Sou uma das subscritoras de um manifesto em defesa da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento como estruturante e obrigatória no ensino básico e secundário. O manifesto foi dinamizado pela Helena Ferro de Gouveia, e conta com o apoio da Susana Peralta, Ana Gomes, Maria João Marques, Teresa Violante, Pedro Bacelar de Vasconcelos, Teresa Pizarro Beleza, Daniel Oliveira, Alexandre Quintanilha, Catarina Marcelino, Miguem Somsen, entre outros apoiantes de diferentes esferas profissionais.

O facto de subscrever a obrigatoriedade da disciplina não significa que ache que o papel dos pais na educação para a cidadania não deve ser fundamental ou até mesmo o mais fundamental. Mas choca-me a arrogância intelectual das elites que se esquecem que a liberdade de escolha só existe verdadeiramente numa sociedade educada e informada.

As crianças quando nascem não escolhem o meio social, económico, as crenças religiosas, o partido político, o clube de futebol, nem se querem ser vegetarianas ou não. Os pais, como tutores, imputam a sua visão sobre o mundo, as suas preferências, muitas das vezes de uma forma totalitária e absolutista. Esta disciplina não pretende fechar visões, muito pelo o contrário, oferece aos jovens a possibilidade de crescerem para além da família, como seres individuais e com uma participação ativa em democracia.


8 pensamentos sobre “Pela obrigatoriedade da Educação para a Cidadania

  1. Completamente de acordo! O livre pensamento, a discussão, os pontos de vista abertos, livres, devem fazer da disciplina (obrigatória) da cidadania um valor que acresce à educação. É também na mais valia dos valores da serenidade, tolerância, liberdade e pensamento (ensinar a pensar, como dizia Vergílio Ferreira) que devem estar no desígnio do cidadão e isso é uma prioridade e não o seu contrário ou a indiferença.

  2. Há aqui duas questões: 1) ensinar aos miudos a democracia, a igualdade de género, o respeito pelos animais, o voluntariado e o respeito nas relações amorosas é algo que é indiscutivelmente Positivo para a sua formação; 2) ensinar aos miudos que há 54 diferentes géneros (ou 62, pois nem sequer há consenso) é extravasar a competência do Estado.

  3. Toda esta polémica reflete, uma vez mais, a hipocrisia e maldade das elites conservadoras deste nosso país. É um pouco como a questão do aborto: na altura apelam à educação sexual em detrimento de toda e qualquer interrupção voluntária da gravidez – quando o assunto deixa de estar na ordem do dia e se discute a educação sexual, não pode ser porque estão a encher as cabeças das crianças com marxismos culturais e tretas do género…

    • É que num país pobre e atrasado estruturalmente (e inserido num “campeonato” internacional cada vez mais competitivo, no qual ninguém dá nada a ninguém), não vale a pena defender a tão propalada “liberdade de escolha” dos nossos neoliberais de serviço sem que o país se torne ainda (muito mais) pobre. Sim, “proibir” ou “obrigar” é a solução menos má, sob pena de termos de optar por males muito piores. Ser liberal é bom, mas é para quem pode, para quem sempre esteve, está, e sempre estará, bem.

  4. 100% de acordo.

    Resta saber se existe algum exagero ideológico no programa da disciplina.

    Mas como os seus críticos não apontam nenhum fica a ideia que são simplesmente contra a cidadania educada.

  5. Desde o 25 de Abril que nunca existiu (mentalidades prevalecentes do antigo regime) educação adequada na escola com o intuito de formar o aluno para a sociedade e não como um mero futuro escravo (não pensador) da nação. Assim que ela foi adotada primeiro pela legislação com o governo do Passos e agora na prática com o governo do Costa, é lamentável existir este extremismo sem sentido a querer manter a mentalidade do antigo regime (todos pobres e analfabetos e claro com medo) de modo a se perpetuar no futuro a sociedade que nunca se desenvolve para todo o bem comum, mas só para os mais bem sucedidos e os seus comparsas. A nação nacional supostamente mais moderna (até se fala o português com muitos termos em english), modernizou-se em termos paisagísticos, porque em termos reais e concretos continua a ser um pais atrasado, economicamente desde sempre e claro a nível de mentalidades, pela tal falta de certas disciplinas que possam criar crianças e jovens que consigam pensar sem recurso ao google ou outros meios, e assim poderem aspirar a cumprir na integra o que está escrito na constituição, e claro a objeção de consciência deve ser usada e abusada contra a guerra e a falta de soluções para combater os verdadeiros problemas (alterações climáticas, falta de respeito pelo ser humano, etc) e não para tentar aldrabar o povo com os perigos da educação sexual ou devido respeito por todos os seres humanos de todas as formas e feitios. É lamentável e demonstrativo o rumo do populismo a nível nacional encapotado pelo querido Marcelo que faz de conta que é a “solução” dos problemas nacionais, quando no fundo está a escavar mais e mais o buraco do costume (as famosas crises nacionais da democracia) onde as crises permanentes por falta de soluções económicas obrigam Portugal a manter sempre o mesmo rumo (para o abismo) sem retorno, a corrupção e as doutrinas das agendas dos massmedia do capital dominam e “educam com tecnologia” os escravos burros que não conseguem pensar na hora de votar em alternativas (muitos não votam porque já não acreditam). A esquerdalha é toda “comunista e come crianças a qualquer hora do dia”, a direita é toda católica e praticante e trata “muito bem” o povo com “altos” salários e “pouco” fisco”, em suma o país só tem futuro se as futuras gerações não forem superdependentes de tudo e mais alguma coisa, estudar (sem propinas), comprar casa ( a preços razoáveis ), criar família (com incentivos fiscais). Ou seja o legado dos nossos pais, avôs é uma boa merda (claro obrigado Vicente esta é não uma geração à rasca, mas muito enrascada), tivemos um regime fascista e evoluímos para um regime supostamente democrático que quer controlar tudo e todos com a salvadora “tecnologia”. Ora para se respirar e não ter muitas doenças é suposto existir a natureza e claro usufruir da mesma, desde que não esteja muito adulterada pelos químicos “salvadores” da agricultura industrial entre outras invenções fascinantes como a bomba atómica. O ser humano quando nasce como qualquer animal desenvolve-se e tem os dois lados o racional e o irracional, logo se continuarmos a banalizar as guerras, a violência e todas as adversidades do mundo como se só acontecesse aos outros estamos a educar mal os jovens, não é com censura que se vai lá, mas com formas de cultura adequadas e mais pacíficas, o ser humano gosta de imitar sejam boas ou más práticas e cá em Portugal, é tudo boa gente, até é por isso que somos um país muito “avançado”, tipo a califórnia da Europa (lmao). Só nos falta termos a malta da televisão a governar o país para assim o sonho americano da maioria triste que cá vive se sentir, sei lá, enfim, realizada. O primeiro passo foi dado pelo Marcelo, e claro o Ventura, agora só falta as “estrelas” para iluminar a glória do passado eternamente e assim o povo agradece e esquece que afinal é só um sonho….

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