(Vicente Jorge Silva, in Público, 31/05/2020)

Já escrevi neste espaço que a pandemia da covid-19, apesar dos seus efeitos apocalípticos (ou até por causa deles), pode funcionar como um ponto de partida para a necessidade imperiosa de mudar a lógica predadora do mundo em que vivemos e, sendo assim, lançar as bases de outro mundo mais equilibrado, menos consumista, mais respeitador do ambiente e da natureza.
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Mas este propósito construtivo, embora se mantenha vivo no seu apelo à sobrevivência da(s) espécie(s), parece crescentemente ameaçado por várias formas de exercício desvairado do poder, cuja expressão limite é cada vez mais representada pelo Presidente americano Donald Trump.
Em poucos dias, Trump envolveu-se numa guerrilha com as redes sociais – ameaçando controlá-las ou até fechá-las – depois de a direcção do Twitter ter deliberado submeter a “fact-checking” algumas das suas mensagens, incluindo os “tweets” chamando “cães raivosos” aos manifestantes que protestavam contra o assassinato a sangue frio – e registado por telemóvel – de George Floyd, um militante negro, por um polícia. Note-se que, anteriormente, Trump se limitara a lamentar a morte do manifestante negro, sem adjectivar de forma idêntica o responsável pela sua morte. Além disso, nos seus últimos “tweets”, o chefe da Casa Branca multiplicara os ajustes de contas e as teorias de conspiração envolvendo personagens que se tinham tornado detestáveis aos seus olhos, incluindo um antigo representante republicano que Trump insiste em considerar culpado da morte de uma assistente há cerca de 20 anos, apesar de todas as evidências e conclusões da investigação e dos protestos do próprio viúvo da vítima.
Como se tudo isto não fosse suficiente como revelação do carácter e da saúde mental do Presidente norte-americano, Trump decidiu cortar os últimos laços da relação dos EUA com a China – e abandonando de passagem as ligações com Hong Kong, no preciso momento em que a região rebelde mais precisava delas –, agravando o clima de Guerra Fria que favorece os propósitos autocráticos do “imperador” Xi Jinping e os delírios do poder cultivados por ele próprio. Isto sem falar do corte de relações definitivas com a Organização Mundial da Saúde, independentemente das razões que possam assistir aos EUA na denúncia das dependências pró-chinesas da OMS.
Se o “America first” trumpista já pressupunha uma viragem do avesso do legado multilateralista americano, talvez nunca se tivesse imaginado que essa viragem fosse tão radical e ameaçadora para os equilíbrios mundiais edificados ao longo das últimas décadas. A covid-19 não só pôs a nu como exacerbou a revelação da natureza inquietante do trumpismo, mas essa natureza ainda não suscitou a perplexidade e a rejeição previsíveis numa democracia aparentemente consolidada (mau grado todas as suas imperfeições) como é a americana. Ora, num mundo onde as autocracias tendem a expandir-se, a ruína da democracia americana é um dos maiores perigos que espreitam o mundo nestes tempos de covid-19 (cuja gestão pela administração Trump é, de resto, das mais caóticas e catastróficas que se poderiam imaginar).
Tendo tudo isto em conta, pouco mais resta do que a Europa para inspirar um sopro de verdadeira mudança num mundo progressivamente bloqueado. Daí o desafio sem precedentes que os europeus enfrentam hoje: ou assumem solidariamente os objectivos definidos por Macron, Merkel e Von der Leyen sobre a resposta às consequências da covid-19 ou voltam a ser derrotados – uma derrota irrecuperável e de repercussões trágicas – pelas tradicionais divisões e egoísmos suicidários. Infelizmente, há motivos para temer que essas divisões e egoísmos acabem por sepultar a esperança de que a Europa é, hoje, um farol quase único no mundo. A obrigatoriedade de um voto unânime de todos os países numa matéria tão sensível e decisiva é manifestamente anti-democrática, já que a democracia é o governo da maioria – simples ou qualificada – e não de uma artificial e até impossível totalidade.
Jornalista
Apesar do Presidente eleito dos EUA ter menos votos que a derrotada Hillary, apesar do Gerrymandering que é a manipulação dos círculos eleitorais para os governadores e congressistas se manterem eternamente nos lugares, apesar de toda a falta de liberdade dos negros, apesar das violações dos Direitos Humanos em Guantánamo, apesar dos crimes de guerra dos quais sabemos graças aos Presos Políticos: Chelsea Manning e Julian Assange, apesar do Big-Brother orwelliano que é o fim da privacidade e a vigilãncia em massa de TODA a população tal como nos contou o whistleblower Snowden, apesar das estreitas relações com uma Arábia Saudita que corta jornalistas aos pedaços, apesar do apoio descarado a uma Israel que assassina Palestinianos ou os invade ilegalmente todos os dias, apesar de milhões de estado-unidenses serem condenados à morte devido à inexistência de um Serviço de Saúde democrático, já para não falar dos que são efetivamente condenados à morte em tribunal, etc, apesar de tudo isto e mais alguma coisa, o autor atreve-se a dizer que os EUA ainda são a Democracia.
E logo a seguir, e só porque a UE, e MUITO BEM, exige unanimidade de todos os países para aprovar um plano (que não é “bazuka” nenhuma, e pode nem passar de “fisga”, mas isso é outra conversa), atreve-se a dizer que isso sim é que é “anti-democrático”…
Mais palavras para quê? É esta a verdadeira natureza daquilo que a que chamo os Euro-fanáticos ou Extremo-Europeísmo: gente que cada vez mais repudia a verdadeira democracia (que só existe a nível nacional), que quer “integração” à força até ao federalismo final na Europa (sem passar por qualquer escrutínio popular, até sermos uma colónia de facto do eixo Paris-Berlim), e que está alinhado com o regime autoritário e imperialista de Washington (e fala como se Trump fosse o único não-democrata lá do sítio, ou a causa dos problemas estruturais).
Um dia destes o autor até é capaz de dizer que a China é uma ditadura que ameaça a liberdade dos cidadão de Hong Kong com a nova lei que criminaliza a sedição e permitirá fazer presos políticos (e até aqui eu concordo), mas ao mesmo tempo dizer que a Espanha é uma “democracia plena”, que a Catalunha não tem o direito de lutar pela sua autonomia tal como fazem em Hong Kong, e que a mesmíssima criminalização da sedição em Espanha (lei vinda do tempo do Franquismo) não permite classificar os Jordis (e outros) como presos políticos.
Repito, é esta a natureza do Euro-fanatismo: para eles a definiçãi de democracia muda consoante os seus objetivos, e os seus objetivos mudam ao sabor das vontades do eixo Paris-Berlim, e por sua vez este eixo atua com base nas linhas gerais do diktat do ” Consenço de Washington” (que com ou sem Trump é basicamente o mesmo na política externa).
Graças à covid-19 o exemplo mais flagrante de todos só não é óbvio para quem não quer ver: durante décadas ouvi PCP e BE dizerem que precisávamos de mais indústria nacional e investimento público para fazer essa e outras transformações (desde mais proteção ao emprego, a mais respeito pelo ambiente). Durante esses mesmos anos ouvi o PS e toda a Direita (passe a redundância) a dizer que não era possível, que era errado, que era “populismo”, e “eurocepticismo”. Agora que a crise provocada pela covid-19 deixou tudo a nu, finalmente, “só” com 10 ou 15 anos de atraso, já passaram a dizer o mesmo que PCP e BE se fartaram de repetir antes.
Só “por acaso”, quando a re-industrialização e intervenção do Estado era ” impossível”, foi quando as empresas Alemãs e Francesas iam por essa Europa fora agarrar mercado que fugia das mãos das pequenas empresas Portuguesas, Gregas, etc. E també só “por acaso”, agora que a re-industrialização e intervenção do Estado passou a ser possível, é quando a Alemanha e França o estão a fazer. Coincidências…
E são estes os “moderados” e “responsáveis” que nos governam há 45 anos…
Pata acabar, e por falar na Alemanha e na intervenção do Estado, volto à referência da “bazuka” (o alegado novo plano Marshall) e da fisga:
– podem vir a ser (ainda não foi aprovado) 500 mil Milhões no total de subvenções para salvar TODA a Europa, mas a Alemanha, só para si, já aprovou um plano interno de 950 mil milhões.
– dos 25 mil milhões para Portugal, 10 são em empréstimo com piores condições de financiamento do que temos agora nos mercados, logo não lhes vamos recorrer (até porque a dívida já está demasiado alta, e como disse Schauble: mais empréstimos em vez de subvenções, seria como pedras em vez de pãi)
– dos 15 mil milhões que sobram, uma parte significativa não passa de antecipação dos fundos que já iríamos receber mesmo sem a covid-19 acontecer, sujeitos a “reformas estruturais”, que como sabemos bem do paleio NeoLiberal da UE, se trata de mudanças nos impostos e lei laboral, de forma a passar estruturalmente muitos milhares de milhões dos trabalhadores para o grande capital
– e o que sobra, que mal dará para cobrir o défice só em 2020, estará sujeito a condicionalismos, que é como já sabemos desde 2011: austeridade – falta só saber se será igualmente cega ou um pouco mais “inteligente”.
Enquanto isto, no Reino Unido, esse “malvado que nos abandonou” e ficou “sozinho” no Mundo, a solução é esta:
– o banco central imprime mais moeda, e o governo pode assim monetarizar o défice, o que equivale a mais 0% (ZERO PORCENTO) de dívida. E como é algo extraordinário, e em tempo de quebra da procura e crise global, não há qualquer problema de inflação.
Não é de estranhar, pois, que alguns especialistas em economia, como o Luis Aguiar Conraria, se tenham deixado de Extremismo-Europeísta, e se tenham finalmente juntado a outros igualmente especialistas em economia: Francisco Louçã (Esquerda) e João Ferreira do Amaral (Direita) – na conversa sobre a hipótese de termos mesmo de sair do Euro, ou mesmo acabar completamente com ele. A ironia tem destas coisas, um vírus (SARS-CoV-2) tornou-se a mais eficaz vacina contra a doença do Euro-fanatismo. Só é pena que tantos (como o autor) ainda sejam “antivaxx”…
Muito bom comentário. Mande sempre. 🙂