Os velhos

(José Soeiro, in Expresso Diário, 24/04/2020)

José Soeiro

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Uma “tragédia humana inimaginável”. Foi assim que Hans Kluge, director regional para a Europa da Organização Mundial de Saúde (OMS), classificou o que está a passar-se nos chamados “lares de idosos”. As palavras são fortes e não é caso para menos. Metade daqueles que morreram na Europa com Covid-19 eram residentes de estabelecimentos de cuidados continuados. Em Portugal, os números oficiais já se acercam perigosamente dessa proporção. Os 327 residentes em lares que morreram da infeção são cerca de 40% do total de óbitos no país, segundo a diretora-geral da Saúde.

Preocupados em reforçar os hospitais e encerrar as escolas, parece que só tardiamente acordámos para o que era preciso fazer nos lares. Proibiram-se visitas para conter a doença, mas não se acautelou desde logo a necessidade de separar áreas e garantir equipamentos de proteção para os profissionais, de realizar testes e reforçar o número de trabalhadores. Foi mais em socorro que em prevenção que começou a atuar-se.

Tinham já decorrido semanas desde o decretamento do isolamento quando os equipamentos começaram finalmente a chegar e se lançou um programa para que estudantes e desempregados se oferecessem para apoiar as “estruturas residenciais para idosos”. Quatro mil pessoas responderam ao apelo, cerca de 2200 candidaturas foram aprovadas. Mas, dizem os responsáveis das instituições, muitos voluntários desistem quando confrontados com a realidade dos lares. Por fazer está a requisição civil de equipamentos vazios – alguns hospitais privados, hotéis – que poderiam servir para os planos de contingência.

Foram os velhos, sobretudo esses 150 mil cujo confinamento em instituições tem décadas e antecede a pandemia, quem terá sofrido mais brutalmente o impacto da crise sanitária. Com as visitas proibidas, a solidão aumenta e o contacto com a família, por vezes já parco, desaparece. “Nem sei se a minha mãe já morreu”, dizia ao Público a familiar de uma utente do Lar do Comércio, em Matosinhos, onde residem 240 pessoas e sobre o qual se teme o pior. Em Portugal, há 2520 lares de idosos, a esmagadora maioria dos quais geridos por IPSS’s, informa o Governo. A esses há contudo que somar, acusa a associação das empresas privadas do setor, 3500 lares clandestinos, nos quais viverão 35 mil pessoas. O que se passará com elas nessas zonas de alto risco?

2.

Não é apenas nos lares que se sente o peso do abandono e da depressão. Os mais velhos, diz o Observatório da Solidão, sentem-se agora, mais do que nunca, a perder tempo de vida – e a alegria. O estudo sobre o modo como a pandemia está a ser vivida revela que é na faixa etária acima dos 70 anos que os efeitos psicológicos do confinamento e da pandemia são mais devastadores.

Não admira por isso que haja essas formas de resistência e de rebeldia – que Mariana Correia Pinto retratou no Público – dos velhos que, nos recantos dos jardins para onde escapam quando podem, explicavam à jornalista que não querem morrer nem da doença, nem da solidão. “Trago um sabão rosa, uma garrafa de água e vou lavando as mãos. Mas não me peçam para ficar em casa”, dizia um deles, numa tarde em que procurava na rua um pedaço de sol.

3.

Ao confinamento institucional e ao isolamento em casa, que retirou a muitos dos velhos o toque e esse contacto essencial com a vizinha, os filhos ou os netos, soma-se agora uma intolerável ameaça de discriminação. Quem começou por brandir oficialmente a possibilidade dessa condenação foi Ursula Von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia. Embrulhada numa retórica de “proteção dos idosos”, a sugestão atingiu muitos como uma faca apontada ao peito: as pessoas mais velhas, aventou aquela responsável, poderiam ter de ficar em confinamento até ao final do ano. Criar-se-ia assim, sem qualquer fundamento científico ou sanitário, uma espécie de terceiro grupo de pessoas, entre os infetados e os não infetados: os velhos. A esses, independentemente da sua saúde e de serem portadores ou não da infeção, haveria que manter fechados em casa muito para lá das medidas gerais de restrição dos movimentos da população.

A violência e a ilegitimidade de tal sentença foi denunciada, sonoramente, por Rosário Gama, da APRE. O apelo contra a estigmatização e a menorização dos mais velhos, como se estivessem sob tutela e não fossem dotados de autonomia, tem de ser ouvido por todos. O “regresso à vida” pós-emergência, que agora se perspetiva, será certamente diferente da vida que tínhamos antes de janeiro, porque com mais cuidados sanitários. Mas não pode significar, em caso nenhum, um apartamento dos mais velhos do espaço público e da vida social.

Aproveitemo-lo antes como uma ocasião para pensarmos como construir uma resposta pública de prestação de cuidados muito mais diversa e capaz de combater a galopante precarização da velhice. Façamos desse regresso, isso sim, uma forma de não voltar à normalidade do estigma e do idadismo, esse para o qual, como alertava Fernando Alves, os velhos não são “os que têm mais idade” mas os que têm “idade a mais”.


3 pensamentos sobre “Os velhos

  1. Estes incentivos à violação das regras do confinamento são simplesmente criminosos.

    O prolongamento do confinamento para os velhos não é por “discriminação” é por os velhos serem as principais vitimas do virus e por a maior parte serem reformados e logo não haver necessidade de se andaram expor enquanto os outros precisam de voltar a reativar a economia.

    Era lindo termos um milhão de reformados a encher os transportes públicos para criar uma bomba de contágio.

    Eu ando de transportes públicos porque tenho de ir trabalhar, tomara a mim poder ficar em casa durante a pandemia.

    Agora proteger-se é “discriminar” ??????

    Pelo amor de deus !!!!!!

    Que a direita faça este tipo de manobras criminosas, é “compreensível”, é táctica habitual do direitalho sabotar o país em governos PS.

    Assim nas crises económicas aplaudem os especuladores internacionais que nos atacam, pedem aos nossos “amigos” alemães castigos para Portugal etc.

    Sabe-se que andam raivosos por o Costa estar a gerir bem a crise e termos menos mortos que os seus chefes holandeses e é “natural” que tentem provocar um maior numero de mortos para depois dizerem que “a culpa é do PS” como fazem em todas as crises.

    O que a esquerda pensa ganhar com este tipo de coisas é que não dá para perceber.

    Quando o fizeram em 20111 colaborando com o Passos a derrubar um governo PS e ajudando-o a subir ao poder, o resultado foi lindo !!!!

    Ressalvadas as devidas distâncias, foi um pouco como se o PC chileno tivesse ajudado o Pinochet a derrubar o Allende…

  2. A União das Santas Casas da Misericórdia e os seus franchisados obstinam-se a guardar de Conrado o prudente silêncio. Já cá andamos há tempo bastante para conhecermos essa gente em profundidade.
    Avaliamos a indústria da Caridade e os seus frutos.Poucos poderão alegar ignorância a tal respeito e esta não aproveita a ninguém.
    O bem estar dos nossos idosos tem que estar nas mãos de gente séria,escrutinável e profissional .
    Um assunto demasiado sério para ser depositado nas mãos de gente de boa vontade.

  3. Infelizmente assim é a realidade. Os velhos são lixo indesejável para muita gente e ao mesmo tempo talvez signifiquem euros para muitos outros.
    Todos nós nos esquecemos que um dia também seremos velhos. E depois, como será??? Para a maior parte, lixo que é preciso tirar de casa.
    Nesta altura já muitos se livraram do lixo e muitos outros talvez estejam a ver o seu rendimento baixar. É a sociedade tal qual a construímos.
    Tenho muita pena, não do velhos, mas sim dos idosos. Já a minha mãe dizia… velhos são os trapos!
    Um abraço para quem ainda os respeitam e veneram.

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