(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 20/04/2020)

As liturgias não são um capricho das instituições. São o que lhes dá continuidade, previsibilidade e confiança. Como as regras e as leis. Sem símbolos, as instituições do Estado são apenas os homens que circunstancialmente ocupam os lugares. Nunca, desde 1976, foi tão importante assinalar o 25 de Abril. E tendo sido interditas, por razões evidentes, as celebrações populares, só razões incontornáveis poderiam levar a Assembleia da República a não celebrar a data que funda a sua própria legitimidade. E o símbolo da fundação da nossa democracia é o Parlamento, não é o Presidente da República. Foi ali que se aprovou a Constituição e este foi o órgão que, ao contrário da Presidência, só funcionou de forma eleita e democrática a partir de 1974. É fundamental marcar a data para deixar claro que o Estado de Emergência não representou qualquer tipo de suspensão da democracia. Nem na prática, nem nos símbolos. Fazem bem os deputados em não ceder às polémicas do momento, mesmo que fosse esse o caminho mais fácil. Esses caminhos fáceis só criam equívocos.
A polémica absurda que daqui nasceu tem um argumento: que isto é um desrespeito pelos portugueses, tendo em conta o que lhes é exigido. A sessão solene não é comparável, como o CDS quis fazer querer de forma nada inocente, com celebrações religiosas abertas ao público. Exatamente porque não são abertas ao público, o que permite um total controlo de tudo o que ali se passa. Também não é uma festa – o termo “celebrações” parece levar algumas pessoas ao engano. É uma sessão solene em muito semelhante, quando simplificada, às várias sessões plenárias que aconteceram durante o Estado de Emergência.
Estarão, do que se sabe, 77 deputados no plenário e cerca de 40 convidados numas galerias onde cabem centenas de pessoas. Podem reduzir ainda mais os convidados, mas o que se prevê é 130 pessoas no mesmo espaço onde há um ano estiveram 700. Cumpre-se largamente as regras impostas pela DGS. Na realidade, estarão, no plenário, as mesmas pessoas que estiveram nos debates ao longo deste mês. O problema é a data?
Ninguém está a propor que a Assembleia da República funcione excecionalmente a 25 de abril. Mas há quem ache que deve fechar excecionalmente a 25 de abril. Mau exemplo seria mandar milhares de alunos dos 11º e 12º anos irem para as escolas poucos dias depois e os deputados, com muito melhores condições de segurança, não cumprirem o seu dever.
Esta polémica é absurda porque o Parlamento esteve em funcionamento diário – com funcionários, comissões e plenários –, cumprindo todas as regras, sem que isso levantasse qualquer debate. Como muitas empresas e instituições estão a funcionar. O CDS, que não surpreendentemente foi quem mais problemas levantou, sente-se seguro para votar o Estado de Emergência e não se sente seguro numa sessão solene do 25 de Abril? Ou acha que o vírus distingue a agenda de trabalhos ou é a sua sensação de segurança que depende do tema político em apreço.
Seria estranho que o Parlamento pudesse funcionar todos os dias, como funcionou, com o plenário a reunir-se para votar várias vezes o Estado de Emergência, e só não pudesse funcionar no dia 25 de abril. Ninguém está a propor que a Assembleia da República funcione excecionalmente no dia 25 de abril. Mas há quem, aproveitando a má-fé de alguns e a distração de muitos, acha que deve fechar excecionalmente no dia 25 de abril. A motivação de quem lançou a polémica só pode ser política.
Outros dizem que é um mau exemplo dado pelos deputados. Mau exemplo seria se o Parlamento pudesse funcionar todos os dias menos a 25 de abril porque alguns resolveram tentar impor um dia de exceção para esta data. Isto, no mesmíssimo momento em que se negoceia com o Patriarcado as regras para o regresso de algumas cerimónias religiosas. Mau exemplo seria se os deputados, que estão e sempre estiveram a trabalhar (como muitos outros portugueses) desistissem, naquela data, de cumprir as suas funções com todas as regras exigidas pela Direção Geral da Saúde. Mau exemplo seria mandar milhares de alunos dos 11º e 12º anos irem para as escolas (poucos dias depois, a 4 de maio) e os deputados, com muito melhores condições de segurança, não cumprirem o seu dever. Sim, o seu dever. Porque não estamos a falar de uma festa ou de um acontecimento privado. Estamos a falar de trabalho.
Exactamente o que eu penso. Apenas uma ressalva: 25 de Abril, escreve-se com maiúscula. Que raio! Leia o acordo ortográfico, por favor.
Claro que o Daniel Oliveira vai ao centro da questão quando fala das liturgias, porque é de uma liturgia da instituição “Estado Português” que se trata. Acontece que, no estado de emergência, no estado de confinamento social, é importante que estas liturgias transmitam (diria, celebrem) o que hoje todos estamos a viver; que tenham aquela sobriedade que se a situação exige. O problema não é que o parlamento reúna (como é seu dever) cumprindo as normas da DGS. A questão é que a celebração tenha em conta o que toda a sociedade é ainda chamada a viver. Precisamente, não se trata de normas e protocolos matemáticos: trata-se de símbolos. Estes têm uma força diferente que o tonto debate esquerda/direita parece esquecer.
A celebração no parlamento saberá transmitir à sociedade que celebramos a liberdade que se funda na responsabilidade pelos outros? Que temos de continuar um especial dever de isolamento social para cuidar da vida de todos?
O meu problema não é se a AR respeita todas as regras de higiene e segurança. A minha questão é se a AR celebra a liberdade que Abril tornou possível envolvendo todos os portugueses, particularmente os que estão tentados de pensar que voltamos à normalidade.
Quem vê o mundo a preto/branco, esquerda/direita, fascistas/democratas, caiu numa armadilha, num beco sem saída. Sim, o 25 de Abril pede uma liturgia, não um relatório!