A Europa já não está connosco?

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 14/04/2020)

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Num discurso em 1985, Jacques Delors, então presidente da Comissão Europeia, arriscou um vaticínio distante: “Temos de enfrentar o facto de que em 30 ou 40 anos a Europa constituirá um OPNI, Objeto Politicamente Não Identificado, a não ser que forjemos uma entidade capaz de garantir a cada um dos nossos países que beneficie da dimensão europeia e prospere internamente, ao mesmo tempo que mantém o seu estatuto externo.” Talvez fosse fácil, à distância de várias décadas, ameaçar os seus ouvintes com um fracasso cataclísmico caso não se conjugassem numa União que estava então a começar a pensar numa moeda única e que, sobretudo, acreditava no seu sucesso. Era um tempo de otimismo e a frase sobre o OPNI ficou registada como um detalhe retórico.

No entanto, nos mais de trinta anos seguintes, este discurso de Delors foi sendo lembrado sempre que percalços sucessivos mostraram que a “Europa” não era “capaz de garantir a cada um” dos países membros “que beneficie da dimensão europeia e prospere internamente, ao mesmo tempo que mantém o seu estatuto externo”. Afinal, foi mesmo um OPNI que foi retirando capacidade de decisão soberana ao mesmo tempo que acentuava a desigualdade entre economias por via de regras e estratégias, que consagrou em tratados.

Temendo o efeito dessa distorção, a União foi sempre prometendo compensações, fosse uma reparação histórica (a Alemanha e a França deixariam de se guerrear), fosse um fluxo de fundos modernizadores (“a Europa está connosco”), fosse até uma narrativa de cooperação entre iguais, tudo poderosos objetos eleitoralistas para uso e abuso internos. Portugal viveu essa doçura durante anos, repetida à exaustão por todos os governos. Nenhum governante se atrevia a contrariar o dogma, a União Europeia é a nossa salvação.

E assim se criou a contradição que agora está tão exposta: enquanto as elites e aparelhos governantes na Europa do sul foram educados na veneração destes arranjos institucionais como o único quadro possível de ação e até de pensamento, as soluções que trabalhosamente articularam são destrutivas para essas sociedades. A reunião do Eurogrupo da semana passada, modestamente encerrada pelo autoaplauso dos ministros e apresentada por umas horas aos crédulos como um sucesso, foi um retrato desse paradoxo: os que precisam não podem e os que podem não querem, sabendo que esta é mais uma oportunidade para reforçarem o seu poder e a sua supremacia económica.

Talvez custe dizê-lo, mas num ponto o ministro holandês tem razão: foi ele quem venceu este round. E não precisava de muito, bastava-lhe lembrar que o instrumento do endividamento dos aflitos, o Mecanismo Europeu de Estabilidade, foi precisamente definido para os disciplinar com programas de austeridade. Ele limitou-se a ser coerente com o que tinha sido votado por todos os outros, teve mesmo a indelicadeza de lhes lembrar que tinham aceitado a regra da peçonha no dia em que aprovaram o Mecanismo.

Claro que, sabendo bem o que tinham feito, os governos aprovaram o recurso a um instrumento em que preferem nem tocar, nenhum quer meter-se na aventura de acender os focos da pirataria financeira sobre a sua economia – merecem de facto um aplauso pela artimanha. Só que ficaram deste modo só com uma mão cheia de promessas e uma pilha de possibilidades de endividamento, ainda por cima caro.

Nesse drama, o primeiro-ministro tem pela frente decisões difíceis. O Eurogrupo desprezou a proposta dos nove governos, limitando-se a oferecer-lhes uma misteriosa frase sobre a discussão futura acerca de “instrumentos financeiros inovadores”. Costa não pode agradecer a Centeno ter sido o mediador da Alemanha e nem sequer quis esconder o seu descontentamento com os resultados da reunião. Percebeu também que a convocação do Conselho para a próxima semana é uma armadilha: a reunião, de tão imediata, não será preparada por negociações, que seriam certamente ardilosas, e portanto dificilmente considerará soluções que o Eurogrupo não tenha apresentado.

Como se percebe, o Conselho reúne-se para fingir unanimidade e consagrar o fecho da discussão, com a chantagem de que um desacordo a esse nível seria uma mensagem de divisão que ninguém quererá arriscar. Mesmo que se possa presumir que, para amaciar os recalcitrantes, venha a ser prometido um pequeno fundo, como o que Macron sugere e a prestidigitação dos comissários já mostrou saber como agigantar (o plano Juncker tinha vinte mil milhões e prometia alavancar 315 mil milhões), não se adivinha outro fôlego. Berlim quer acabar já com os protestos dos países do sul.

Assim sendo, o governo português, como o italiano ou o espanhol, tem somente pela frente três possibilidades: ou consegue um fundo de aplicação imediata e de grande dimensão, com juro zero e uma maturidade longa, ou consegue um quadro orçamental plurianual com transferências volumosas, ou não consegue nada que sirva para responder à segunda vaga da pandemia. As duas primeiras vias são difíceis, pois foi precisamente para as evitar que se consolidou a fronda germano-austríaca-holandesa-islandesa. Aliás, melhor fariam os nossos euroentusiastas em não tecerem encómios a Merkel rezando por um milagre, foi precisamente o seu governo que criou as condições internas para recusar a cooperação europeia.

Restaria aos governos do sul, como no passado, fingirem que uma derrota é uma vitória, que a união prevaleceu e que tudo está bem neste reino da Dinamarca. Não sei se o farão, esticaram muito a corda nas últimas semanas, mas tem sido sempre esse o seu instinto.

Reconhecer que todas as promessas vão ser pagas com austeridade mostraria simplesmente que cada país ficou entregue ao seu destino. Ouvir-se-á talvez a pergunta mais temida: se a União Europeia nos abandonou, serve para alguma coisa? Ou, lembrando Delors, não serão estes trágicos dias da pandemia o tempo em que o OPNI saiu do armário e nos ameaça?


3 pensamentos sobre “A Europa já não está connosco?

  1. Até Julho deverá ser concluído um FTA,(Free Trade Agreement), entre a UE e o RU para entrar em vigor no final de Dezembro próximo. Devido aos condicionalismos actuais já se diz que as negociações terão de ser feitas por video-conferência. Não importa. O que havia a decidir já há muito que está decidido agora, e por feliz coincidencia, que a crise economica causada pela pandemia justifica todas as cedências e todos os tiros no porta-aviões do chamado “projecto Europeu”.
    Mas aos países do Sul resta a opção “nuclear” de, em bloco ou isoladamente, vetar esse FTA, o que levaria inexoravelmente a que o RU ficaria livre para comercializar segundo as regras da WTO, situação que é abertamente defendida pela maioria do Gabinete Britânico, (senão pela totalidade), começando em Rishi Sunak, o novo Chanceler do Tesouro, e acabando no próprio Primeiro-Ministro.
    Os custos para os “ricos” do Norte seriam imensos, sobretudo para a Alemanha e para a França, e as ameaças e as pressões sobre os “pedintes” do Sul, brutais. Mas, feitas as contas talvez saísse mais barato aceitar a mutualização da Dívida Publica dos Estados Membros,, desde que dentro de certos limites, é certo.
    Segundo um aforismo Americano dos tempos do “Far West”, « if you talk the talk, you have to walk the walk» A questão consiste em saber se existirá algum líder do Sul que se seja capaz de «walk the walk».

    PS: Escreve FL a certa altura do seu texto a palavra “islandesa” quando quereria, provavelmente, dizer “Finlandesa”.

  2. Excelente texto que demonstra mais uma vez o que políticos sem visão de futuro para o país andaram ardilosamente a esconder dos eleitores, gente acrítica (alguns apenas por vaidade pessoal), que beneficiaram do exercício do poder para sí próprios e apaniguados.

  3. Henry Ford, quando viu que o preço dos automóveis que produzia não estava ao alcance da classe média americana, aumentou os salários dos seus empresários e foi seguido por muitas outras indústrias de ponta americanas. Até qie muito mais gente teve poder de compra para comprar um Ford…
    Foi o que fizeram os países do Norte da Europa. Manobraram para que o poder de compra dos países do sul aumentasse para poderem comprar carros e outros equipamentos alemães. De caminho fizerem autoestradas, portos de mar, etc, para que o custo do transporte das coisas fabricadas em suas fábricas fosse inferior. De caminho emprestaram milhões aos países do sul para puderem beneficiar de transferências a seu favor de milhóes de euros todos os dias, sob a forma de Juros da Dívida… Portugal, Espanha, Itália, Grécia.
    Não é necessário ser licenciado em Economia ou Finanças para tirar estas conclusões…
    É preciso ser muito ingénuo, ou mal intencionado, para admitir que alguma vez o projeto europeu foi um projeto de solidariedade entre povos da Europa.

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