Covid-19/março-2020

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 21/03/2020)

Miguel Sousa Tavares

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Não creio que o mundo vá acabar. Mas espero e desejo que a nossa forma irresponsável de viver e de habitar o planeta mereça — agora, pelo menos — um momento sério de pausa para reflexão. Espero que coisas como o desfile trendy de Davos, onde é possível juntar um idiota como Trump com uma vedeta assimilável como Greta Thunberg, ou um milionário com dúvidas de consciência, como Bill Gates, com uma milionária que compra caro a sua presença para limpeza de cadastro, como Isabel dos Santos, não voltem a repetir-se. Para fingir que os grandes, os ricos e os poderosos do mundo estão preocupados com o futuro da humanidade. Não estão, nunca estiveram e não passarão a estar quando nos livrarmos deste monstro. Tudo o que eles desejam é voltar ao habitual, ao mundo que era o de antes e que eles controlavam.

Não acredito em deuses nem em bruxas nem em teorias metafísicas para o que é simplesmente evidente. É evidente que o limite da capacidade do planeta em que vivemos é a natureza. Podemos agir sobre ela em muitos domínios e até certo ponto: podemos descobrir antibióticos até que o nosso organismo já não reaja a eles; podemos produzir alimentos transgénicos até que eles já não consigam alimentar mais gente do que aquela que matam; podemos ter 12 milhões de pessoas a voar todos os dias nos céus do mundo até que já não consigamos respirar; podemos produzir carne e soja para alimentar 1400 milhões de chineses e 140 chefes Michelin com os seus bifes Angus, em troca de milhões de hectares da Amazónia a arder todos os anos e a aquecer mais o planeta; e podemos plantar milhares ou milhões de hectares de eucaliptos, que crescem rápido e dão dinheiro rápido a ganhar em terras que nos dizem que, de outra forma, não valem nada, mas depois temos um mês de incêndios descontrolados na Grécia ou em Portugal ou seis meses na Austrália. Mas quando chegamos ao limite — ao limite da cobiça, ao limite da irresponsabilidade, ao limite da loucura — a natureza revolta-se. Depois, podemos dizer que foi um pangolim cruzado com um morcego, algures num mercado chinês — um azar que ninguém, nenhum epidemiologista, nenhum sociólogo, nenhum economista, podia prever, nos seus mais negros modelos de estudo. Mas não foi um azar: foi um aviso da natureza.

Os tempos requeriam grandes líderes. Não líderes locais, nacionais, pequeninos. Mas líderes mundiais, visionários, pelo menos mais fortes do que um morcego e um pangolim. Mas o que temos hoje são apenas duas espécies de líderes à frente das nações que têm armas, poder e dinheiro: os inteligentes e os idiotas. Desgraçadamente, porém, os inteligentes são cínicos e os idiotas são, por natureza, perigosos.

Desçamos aqui à terrinha, a Portugal. Ao contrário de tantos, procuro sempre todos os sinais de optimismo, de esperança, de continuidade. Tenho a imensa vantagem, que é uma escolha própria da primeira hora, de não habitar nas redes sociais. Isso permite-me passar ao lado do WhatsApp dos vizinhos, dos amigos e dos detentores de “informação privilegiada”. Mas não escapo à onda das mensagens de boataria originária das redes sociais e de apelo à cumplicidade no medo e no pânico dos que estão trancados em casa à espera do fim do mundo. São tantos os que transmitem mensagens aterradoras de um “médico meu amigo que está na primeira linha de combate”, que eu só posso chegar a duas conclusões: que toda a gente tem um médico amigo na frente de combate e que todos os médicos lá na frente perdem um tempo precioso a espalhar mensagens de pânico cá para fora. Felizmente, não acredito nisso. Mas ainda bem que eles estão trancados em casa. Não duvido que isso ajuda a conter a disseminação do vírus e é portanto louvável que o façam. Mas há outros que não podem ou não o querem fazer e, enquanto tal for permitido, também é legítimo que o façam. Aliás, só é possível a uns estarem trancados em casa porque outros o não estão.

Exemplo daquilo que não interessa num momento destes são as intervenções do deputado Telmo Correia. Reduzido a cinco deputados, o CDS tinha na anterior líder parlamentar, Cecília Meireles, uma pessoa séria, preparada e competente. Mas optou por substituí-la por Telmo Correia, um tribuno para todas as ocasiões, que tanto podia discutir Orçamentos do Estado no Parlamento como penáltis a favor do Benfica nos execráveis fóruns de debates futebolísticos televisivos. Ou a crise do coronavírus, julgavam eles. E, do primeiro ao 17º dia, Telmo Correia não conseguiu enxergar mais longe do que ver neste momento de excepção governativa e de sobrevivência pública uma oportunidade preciosa de atacar o Governo. Qualquer estagiário para spin doctor lhe teria explicado que este não era o momento para tal — como nem sequer tem sido em Espanha ou Itália, onde a gestão desastrosa da crise é por demais evidente: quando uma nação inteira está ameaçada, o povo quer cerrar fileiras atrás de um líder. Mas Telmo Correia, que no debate sobre a declaração do estado de emergência surgiu munido de ridículas citações churchillianas, optou antes por centrar a sua intervenção nas deficiências do Governo português para enfrentar o ataque à covid-19. É claro que as houve e é claro que foram cometidos erros, que são mais fáceis de ver a posteriori, como sempre sucede numa situação nunca antes vivida. Mas a Espanha, com quatro vezes mais habitantes do que Portugal, tem até sexta-feira, 200 vezes mais infectados do que nós e 300 vezes mais mortos; Itália, que se gaba de ter um dos melhores sistemas de saúde do mundo, é uma catástrofe inimaginável; a Holanda, com menos habitantes, tem o dobro de infectados e dez vezes mais mortos; a Suíça, um dos países mais ricos do mundo, com menos habitantes do que Portugal, tem três vezes mais infectados e oito vezes mais mortos e o seu sistema de saúde está à beira da ruptura; no outrora emblemático sistema de saúde inglês falta tudo: máscaras, ventiladores, médicos, camas, enfermeiros, ao ponto de a estratégia inicial ter sido a de deixar infectar todos; em França, que é o segundo país da UE que mais gasta em saúde pública, o sistema está em ruptura de tudo, após 300 mortos; e nos Estados Unidos, o país mais rico do mundo, o “New York Times” de quinta-feira reportava uma situação em que faltava tudo para acudir apenas à população que tinha cobertura de saúde. Todos foram apanhados de calças na mão. A covid-19 aproveitou aquilo que fazia a prosperidade do sistema — a globalização, a rapidez de comunicação e a interdependência das trocas comerciais, para atacar o centro vital do planeta. E por mais ricos que sejam os países, ter um sistema público de saúde preparado em permanência para responder a uma situação destas, continuando a responder também a todas as outras situações, teria um custo tamanho que ou os Estados esmagavam toda a economia com impostos ou deixavam de acorrer a tudo o resto.

Pelo contrário, eu penso que António Costa tem sabido gerir com um misto de coragem e de sangue-frio praticamente inatacáveis uma situação de uma gravidade que nenhum primeiro-ministro enfrentou antes em democracia. Tenho, como todos, criticas pontuais, das quais a maior é a de que já aqui tinha dado conta a semana passada: o tempo que demorámos a fechar a fronteira com Espanha. Mas não podemos esquecer que as decisões que o Governo tem de tomar todos os dias vão muito além da competência política exigível a governantes, por mais ampla que seja, estando ainda, ou sobretudo, dependente de informações e opiniões técnicas que, por natureza, não lhe cabem. E foi com grande alívio que vi o primeiro-ministro não ceder aos apelos ao pânico dos que queriam ver o país completamente fechado e paralisado, sem se deterem a pensar nas consequências e convencidos de que uma economia completamente morta não mata gente. Até porque, não tenhamos dúvidas: depois de ultrapassada a ameaça de morte sobre a saúde pública, encontraremos uma economia devastada e todos vão querer tudo da varinha mágica do Governo.

Ontem, sexta-feira, ultrapassámos o número de mil casos de infectados. Respiremos fundo, porque fatalmente vamos por aí acima. Mas, com calma: mil casos é ainda menos de 0,01% da população.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


19 pensamentos sobre “Covid-19/março-2020

  1. Concordo com Miguel Sousa Tavares:
    Muitas vezes estou em desacordo. Hoje totalmente de acordo. O Sport Lisboa e Benfica não tem culpa de ter tão “reles” sócios a deputados – Telmo Correia e André Ventura. Defender o Benfica é uma coisa, outra, é serem sistematicamente contra as decisões do Governo. Principalmente agora. Estamos feitos ao “bife” como se diz na minha terra, com estes dois “trastes”. Mas se fossem só estes dois podíamos bem com eles.
    Ontem numa passagem fugaz pela sargeta e escroque da CMTV ouvi um energúmeno a ser entrevistado por um “pseudo” jornalista de seu nome José Carlos Castro o qual – energúmeno – debitava até salivar que o Governo omitiu a morte do tal amigo de Jorge Jesus. Que ela tinha ocorrido na data em que Jorge Jesus noticiou. Chegando ao ponto de dizer perguntem ao familiar que Marcelo telefonou.
    No decorrer da entrevista referiu-se que quando Marcelo disse que agora não se mentia a indirecta era para o Primeiro Ministro. Mais. Disse que a Ministra da Saúde andava escondida. Ao ouvir estes dislates mudei para outro canal. Aliás a passagem como disse foi fugaz.
    Que um energúmeno tenha esta postura, infelizmente há muitos, agora um entrevistador ouvir isto e não contrariar é que é de bradar aos céus. Dizer a esse energúmeno que a Ministra estava em Conselho de Ministros e que eles se deram nos três dias seguidos, ou seja, dezoito, dezanove e vinte do corrente mês. Além disso faz parte do Gabinete de Crise e como se sabe não pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Só que a CMTV gosta de produzir excremento para a sua sobrevivência.
    Por isso e mais alguma coisa o acordo com Miguel Sousa Tavares.

    • Também estou de acordo com Miguel Sousa Tavares excepto na parte em que estigmatiza os deputados ao SLB. Como bom portista que é não perde uma para atacar o benfica. Não é sério e acaba por dispersar alguma razão.

    • Este tipo só sabe falar e mal, na prática não dá, uma para a caixa, só teoria, veja-se no caso das Autocaravanas? vendeu-se aos lobbys campistas, querendo meter as Autocaravanas nos parques de campismo, foi pago para o fazer. No caso da entrevista ao candidato a Presidente da República, Tino De Rans, levou uma abada de um homem do povo, sem estudos, este tipo é um crápula ao serviço de quem lhe paga mais, um enganador.
      Hora de arrumar as botas, consegue enganar os supersticiosos ou os influenciável mas mais ninguém.

  2. Naa situações de crise vemos os grandes luderes. Daqui para a frente fltramos os grandes, médios e minorcas. Sou por vezes, critico de Miguel Sousa Tavares mas, PARABÉNS pelo ESPECTACULAR artigo.

  3. Nem sempre estou de acordo, o que considero saudável, mas este texto encerra toda a verdade em que vivemos e demonstra como, mesmo em tempos difíceis, ainda se tenta por politiquice à frente do que é realmente importante. Bem haja!

  4. Nunca estive tão de acordo com Miguel Sousa Tavares. Subscrevo inteiramente tudo o que ele acaba de escrever. Curiosamente, as críticas que ele faz a alguns destes sujeitos (sujeita incluída) são, praticamente, aquelas que eu também tenho feito nos meus pensamentos. Parabéns, Miguel, uma referência para qualquer um de nós.

  5. o O Bill Gates dá a resposta em menos de 10 minutos de monólogo. Há 5 anos atrás. O Miguel de Sousa Tavares não diz nada, senão DIZER BEM DE ANTÓNIO COSTA. Está tão longe de imaginar o que aí vem…, que mete pena.

    • Pelo que vejo assentou-lhe a carapuça caro “A.J.T.A.”, só lhe faltou defender Telmo Correia que nunca tendo tido coragem e saber para levar o seu partido à ribalta, pretende ele mesmo ser essa ribalta, pensando, com isso, que cumpre o dever de oposição. Oposição não é só “ir de encontro” mas, também, “ir ao encontro” se for necessário ou quando a luta é de todos e por todos. Bem haja Miguel, apesar de tudo.

  6. Muito raramente concordo com os comentários de M. S. Tavares, que muitas vezes dá uma no cravo e outra na ferradura, mas neste artigo concordo com quase tudo o que escreve, excepto quando tenta ligar, de maneira patética e irracional, aos acontecimentos actuais, os deputados de facções neofascizantes, ao nosso glorioso BENFICA. É natural que um portista (são sempre os mesmos atrasadinhos) tente denegrir o maior clube de Portugal e um dos mais prestigiados do mundo, tanto mais que com tantos adeptos, de todas as áreas, camadas sociais e profissionais, nem todos sejam uns modelos exemplares. Mas o clube não é nem pode ser responsabilizado por isso. Agora, referir o Glorioso SLB num assunto que nada tem a ver com o futebol é que brada aos céus!!! Sejam sérios e honestos. Tavares acabou por estragar vilmente um artigo que poderia ter tido algum valor didático. É PENA!!!!!

  7. Discordo com alguma frequência do que diz Miguel Sousa Tavares (MST), mas neste texto concordo! É muito fácil adivinhar o resultado após o jogo, Hoje todos relativizam o facto de António Costa não ter fechado as fronteiras mais cedo, talvez para não darem razão a André Ventura…mas tinha razão e MST sabe-o! Também não havia necessidade de misturar o SLB neste texto. Tem o comentador do seu clube Manuel Serrão para se entreter.

    #EUFICOEMCASA

  8. Será que eu li bem ??? Holanda tem menos habitantes que Portugal ??? Holanda tem 17 Milhões de habitantes… De resto subscrevo o que Miguel Sousa Tavares escreveu.

  9. Discordo com muita frequência do que diz MST. Atirar ao mesmo tempo para todo o lado, normalmente não é eficaz, por falta de precisão. Ou seja, baralhou a mira. E não são raras as vezes em que faz desvios incompreensíveis, para se afastar deste ou daquele pedregulho maior. Porque o maior problema, não são os telhados de vidro que todos os têm, mas sim as algibeiras atulhadas de seixos ou pedras da calçada que alguns deles têm, prontas para partir muitos desses vidros. E nisso, os comentadores são pródigos.

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