(Daniel Oliveira, in Expresso, 08/02/2020)

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A Amazon cortou os planos de saúde para todos os trabalhadores com horário inferior a 30 horas semanais, tem números impressionantes de acidentes de trabalho, e, apesar de Jeff Bezos ser o homem mais rico do mundo, paga mal aos funcionários. Mas quando lhe perguntaram porque gastava mil milhões por ano para uma delirante corrida à Lua, que quer colonizar, respondeu que era a única forma de aplicar tantos recursos. Dar condições decentes a quem trabalha nas suas empresas seria um desperdício. Não é por acaso que Bezos e o “Washington Post”, que é propriedade sua, são dos mais virulentos inimigos de Bernie Sanders, que tem denunciado o que se passa naquela empresa e quer que uma pequena parte do dinheiro que está a ir para a Lua regresse à Terra através de um aumento do salário mínimo. E não é por acaso que os trabalhadores da Amazon são, no seu conjunto, os maiores contribuintes para a campanha de Bernie.
Para nos entendermos quanto ao rigor da expressão “antissistémico” temos de nos entender sobre o que é o “sistema”. Para alguns, é a democracia com os seus políticos eleitos, o Estado de Direito com os seus limites e o respeito por direitos humanos que protege minorias do ódio da turba. Neste caso, Donald Trump é antissistémico. Para outros, é a “situação”, com as suas contradições: a democracia e o capitalismo sem freio que a corrói, os direitos humanos e a perda de garantias laborais que os contraria, o Estado de Direito e os offshores que o enganam. Neste caso, Bernie Sanders e Donald Trump estão, por razões opostas, num mesmo saco de “extremistas” e “populistas”. Porque tudo o que esteja fora do que já existia é perigoso. É esta a convicção da CNN, que tem desenvolvido uma campanha contra Sanders ainda mais violenta do que há quatro anos, quando Donna Brazile entregou a Hillary Clinton perguntas que seriam feitas num debate com Sanders. No último debate democrata antes da balbúrdia do caucus do Iowa, a descarada falta de isenção do jornalista Wolf Blitzer fez da CNN a derrotada da noite. Por fim, há aqueles que, como eu, acham que o “sistema” é Jeff Bezos. O “sistema” é aquilo que nos faz acreditar que só o milionário Bloomberg poderia vencer o milionário Trump, mostrando que a democracia tem um preço que poucos podem pagar. Trump é uma versão musculada do “sistema”.
É por Trump e Bernie não serem duas faces da mesma moeda que toda a elite republicana se vergou perante um, a ponto de o deixar violar descaradamente a Constituição, enquanto a elite democrata fará tudo para impedir que outro seja o seu candidato. Como fez há quatro anos. É por isso que Hillary se recusa a dizer que apoiará Sanders se ele for o nomeado, enquanto Lloyd Blankfein, CEO da Goldman Sachs quando Trump foi eleito, escreveu que a sua vitória não era necessariamente má.
O “sistema”, nas suas várias componentes, não os vê da mesma forma. E se chegar a existir a possibilidade de Bernie Sanders ser Presidente, a campanha será impiedosa. Já começou, aliás. Bernie, o único que arregimenta para primárias eleitores que nunca lá tinham ido e que não votam nele apenas para derrotar Trump, só depende dos 18 dólares que recebeu, em média, de pessoas como as que trabalham na Amazon. E não há nada mais perigoso para um sistema que prefere ir à Lua a tratar com decência quem lhe garante o lucro do que esta liberdade.