(António Guerreiro, in Público, 31/01/2020)

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Desde que o CDS tem um novo Presidente cujo apelido passou a ser publicamente usado (ou ele nasceu na esfera pública e nunca teve outra existência anterior?), tornou-se possível lermos um título como este: “Não há mulheres na direcção de Chicão” (revista Sábado, 26/01/20). Quem proclamou a vontade de tornar o CDS “um partido sexy”, recebeu imediatamente em troca a insinuação de que no território a que ele preside com mandato de super-macho, outorgado num nome — Chicão — cheio de evocações adjectivas e sugestões onomatopaicas, as mulheres não entram. Antes da desejada viragem sexy, já se instalou um vago ambiente pornográfico e misógino.
Um comentário a esta frase merece ser posto em contraponto ao que escrevi no texto ao lado. A “vítima” de uma nomeação vagamente injuriosa no espaço público mediático parece não compreender nada do funcionamento do discurso e converte em nome comum um nome próprio — ele, que passou a carregar no nome próprio o que de comum os outros encontraram na sua pessoa. Que curiosa simetria! Joacine está de facto do lado oposto: é alguém que foi publicamente despojada do seu nome próprio e passou a designar uma série de nomes comuns, muitos deles insultuosos. O nome comum que Francisco Rodrigues dos Santos lhe atribui é apenas mais um de uma série deles. “Joacine”, o nome, já não designa uma pessoa, designa uma entidade construída colectivamente, de maneira maciça e em série. E hoje, basta dizer “joacine” e já estamos a praticar um acto.
A minha análise não incide sobre aquilo que Francisco Rodrigues dos Santos disse ou fez, mas sobre a sua condição de “objecto” de um discurso, sem procurar saber de que modo e em que medida contribuiu para ele. O nome “Chicão” não tem nada de neutro, está muito perto da injúria ou, pelo menos, da interpelação violenta. É um nome que constrói, por si só, um sujeito político, tal como a palavra “geringonça” era um juízo depreciativo do governo que nasceu de apoios parlamentares inéditos. E é muito interessante saber se tal apelido e o sujeito político que ele constrói trarão benefícios ou malefícios a quem é assim nomeado; e se o novo Presidente do CDS vai conformar-se sem resistências ao nome, como se ele não fosse uma ferida, mas um motivo de orgulho, ou, pelo contrário, se vai esvaziar o nome de qualquer legitimidade.
Mas, por enquanto, o que interessa perceber é que há um discurso jornalístico que nomeia com gáudio um líder partidário com um nome que não é como os nomes próprios que não têm nada de descritivo. “Chicão” tem um significado que toca no imaginário. Ele vale por uma diferença negativa em relação ao nome civil da pessoa que é assim nomeada, na medida em que chamar “Chicão” a alguém, publicamente e não num contexto familiar ou de camaradagem, é vagamente da ordem do insulto ou, pelo menos, da ironia. Só quem não presta atenção ao peso e eficiência dos significantes é que não percebe isto. Tal como na filosofia e na ciência são muito importantes as decisões terminológicas, no jornalismo e na política é muito importante a nomeação (veja-se o que significou a apelido “Bochechas” para a construção da figura pública de Mário Soares). E é curioso perceber que um título como aquele da revista Sábado é para ser lido como uma denúncia do machismo retrógrado do Presidente do CDS, mas tem também outro significado muito menos evidente e nada objectivo: o poder terrível de nomear e de praticar a acção injuriosa dos nomes. Ora, o que temos visto, por parte do jornalismo, nos útimos dias, é o uso imoderado deste poder. Não se trata sequer de eleger um inimigo político, alguém que se quer aniquilar politicamente, trata-se antes de exercer com gáudio e sem distância crítica um determinado poder. Escrever ou dizer “Chicão”, quando se está a fazer jornalismo, não é uma mera e neutra nomeação: é entrar no processo de constituição de um sujeito através da linguagem. Este discurso tem uma performatividade, realiza um acto, produz efeitos: na terminologia da Linguística, chama-se “acto perlocutório”. Experimentemos repetir “Chicão” muitas vezes, para experimentarmos o que uma vez escreveu Karl Kraus: “Quanto mais se olha de perto uma palavra, mais ela parece olhar-nos de longe”.
Não faço ideia qual a relação que o dirigente partidário Francisco Rodrigues dos Santos tem com o chamado “Chicão”, não sei se ele é cúmplice da difusão pública do seu apelido, que não chega a ser injurioso, mas tem um elemento descritivo de sentido negativo. Eu posso até achar que ele merece um nome que tenha uma carga negativa ainda mais forte, mas o que eu acho e o que os jornalistas “acham” não serve o rigor que o discurso jornalístico requer. Escrevo isto não por ter qualquer simpatia pelas ideias políticas e pela atitude pública do novo dirigente do CDS, mas porque ele deve ser contestado na sede política própria e não através de uma construção feita pelo nome, que de resto talvez acabe por lhe trazer benefícios.
Livro de recitações
“No CDS não existem Joacines”
Francisco Rodrigues dos Santos, in PÚBLICO, 28/01/2020
Um comentário a esta frase merece ser posto em contraponto ao que escrevi no texto ao lado. A “vítima” de uma nomeação vagamente injuriosa no espaço público mediático parece não compreender nada do funcionamento do discurso e converte em nome comum um nome próprio — ele, que passou a carregar no nome próprio o que de comum os outros encontraram na sua pessoa. Que curiosa simetria! Joacine está de facto do lado oposto: é alguém que foi publicamente despojada do seu nome próprio e passou a designar uma série de nomes comuns, muitos deles insultuosos. O nome comum que Francisco Rodrigues dos Santos lhe atribui é apenas mais um de uma série deles. “Joacine”, o nome, já não designa uma pessoa, designa uma entidade construída colectivamente, de maneira maciça e em série. E hoje, basta dizer “joacine” e já estamos a praticar um acto.
Qualquer dia não podemos dizer nada tanto é o politicamente correcto.
O dia chegará em que só poderemos falar por gestos.
Por falar nisso, temos a sua autorização para falar do Salazar como o “botas” e designar o salazarismo como paradigma de ditadura conservadora ou isso é “despojá-lo” de qualquer coisa?