Isabel dos Santos na “era das colónias”

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 20/01/2020)

Daniel Oliveira

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Com Luanda Leaks, a investigação de um consórcio internacional de jornalismo que envolveu 36 meios de comunicação (entre os quais o Expresso e a SIC), com 120 jornalistas de 20 países, completa-se o cerco inevitável a Isabel dos Santos. Inevitável porque o poder mudou em Angola. Entre 1992 e 2019, Isabel dos Santos e o seu marido, Sindika Dokolo, tiveram participações em 423 empresas (e respetivas subsidiárias), das quais 155 eram portuguesas e 99 angolanas. Excluindo as subsidiárias, são 192 empresas, espalhadas por 25 países, de que Isabel dos Santos e Sindika Dokolo são ou foram acionistas. Não se constrói um império destas dimensões, espalhado pelo mundo, sozinha.

A primeira parte da investigação concentrou-se na forma como, pouco tempo antes de saber que iria ser destituída da presidência da Sonangol, cargo para o qual foi nomeada pelo seu pai, a mulher mais rica de África canalizou mais de cem milhões de dólares da petrolífera pública para o seu labirinto de empresas.

Não vou recontar aqui como enriqueceu Isabel dos Santos. Até porque o choque de muitos parece ignorar como nasce a maior parte das riquezas no advento do capitalismo em cada país. Das vilanias necessárias para construir novos ricos que, passadas algumas gerações, constituem respeitáveis famílias de negócios que acreditam no mito fundador da sua fortuna baseado no trabalho e no mérito. Deixo isso para outro texto. Agora fico-me pelo cinismo.

Como sabem, Isabel dos Santos começou a reforçar a sua posição em Portugal pela mão de Américo Amorim. Na construção do seu império por terras lusas, que passou por telecomunicações, banca, energia, mobilidade e quase todos os sectores fundamentais da nossa economia, contou com a colaboração ativa dos principais políticos e homens de negócios deste país. Na lavagem da sua imagem e do dinheiro que roubou aos angolanos contou com a participação de agências de comunicação portuguesas, jornalistas portugueses e principais escritórios de advogados portugueses. E é por isso que, à medida que as investigações forem avançando, todo o mundo continuará a tropeçar em nomes portugueses. Foi uma parte razoável da nossa elite a colaborar e a ajudar a silenciar denúncias.

Se era difícil não saber quem era e o que fazia Ricardo Salgado, com Isabel dos Santos qualquer tentativa de surpresa causará risota geral. Isabel dos Santos nunca foi dissimulada. Até porque, ao contrário de Salgado, o seu dinheiro era demasiado fresco para esconder o rasto. Todos sabiam de onde vinha. E quando digo todos não me refiro àqueles que com ela colaboraram ou podiam colaborar. Digo mesmo todos. Do empregado de café ao banqueiro. Quem, em Portugal, colaborou com o assalto organizado pela família dos Santos sabia o que fazia e até sabia que todos nós sabíamos o que fazia.

Onde isso é possível, porque a opinião pública pode ter sido surpreendida por esta história – que é a história da acumulação primitiva de capital em sociedades em transição para o capitalismo –, aqueles que antes partilhavam os corredores do poder com Isabel dos Santos vão dedicar-se ao costumeiro festival de cinismo. Já começou. A consultora PricewaterhouseCoopers (PwC) fez saber que vai deixar de trabalhar com empresas controladas pela família do ex-Presidente de Angola, anunciando uma investigação interna. E o Fórum de Davos desconvidou-a. Esperam-se mais comunicados indignados com o crime hediondo cometido por Isabel dos Santos: deixou-se apanhar.

Em Portugal, a coisa vai ser mais difícil. Foi tudo demasiado descarado, demasiado evidente, demasiado transparente. A cumplicidade com o assalto aos bens angolanos foi política de Estado, estratégia empresarial, quase um imperativo patriótico. De novo. O que me leva a sorrir quando leio um tweet em que Isabel dos Santos escreve que o preconceito perante a sua riqueza, nascida do seu “caráter”, “inteligência”, “educação”, “capacidade de trabalho” e “perseverança”, faz recordar “a era das colónias”. É possível que Isabel dos Santos não perceba que, com a sua ganância, é um simples peão do mais velho dos neocolonialismos. Mecanismo pelo qual o capitalismo internacional, com especial participação das antigas potências coloniais, encontra líderes corruptos locais para que eles continuem a transferir a riqueza de países com matérias primas abundantes para o exterior, perpetuando a pobreza dos seus povos e a exploração externa dos seus recursos.

Não, não estou a dizer que a culpa é nossa. Até porque o “nós” e “eles”, os angolanos e os portugueses, não têm aqui lugar. Isabel dos Santos não representa nenhuma colónia, assim como os portugueses comuns não representam nenhum colonizador. Ela e os seus comparsas portugueses, respeitáveis advogados, capitães da indústria e políticos cheios de sentido de Estado, representam a mesma relação colonial de sempre entre quem rouba e quem é roubado. E há “colonialismos” internos, cá e lá. Isabel dos Santos tratou do assalto, outros trataram de colocar o fruto do seu roubo na economia legítima. Não espero que venham assumir as suas responsabilidades. Estarão já à procura de outro fura-vidas para o negócio poder continuar. “As usual.”



12 pensamentos sobre “Isabel dos Santos na “era das colónias”

  1. Texto interessante.

    Apenas três observações.

    – Hoje em dia Angola é muito mais poderosa que Portugal pelo que não faz sentido a visão neocolonial. As potências neocoloniais precisam de ser isso, potências. É o caso dos USA ou da China. Portugal não é uma potência neocolonial é uma lavandaria, uma espécie de offshore onde os corruptos de uma potência mais importante, Angola, gostam de lavar dinheiro roubado.
    A haver neocolonialismo seria em sentido contrário, Angola colonizar Portugal, o país mais fraco. Como se vê que são eles a controlar sectores chave da nossa economia e não o contrário.
    O pessoal da esquerda fica fechado nos seus quadros mentais estreitinhos e não compreende que o mundo muda. Portugal é um quintal da UE, nem chega a isso, é um pequeno galinheiro. E Angola é uma potência local.

    – O Daniel esquece que além dos capitalistas grande parte da esquerda, como o PC, apoiou o saque de Angola pelo MPLA. Em todo o sistema político apenas o bloco e a Ana Gomes tiveram uma atitude decente neste caso.

    – Notei que citou um por um todo os pontos do discurso da mafiosa – menos um.

    E parece que é por ter o rabo preso.

    Trata-se que a mafiosa do MPLA chamou RACISTAS a quem a acusa de ser aquilo que é, corrupta.

    Ora esse insulto compromete o caro Daniel que é um dos responsáveis pela campanha de calúnias contra o povo português que consiste em nos insultar de racistas por tudo e por nada.

    Graças a isso temos todos os criminosos que sejam um pouco mais morenos a insultar de racista o povo português para ficarem bem vistos pelas elites que promovem essa campanha.

    Sejam gangs de bairro que andam a assaltar à facada e à pedrada à policia, sejam milionàrios corruptos, agora quando são apanhados levamos sempre com o insulto de racista graças a pessoas como o senhor Oliveira que andam a denegrir a imagem do povo português numa campanha de racismo contra a maioria da população de Portugal que devia ser punida criminalmente.

    • Pedro

      “Trata-se que a mafiosa do MPLA chamou RACISTAS a quem a acusa de ser aquilo que é, corrupta.”

      E aqui está a prova evidente, do “lado” em que está o RACISMO de que a “grande empresária”, a sua família, e a clique dos seus cúmplices “empresariais ” portugueses e não só, falam, quando as investigações começam a revelar uma teia emaranhada de compadrios, cumplicidades, proteccionismos, enfim… de CORRUPÇÃO !

    • Portugal não é tido nem achado porque não quer, prefere deitar a soberania fora ser pedinte do capital estrangeiro, mesmo de países com muito menos estabilidade política, económica e social. São escolhas “responsáveis” de “pelotão da frente”.
      Aquilo que o MPLA argumentam, coisa nenhuma, e aquilo que o Daniel argumenta, desigualdade, só se toca numa palavra, que, como todas as outras, só por si nada dizem.

  2. Pois… Daniel tem toda a razão, mas a verdade é que o Daniel escreve num EXPRESSO que tem como acionista um Álvaro Sobrinho, cuja fortuna todos sabemos a origem. Por isso, Daniel sabe que é também pago por Álvaro Sobrinho para escrever no EXPRESSO.

  3. Nota. Tomem lá, pás, qu’o assunto vai muito para além disto e ainda não faz mal dar corda aos miolos. Para Acabar de Vez com a Cultura na volta, como diz o outro.

    Hoje:

    Isabel dos Santos | Os 715 mil documentos que podem explicar como se juntam 2 mil milhões
    DN, 20.1.2020

    Isabel dos Santos | De que é acusada a “mulher mais rica de África”?
    DN, 21.1.2020

    … compare-se com o Público, por exemplo:

    Luanda Leaks | Isabel dos Santos terá transferido 115 milhões para o Dubai
    P., 20.1.2020, pp. 24-25

    Isabel dos Santos | Cerco aperta nos negócios, justiça portuguesa não abre inquérito
    P., 21.1.2020, pp. 2-7 e editorial

    https://pbs.twimg.com/media/EOz8D9XX0AAHbhA?format=jpg&name=900×900

    Legenda. O DN, hoje, [continua] a limpar uma das casas de Proença de Carvalho, Ana Gomes.

    .

    • … e ontem:

      […]

      «Nos “cúmplices ativos” que funcionam como “testas de ferro da senhora Isabel dos Santos”, Ana Gomes destaca o advogado Mário Leite Silva e Jorge Brito Pereira, este último do “escritório de Proença de Carvalho”.», cite-se.

      No Observador, online.

      Legenda. E, como se vê, para além dos interesses de Pequim, também neste caso o DN está reduzido a exibir-se como um mero empregado de limpeza do sôtor Proença de Carvalho.

    • Luanda Leaks | O silêncio é ouro na política portuguesa
      DN, 22.1.2020

      vs.

      Angola | O tempo dos “intocáveis” está mesmo a passar à história?
      P., idem, pp. 2-5.

      A FORTUNA DE ISABEL DOS SANTOS | GOLPE MILIONÁRIO COM DIAMANTES
      CM, ibidem, pp. 4-7

      https://pbs.twimg.com/media/EO5fdFjWoAIT7uW?format=jpg&name=900×900

      Nota. Ou seja, hoje, para o DN o tópico #LuandaLeaks tem ainda menos importância (em baixo, à esquerda) do que um bom tweet sobre a Ana Gomes. Haja estômago, litros de #lixívia e pilim dos tipos chineses (e-e?) desembolsado pelo Proença de Carvalho.

      ____

      Adenda. Devidamente arrumado, aqui.

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