À espera de milagres

(Ricardo Paes Mamede, 24/12/2019)

A proposta de Orçamento de Estado (OE) para 2020 prevê um aumento de 0,3% nos salários da função pública. Prevê também uma inflação para Portugal de 1%. Isto significa que muitos funcionários públicos vão perder poder de compra. Outra vez. Será o 19º ano que isto acontece nos últimos 20.

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O governo diz que não é bem assim. Segundo o relatório do orçamento, em 2020 haverá promoções e progressões nas várias carreiras da função pública, traduzindo-se num aumento salarial médio de 3,2% (e numa despesa adicional de 715 milhões de euros) face a 2019.

No total, a factura salarial do Estado deverá aumentar 3,6% (mais do que o PIB nominal), devido às promoções e progressões, mas também ao reforço do número de funcionários do Estado. Por exemplo, foi anunciada a intenção recrutar mais 8.400 profissionais de saúde nos próximos dois anos e 1.000 trabalhadores qualificados para reforçar as competências da administração.

Um governo que faz crescer as despesas com salários da função pública em percentagem do PIB, que aumenta as remunerações médias dos seus trabalhadores, que descongela carreiras, que repõem direitos de progressão e que aumenta o número de funcionários em áreas-chave, dificilmente pode ser visto como inimigo do Estado e de quem nele trabalha.

No entanto, para a maioria dos funcionários públicos isto não é grande consolação. Percebe-se porquê. Nas últimas duas décadas a administração pública foi um dos alvos preferenciais (a par da lei laboral) das chamadas reformas estruturais. A preocupação central da generalidade das medidas tomadas pelos diferentes governos foi apenas uma: reduzir a despesa. Cortou-se a eito no número de funcionários (menos 50 mil desde 2005). Eliminaram-se estruturas e cargos dirigentes, muitas vezes sem justificação evidente. Criou-se um modelo de avaliação que deveria servir para estimular o desempenho, mas cujo principal resultado prático foi limitar o ritmo de progressões na carreira.

Tudo isto aconteceu antes que Paulo Portas, então vice-Primeiro Ministro, apresentasse em 2013 o seu famoso guião para a reforma do Estado. Não admira que já então não houvesse muito para propor, mesmo por quem sempre disse querer “racionalizar” o sector público.

Ou seja, nas últimas duas décadas quem trabalha para o Estado não se limitou a ver cair o seu salário real – nalguns casos em quase 20%. Teve também de lidar com uma instabilidade recorrente nos serviços, um aumento do volume de trabalho efectivo e a implementação de sistemas disfuncionais de gestão de pessoas. Tudo isto no seio de instituições cada vez mais envelhecidas e onde as pessoas se sentem muitas vezes tratadas como meras variáveis de ajustamento financeiro.

Por tudo isto, não é de esperar que a paz social reine na função pública em 2020, apesar dos vários sinais do governo de querer valorizar o papel do Estado. Os sindicatos argumentam, com razão, que o aumento dos salários médios anunciado no OE2020 traduz uma reposição apenas parcial de tudo o que os trabalhadores perderam na última década. Para muitos funcionários públicos – os que não serão abrangidos pelas progressões previstas – 2020 será mais um ano em que o salário cai em termos reais, tal como aconteceu em todos os anos excepto um desde a viragem do século. Para grande parte dos serviços, a falta de pessoal para responder às solicitações e a dificuldade em lidar com os desafios actuais com equipas cada vez mais envelhecidas, vai continuar a ser a norma.

Motivar as equipas que prestam serviços públicos nestas condições não é fácil. Mais difícil ainda é convencer jovens qualificados e competentes a abraçar uma carreira na função pública, face aos salários que se praticam e ao histórico de desconsideração pelos profissionais do Estado. À luz desta experiência, o argumento habitual sobre o privilégio de ser funcionário público – o de não correr riscos de despedimento – é cada vez menos decisivo.

Todos parecem querer ter um Estado mais moderno e eficaz. Nas actuais circunstâncias, consegui-lo seria quase um milagre. Aos governos não se pedem milagres. Mas podemos esperar que tenham noção dos desafios.

Economista e Professor do ISCTE


29 pensamentos sobre “À espera de milagres

  1. Um exemplo de como mesmo com as progressões se fica a ganhar menos do que há 10 anos. Sou professora com 25 anos de serviço, a minha última progressão foi em 2009 para o 3º escalão e por isso nessa altura o meu salário líquido ficou nuns 1430 euros. Em 2011 com o corte salarial de 3,5% aplicado ainda pelo Sócrates o aumento
    da subida de escalão desapareceu e voltamos a ganhar uns 1330 euros. Claro que veio a Troika e o Passos e foi ainda pior, muito pior. Mas a dita “recuperação salarial” que tem sido tão falada agora, não aconteceu, pois não voltei a ganhar os tais 1430 euros que ganhei inicialmente neste escalão (o que se desconta para a ADSE mais do que duplicou e a taxa de IRS é bem maior). Agora quando mudar de escalão para o 4.º, o salário ficará nos 1397 euros e só no 5.º escalão poderei vir a ganhar um salário de 1475 euros, mas para chegar a esse existem quotas e provavelmente não conseguirei progredir, terei de ir para uma lista à espera de vagas que são decididas anualmente pelo governo e onde já está mais gente à espera. Nem daqui a 4 anos voltarei ao nível salarial que já tive em 2009!

  2. Off.

    Da série “Grandes títulos da imprensa de hoje”

    #Tancos: Conselho de Estado autoriza António Costa a depor por escrito

    Nota. Sem surpresa, mas cito-me: «assessores de merda a escreverem uma resposta, lá está, de merda (cujo estilo merdoso já conhecemos)».

    https://www.publico.pt/2019/12/26/politica/noticia/tancos-conselho-estado-autoriza-depoimento-escrito-costa-1898538

    ______

    Nota da nota. Foge, menino, qu’a a seguir chega aí o esfereganço da pandilha dos tipos do costume: di Dieter Dellinguer, Calinhos, José do Remanso Pernalta, do Paulinho e doutros mamíferos assim, assados e cozidos.

  3. Os funcionários públicos têm direito ás devoluções.

    Mas esta avidez de querer tudo ao mesmo tempo ainda nos vai custar a todos muito caro, incluindo um regresso do PSD ao poder.

    Não foram só os funcionários p que perderam. Todos perdemos e o sector privado foi o que perdeu mais com centenas de milhares de despedimentos e emigração forçada.

    O governo já devolveu grande parte aos públicos e agora está a devolver em medida que beneficia a todos e não somente a um sector.

    O sector publico beneficia tanto como o privado das contínuas subidas do salário mínimo e das baixas do preço dos passes. Mas é natural que não chegue para tudo ao mesmo tempo.

    Ao quererem tudo só para si os funcionários, que já são um sector privilegiado arriscam-se a deitar tudo a perder. Para além de justificarem os esteriótipos da propaganda direitista.

      • Ou seja, temos todos d mostrar muita solidariedade com os funcionário públicos, mas os do privado que se fod… e que se queixem ao patrão.

        Para além de um “porreiraço” você é um génio da táctica.

        É o Passos que lhe paga para dar essa bonita imagem dos funcionários públicos?

        • Que raio quer que o estado, cujo governo concorda (e se não concordasse, era corrido) que o estado não mexe no privado, faça, exactamente? Cortar o IRS? Ops, lá se vão as contas certas e a cobertura do BCE. Que corte a TSU ou o IRC, a ver se chove alguma coisa para quem trabalha? Ah, espere, isso era dar razão ao Coelho. Manter a totalidade dos cortes nos ordenados as pensões? Ops, ditto. Bem, resta expulsar os não-nativos a ver se sobra emprego, como se isso resultasse nalgum lado.
          Tem razão, o génio da táctica é ser o imitador número 89423 do VPV e dizer que está tudo mal, sem notar o impacto da razia dos funcionários públicos que se puseram a andar.

          • Apenas disse que tem de chegar para todos e não apenas para alguns.

            Tomara à maior parte dos portugueses terem as condições da função pública. Um grupo privilegiado apresentar-se sempre como vítima dá má imagem ao resto que é muito mais maltratado.

            Semana de 35 horas, emprego seguro, progressão automática, ADSE, etc… O tuga médio se tivesse isso tudo considerava-se quase rico.

            O que o estado está agora a dar a todos também beneficia os FP, como baixas nos passes e subida do salário mínimo.

            Por favor não façam que volte o Passos Coelho…

            • Entre o Coelho e o Costa, a única diferença é a conjuntura internacional a disfarçar que a moeda não é viável – basta ver o nível de endividamento privado “estrutural”.
              A FP é tão priveligiada que nem médicos, nem professores arranja, e é melhor nem falar na progressão dos últimos.
              Se a melhor alternativa era nivelar tudo por baixo, estamos conversados sobre o modelo dos partidos responsáveis para o país, da solidariedade dos trabalhadores, e da crença na TINA.

              • A TINA manda que subidas do salário mínimo são blasfémia…

                E nivelar por baixo?

                Então você SABE que os FP têm muito melhor condições de vida que os restantes trabalhadores?

                Eu não quero nivelar por baixo, quero nivelar por cima. Mas isso implica melhorar as condições de vida dos trabalhadores do privado, não concentrar todos os meios nos FP e esquecer os que estão muito pior.

                • Repito, por isso é que os quadros superiores só ficam lá a fazer estágio, tal é a grande qualidade.
                  E continuo a perguntar, melhorar as condições dos trabalhadores é o quê, e o que é que isso tem a ver com Vieira da Silva?

  4. O Costa é igual ao Passos quando aumenta em 20% e ainda quer aumentar mais o salário mínimo que o Passos queria descer e alguns passistas já falavam em abolir?

    O fanatismo pode não matar, mas você é o exemplo vivo de que pode cegar.

    Vocês são extremamente perigosos porque como para vocês é tudo igual, tanto faz o Costa como o Passos.

    Tal como nos anos trinta para os comunistas era igual os social-democratas ou o Hitler, não hesitaram em derrubar os social-democratas possibilitando a subida do Hitler ao poder.

    É igual ao litro…

    • Claro que eram iguais, por isso é que os andavam a matar desde 1929.
      Mete uma coisa na cabeça, desde Bismark que só há progresso social graças ao medo de rebelião.

      • Portanto para si, Weimar defender a paz e a democracia é igual a Hitler exterminar os judeus e provocar uma guerra mundial.

        É também igual aumentar o salário mínimo ou tentar reduzi-lo.

        Uma coisa fica claro pela sua conversa.

        Os radicais de esquerda estão-se nas tintas para o povo, isto para vocês não passa de tentarem chegar ao poleiro-pote.

        Se para você é igual aumentar o salário mínimo ou reduzi-lo ou até aboli-lo, porque não o baixariam uma vez no poder?

        Pelo boca morre o peixe.

        Neste caso pelos dedinhos no teclado.

        • O partido comunista alemão andava a matar nazis enquanto o que restava da aristocracia e parte da burguesia andava preocupada com o seu bolso e prestígio, foi o que eu disse.
          Quanto a Portugal, há muito mais para as contas familiares do que o rendimento bruto, ou mesmo líquido. Para começar, a carga de impostos indirectos, bons ou maus, a desregulação laboral e financeira e por aí adiante.
          No caso de Costa, entra pelo ordenado, sai pelas taxas, impostos sobre o consumo, falta de regulação urbanística e sobre o preço das rendas, tempo perdido nos serviços públicos, sobrelotação de transportes – não que tudo seja necessariamente más escolhas, como a taxa sobre os sacos de plástico.
          Os números do endividamento privado em 2019 falam por si, e Costa sabe tão bem como eu que foi essa a causa do descalabro nacional na GFC. Por muitos amores que faça à união bancária e eu europlus, a receita alemã para o país será exactamente a mesma na próxima crise.

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