Coimbra – A homenagem a Antunes Varela

(Carlos Esperança, 21/12/2019)

Quando, em outubro de 2000, o presidente da Relação de Coimbra mandou recolocar o busto de Antunes Varela no Tribunal, desolado por ser um amigo e antigo colega de turma do liceu da Guarda, não deixei de gritar a minha indignação, nos jornais locais e num diário, contra o branqueamento da ditadura que o gesto representou.

Então, já o ancião Antunes Varela se tornara inócuo pela idade, sem que a vergonha e os remorsos lhe abreviassem os dias, mas foi o ministro da ditadura que se homenageou.

Agora, em 18 deste mês de dezembro senti revolta acrescida pelas palavras e, sobretudo, pela presença da ministra da Justiça, a elogiar o legado do professor que foi governante quando o cargo, ao contrário de hoje, lhe conferia ascendente, de facto, sobre os juízes.

Se um professor competente, como se alegou, merecia a homenagem, Salazar merece a estátua do tamanho da indignidade e dos crimes, e será breve a reabilitação.

O cúmulo foi atingido pelo presidente do S.T.J., a 4.ª figura do Estado, com palavras de devota saudade à «mente brilhante e multifacetada», que viu na homenagem um «claro testemunho da reconciliação e encontro de um país com a sua História». E continuou o panegírico ao ministro que manteve os Tribunais Plenários, enquanto mandava construir palácios da Justiça, numa época em que os processos só eram instruídos se o ministro o permitisse, com remoques aos ministros da democracia por, ao contrário dele, terem os edifícios em más condições.

Antunes Varela foi ministro da Justiça de agosto de 1954 a setembro de 1967, enquanto os juízes dos Tribunais Plenários deixavam agredir os presos na sala de audiências, sob aparente distração, e condenavam cidadãos por delitos de opinião a pesadas penas e medidas de segurança.

Não se terá lembrado o excelso presidente do STJ do assassinato de Humberto Delgado e do silêncio crapuloso de quem lhe merece tamanhos encómios? Terá esquecido o que foi o terror do governo de que fez parte? Sabe de alguma preocupação do ministro com as prisões arbitrárias, as medidas de segurança, as torturas nas prisões e o encobrimento dos crimes de altos dignitários? Antunes Varela pode ter sido mestre do Direito Civil, mas foi um almocreve dos Direitos Humanos e agente da repressão salazarista.

A homenagem foi microcirurgia reacionária e insulto aos democratas; não foi um gesto sem conteúdo político, foi a tentativa de branqueamento da ditadura; não é uma atitude anódina, é uma ofensa a todos aqueles que um Governo, que Antunes Varela integrou, prendeu, torturou, deportou ou assassinou. Uma homenagem a um ministro de Salazar é uma condenação dos que derrubaram a ditadura e uma censura aos que se bateram pelo regime democrático.

A insidiosa afronta, injustiça gratuita e intolerável ofensa do Presidente do STJ deixam a revolta cujas palavras calo, para não ser constituído arguido, mas temo a sua noção de Direitos Humanos, a indiferença perante um regime de terror e a pública admiração por um algoz.

Na deslocação a Coimbra, a ministra da Justiça esteve mal e o presidente do STJ pior. Cuspiram nas campas dos que morreram pela liberdade, exaltaram um cúmplice da ditadura.


21 pensamentos sobre “Coimbra – A homenagem a Antunes Varela

  1. É isto uma consequência do estilo ou modelo de sociedade que privilegia a leitura individual da história dos acontecimentos sociais em vez de respeitar a memória dos perseguidos e traídos enquanto sujeitos da história.

  2. Na classe política a memória centra-se no conveniente. O futuro cinge-se à escolha de uma notícia marcante para o telejornal; uma promessa ou um indicador favorável para o governo de turno, algo de degradante ou repugnante por parte da oposição, também de turno

    Nesse frenesi em que só conta o momento, obviamente as coisas ficam entregues à conveniência e à ignorância; elementos que balizam as cabecinhas dos avatares da classe política
    E daí resulta uma grande continuidade entre o regime fascista e o atual, pos-fascista; que se diferenciam pela ausência, no último de pide e tribunal plenário. E é essa continuidade que obriga ao branqueamento do perfil e da atuação desse tal antunes varela; e a continuidade funciona, de facto, como legitimação

    Não foi no consulado desse ente que conheci no Tribunal Plenário uns eminentes togados. Um, o Morgado Florindo, com o bigode muito estreito, cumpria o papel de presidente; o outro protagonista era um tal Saraiva que parecia ser o procurador ou algo assim. Limitavam-se a ler os quesitos acusatórios instruídos pela pide e a tomar na devida conta as afirmações da testemunha de acusação que… como é óbvio… era um pide que ÓBVIAMENTE tinha um conhecimento detalhado das atividades subversivas dos presos. E, entre nós (não recordo o nome do animal) era conhecido pelo “embrulho” dado ser esse o seu papel

    Particularmente, na carrinha de regresso a Caxias depois de uma das sessões do “julgamento” um pide deu-me uma tal bofetada que, duas horas depois, os dedos do animal ainda estavam marcados na minha cara. Como a bofetada me foi dada quando estava de costas, dei institivamente um salto e fiquei de pé, dando com o mesmo pide a tirar a pistola do bolso

    Causa: desobedeci à ordem da pide e, à saída da Boa Hora, dentro da carrinha mandei beijinhos e umas palavras de despedida à minha mãe.

    Na sessão tribunaleira da tarde, o meu advogado relatou o acontecimento e o Morgado apontou para os pides que estavam na sala perguntando se estava ali o agressor. Claro que não estava, nem eu sabia o nome da besta

    Depois do 25 ainda procurei reconhecer o animal pelas fotos dos pides mas não o pude identificar. Só está identificado na minha memória

    Para que saibam

  3. Bem.

    Isto é complicado.

    O Saramago também defendeu uma ditadura muito mais sangrenta que o nosso salazarismo e não é por isso que vamos deixar de o homenagear.

  4. (…) Sr. Pedro … (com todo o respeito pela sua liberdade de expressão), mas ao afirmar sobre Saramago o que afirma, é evidente que é a ignorância atrevida a produzir boçalidades.

    Eles … os saudosistas, tralha humana (alguns) privilegiados, outros imbecis, andam por aí. E com beneplácito da Democracia conquistada, por aqueles que se facto lutaram pela liberdade, não perdem a oportunidade de defender, dos modos mais diversos, o Antigo regime de Salazar.

    • Caro Blasco.

      Acho que devia estudar um pouco de história antes de dizer parvoices.

      Eu não sou salazarista, mas toda a gente sabe que o comunismo assassinou dezenas de milhões enquanto o salazarismo assassinou no máximo uns milhares, guerra colonial incluida. Apesar de tudo há uma diferença substancial.

      Se lhe são indiferentes as dezenas de milhões de não comunistas assassinados, ao menos pense nos milhares de comunistas assassinados pelos seus próprios camaradas, coisa que seria impensável no salazarismo.

      • Algo importante numa discussão como a que vem ocorrendo aqui é a precisão dos conceitos que nada tem a ver com o que os media por aí emanam

        O comunismo é o “movimento real que abole o estado atual” (v. Dictionnaire critique du marxisme”

        Designar os antigos países ditos comunistas como tal é um erro imenso. Esses países baseavam-se numa economia bastante nacionalizada e não coletivizada, uma vez que o domínio pertencia ao partido que assumia para os seus quadros a função de gestores da economia e da sociedade; com o afastamento para a subalternidade todos os que não pertenciam ao partido único e para o desterro ou cemitério os que se lhe opunham.

        Assim, na URSS e afins vivia-se um capitalismo de estado que se foi consolidando a partir da abolição dos comités de fábrica e dos sovietes, logo nos primeiros anos depois de Outubro/1917. Foram seus artífices Lenin e Trotsky que tiveram um digno sucessor em Stalin, tanto nessa criação, como nos assassínios em massa (Kronstadt, Ucrânia, nomeadamente).

        A Comuna de Paris foi uma efémera tentativa de real criação de um comunismo

        Assim, surge a confusão entre comunismo e partidos comunistas ou trotskistas (que para simplificar designo por trotsko-estalinistas), uma vez que defendem e praticam estruturas fortemente hierarquizadas, verticais, autoritárias, com um aparelho de Estado enorme e intratável, ao arrepio de qualquer decisão democrática, distinguindo-se sobretudo pelo santo que colocam no altar – tudo isto é completamente oposto ao que é o comunismo.

        Como as designações não têm direitos de autor, está lançada a confusão. Na China o PCC é a espinha dorsal do poder, sendo evidente que há um modelo de desenvolvimento capitalista em curso; na Rússia vive-se uma situação diferente pois nem sequer há um PC condutor mas uma oligarquia tradicional

        Os PC’s ainda existentes e os híbridos que não se designam como tal (BE, Podemos) apresentam programas de caráter social-democrático que em nada colocam em causa o capitalismo; empurrando para uma direita neoliberal típica os PS’s que já nada têm de sociais -democratas

        Resumindo, há uma evolução social, económica e política que não se reflete nas designações partidárias. E que exige uma precisão dos conceitos para que não contribuamos para um discurso que mais parece uma sopa de letras

        Bom ano para todos

        Vítor Lima

        • Pode ser que seja assim e então quase nunca existiram comunistas. Embora o fim da propriedade privada dos meios de produção seja também um factor a ter em conta…

          De qualquer modo o que diz não conta para a discussão porque pessoas como Saramago defendem esse tal de “capitalismo de estado” leninista ou até estalinista.

          Ora, se podemos homenagear esses…

          • Como ateu profundo e blasfemo, não venero santos, sejam de pau carunchoso sejam de carne e osso; mesmo que à minha volta haja crentes neste ou naquele

            Saramago escreveu livros fabulosos – Memorial do Convento ou Ensaio sobre a Cegueira, por exemplo mas não é santo.

            Um exemplo. Em 1975 vivia-se um ambiente de terror no Diário de Notícias onde Saramago era subdiretor. Num plenário, por exemplo, um tipo de nome Adão – um caso típico de reciclagem rápida de reacionário em PC – não se conteve em esmurrar um tal Mendes, que andava com um emblema do PS na lapela

            Eu pertencia ao Conselho Fiscal, indicado pelos trabalhadores em 1974 para vigiar as trafulhices da administração; e, nesse âmbito consegui que os trabalhadores tivessem subsídio de natal depois de descobrir um “pagamento” de 10000 contos registado dia 31/12/74 à acionista maioritária à moageira Portugal e Colónias. Que não correspondia a qualquer serviço prestado, como é óbvio

            Por esse motivo, embora maoista independente, os PC’s dominantes tinham-me algum respeito e só fui destituido após o golpe de 25 de Novembro pelo regime pós-fascista nascente

            Os verdadeiros comunistas hoje são alguns grupos anarquistas. O resto é apropriação indevida e denegrimento do conceito de comunismo; tal como durante o PREC qualquer não PC era fascista ou “fazia o jogo da reação”. Ler Bakhunin talvez seja esclarecedor

            bom ano
            Vítor Lima

    • Caro Blasco.

      Acho que devia estudar um pouco de história antes de dizer parvoices.

      Eu não sou salazarista mas toda a gente sabe que o comunismo assassinou dezenas de milhões de pessoas enquanto o salazarismo assassinou no máximo uns milhares, guerra colonial incluida. Apesar de tudo há uma diferença substancial.

      Se lhe são indiferentes as dezenas de milhões de não comunistas assassinados, ao menos pense nos milhares de comunistas assassinados pelos seus próprios camaradas, coisa que seria impensável no salazarismo.

      • Acho que o Pedro devia ir estudar um pouco de história e ver de onde vem esse número disparatado. Mas se concorda na mesma, pela mesma ordem de raciocínio, a culpa da grande fome na Irlanda e na Índia foram culpa do capitalismo, bem como o trilho de lágrimas e a escravatura negra. Não me parece que fique a ganhar.

          • Deixe lá que o comunismo também tem as mãos bem sujas no apoio a Hitler.

            Começou logo em fazer uma frente comum de facto com os nazis para derrubar a República de Weimar.

            Tal como a nossa inteligente esquerda ajudou o Passos a subir ao poder ajudando a derrubar o sócas, assim Estaline definiu os social democratas alemães e não os nazis como inimigo principal. O brilhante resultado foi a subida de Hitler ao poder…

            Depois o pacto nazi-soviético que permitiu a Hitler começar a II GM sem ser esmagado em dez minutos.

            Esse pacto implicou anda o fornecimento de matérias primas estratégicas indispensáveis para o Reich se manter em guerra e ordens aos aparelhos comunistas dos outros países, inclusive os ocupados para colaborarem com os nazis.

            Um dos resultados foi o Hitler poder preparar calmamente a invasão da união soviética… Com o apoio da união soviética! Brilhante…
            Bem podem limpar as mãos á parede…

            • O KPD andava a matar nazis desde 1929, é uma frente do caraças.

              > Depois o pacto nazi-soviético que permitiu a Hitler começar a II GM sem ser esmagado em dez minutos.

              Não há nenhuma razão para acreditar que a USSR estava mais preparada em 1939 do que a Alemanha, muito pelo contrário. Basta ver o contacto do desactualizado plano Barbarosa com a realidade de 1941.

              • – O KPD matava mais social democratas que nazis.

                Desde o inicio da república democrática, ainda antes de haver nazis, que fez tudo para a derrubar, a começar pela luta armada.

                Foi isso que desestabilizou a democracia e mais tarde permitiu a Hitler subir ao poder.

                Mais tarde, nos anos 20 o KPD declarou mesmo que o inimigo principal era a social democracia.

                Numa época em que era absolutamente necessário uma frente comum contra o nazismo o alvo principal dos comunistas eram os social democratas e o seu principal objectivo foi sempre derrubar a democracia.

                Combater o nazismo nunca foi uma prioridade, era um side show.

                Por vezes até suspenderam hostilidades e alinharam com os nazis em greves e iniciativas parlamentares para desestabilizar o regime democrático.

                – Em 39 a URSS não precisava de estar mais preparada que a Alemanha.

                Bastava-lhe não se ter aliado com a Alemanha que provavelmente Hitler não teria chegado a atacar a Polónia, com medo da guerra em duas frentes.

                Hitler nunca teria lançado uma “Barbarossa” em 39 com os exércitos franco-britânicos estacionados na sua fronteira oeste.

        • Esse número “disparatado” é aceite pela maior parte dos historiadores, inclusive de esquerda.

          E eu não nego os crimes do capitalismo. Já você parece querer negar os do capitalismo.

          De qualquer modo se os dois lados têm as mãos sujas, porque é que podemos homenagear uns e outros já não?

            • Não tenho problema nenhum em aceitar os crimes do capitalismo no geral.

              Apenas peço que aceitem os “outros” aceitem os evidentes crimes do comunismo também.

              No que a esta conversa diz respeito Saramago era apoiante do PCP, que defendia e defende ditaduras de esquerda que fazem o Salazar parecer um inocente menino de coro em comparação.

              Se o podemos (e devemos) homenagear, porque não o podemos fazer a um salazarento qualquer que o mereça?

              • Apenas apontei que a causa-efeito é, como quase sempre, mais complicada. O dito cujo não conheço, outros saberão melhor, e o PCP fazia bem em não defender a URSS e a Coreia do Norte, coisa que não me lembro de fazer desde que posso votar (meia vida atrás).

  5. É vergonhoso que um ministro da justiça de um governo dito socialista se preste a esta vergonha… miserável. Sem desculpa possível em nome de todos os que foram presos torturados e morreram no tempo deste “brilhante” fascista!!!!

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