(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 21/12/2019)

Toda a discussão no espaço público está acidificada, contaminada, envenenada. Não se trata da velha querela esquerda contra direita e sim de múltiplas querelas entre tribos cuja única razão é instrumental, prática nos objetivos, baixa nos sujeitos e objetos. Era inevitável que, sendo a discussão pública o palco onde predominam as emoções, estas acabassem por servir de esconderijo onde se acoitam o insulto, o sadismo, o voyeurismo, o rancor, o ódio, a mesquinhez.
Houve um tempo em que a política não era um jogo de futebol entre vencedores e vencidos. E o jornalismo tão-pouco costumava ser tribal. Para aqueles que sonhavam com um país, o nosso, livre do chamado populismo, um nome geral para o nacionalismo, a xenofobia, o pessimismo, a crueldade e a boçalidade, para a ignorância, o narcisismo e o justicialismo, para aqueles que insistiam na teoria do oásis chegou a hora da verdade. O nosso oásis é e foi, evidentemente, uma miragem no deserto. O populismo está no meio de nós.
Estas eleições no Reino Unido servem, numa democracia que julgávamos o menos imperfeito de todos os sistemas, na definição churchilliana, de canário na mina. Não foi apenas o referendo sobre o ‘Brexit’ que acionou uma das guerras mais acesas entre partidos e instituições a que pudemos assistir nas últimas décadas, destruidora da civilidade e do tradicional fair play britânico, destruidora das bases do liberalismo à inglesa. Assistimos a toda a espécie de tropelias e mentiras induzidas pelas redes sociais, de falsificações produzidas pela indústria de trolls e fake news, pelos mecanismos de manipulação de resultados, vindos de atores nacionais e estrangeiros, assistimos a um assassínio físico e político da deputada do Partido Trabalhista Jo Cox e à utilização da sua figura como projeção simbólica dos antagonismos, sem respeito pelo cadáver, assistimos a um Parlamento em Westminster em guerra com o 10 de Downing Street, assistimos a sucessivas sessões parlamentares num alvoroço infantil, assistimos a chefes políticos banhados na luz da sua iniquidade, assistimos a um candidato a primeiro-ministro e ‘brexiteiro’ convicto na aparência de que, enquanto jornalista, tinha dois textos preparados para publicação, um a defender o ‘Brexit’ e outro a atacar o ‘Brexit’. Sabemos que a escolha foi ditada por oportunismo e ambição política tingidos de falta de escrúpulos, sabemos também que a história é escrita pelos vencedores. A mesma personagem é agora incensada como salvador da pátria.
Quanto às tribos da esquerda e da direita, os jornais emularam os seus piores tiques e impaciência, as suas vulgaridades e acusações. O jornalismo sério está a ser sugado pelo imediatismo sensacionalista e sentimental das redes, depois de durante um século ter sido o contraponto democrático do imediatismo sensacionalista e sentimental dos tabloides. As regras do jogo começaram a ser mudadas irreversivelmente pelo senhor Rupert Murdoch, mas foram o senhor Zuckerberg, os senhores Larry Paige e Sergey Brin e o senhor Jack Dorsey que completaram a tarefa e excederam as expectativas. Jornalistas sérios que acabam de fazer um programa sério a discutir os malefícios do Facebook e do Twitter, numa indignação piedosa, acabam esse programa a soletrar: e não se esqueçam de me seguir no Facebook e no Twitter. Passaram a ser os locutores da própria morte anunciada.
Quando o primeiro canário entrou na mina, morreu logo. A eleição de Trump, e o desfile de infâmia e ridículo, termina agora um primeiro ciclo de poder. Trump tornou-se, como Thanos de “Os Vingadores”, inevitável. Ele mesmo assim se deixou caricaturar. A campanha de reeleição sobrepôs a cabeça de Thanos na sua. E não ficou por aqui. Publicou nas redes a fotografia montada da cabeça de Trump no corpo de Greta Thunberg, que lhe arrebanhou o troféu de Figura do Ano da “Time”. Abespinhado, Trump sobrepôs a sua inevitabilidade à inevitabilidade das alterações climáticas. Os zelotas elogiaram o sentido de humor. Na segunda metade do século XX, o da política como capítulo da moral, na frase de Sophia de Mello Breyner, esta atitude configuraria o ostracismo. Hoje, é uma coroa de louros. A política personalizou-se e aviltou-se.
Assim vivemos. Vendo um jornal como “The Guardian” publicar e atacar as peúgas folclóricas e esburacadas de Boris Johnson, uma arma política nova, e vendo nos jornais conservadores ataques a Jeremy Corbyn que reproduzem falsas acusações de terrorismo e um rancor visceral e classista. Quem diria que o velho tinha tanto sangue dentro dele, diz-se no “Macbeth”. Quem diria que as massas tinham dentro delas tanto rancor e ódio.
Enquanto Boris ensaia a volta vitoriosa da arena e enquanto Jeremy Corbyn recusa demitir-se e ceder o controle da sucessão em nome da “reflexão interna”, os eleitores sérios sabem que foram obrigados a escolher entre dois males. Não foram os programas políticos que os separaram e sim a guerra de slogans e de propagandas. A neutralidade de Corbyn contra a mensagem única de Johnson, perpetrada por Dominic Cummings, o Steve Bannon particular e estrategista reconhecido como avatar de Iago. ‘Le’s Get Brexit Done’ contra ‘Brexit Tanto Faz’.
E nós por cá? Todos bem? Longe disso. Esta semana, com a volúpia com que em Portugal se assassinam mulheres com poder, mesmo um poder diminuto, vigiado e relativo, assisti a um dos espetáculos mais confrangedores e anunciadores da morte do jornalismo e do triunfo do populismo. Maria Flor Pedroso, jornalista que não conheço pessoalmente, de quem não sou amiga e com quem nunca trabalhei, foi despedaçada pelos lobos da moralidade vigente. Cometeu pelo menos dois crimes imperdoáveis. Um, o de ser filha do padrasto do primeiro-ministro, e não prima, ao contrário do que se atordoou. Outro, o de ter, errada e inadvertidamente, e disso se retratou, interferido numa reportagem de uma jornalista da estação. A acusadora lançou-se num combate sem tréguas contra a sua diretora, acrescentado com outros dois crimes: a “censura” de uma notícia sobre a TAP e de uma reportagem sobre o lítio. Quod erat demonstrandum. Instalada a cizânia, imediatamente se lavrou sentença de morte da diretora de informação da RTP, sem direito a defesa e apesar do reconhecimento do erro praticado. Dezenas de anos de reputação foram imolados em minutos. Maria Flor Pedroso passou de diretora em exercício dos poderes de direção a comissária política ao serviço do “primo”, nomeada para baixos serviços. Nas redes e no esgoto das caixas de comentários, que me dei ao trabalho de ler para poder perceber o sentimento da plebe clamando por justiça, a jornalista ficou à mercê do vitríolo e foi sentenciada pelo crime de “socialismo” por afinidade. Estranhamente, o Conselho de Administração da RTP elogiou o seu trabalho “sério, respeitável e instrutivo” e a seguir aceitou a demissão da direção de informação em peso, constituída por jornalistas com sólida reputação.
As mãos lavadas de Pôncio Pilatos.
E, a seguir, lava as mãos CFA de apresentar soluções. Minto, diz que faltam “reformas estruturais” (e mais subsídios para as suas agremiações, pois claro), que é como quem diz, mais precariedade, afastando a analfabeta plebe de tal elite responsável.
VPV já há muitos.