Corrupção do sistema

(Virgínia da Silva Veiga, 20/12/2019)

Faria Costa

Faria Costa, ex-Provedor de Justiça e professor catedrático de Direito Penal, que se desconhece se será um dos “académicos” convidados pelo governo a integrar a comissão de revisão de normas penais, prestou breves declarações sobre a delação premiada à Rádio Renascença. Transcreve-se em baixo o diálogo com o jornalista Pedro Mesquita.

A generalidade dos cidadãos teme que a produção de prova em direito penal passe a conceder favores e prémios a troco de denúncias resvalando para um sistema que a Democracia baniu, aumentado, dessa forma os poderes do Ministério Público sobre cidadãos e decisões.

Importa reter a denúncia de crimes e a colaboração com a Justiça já existir, ser a delação premiada um novo meio de produção de prova, o qual contende com alicerces do sistema e abre um precedente sem retorno expectável. Uma escolha, um começo de que se desconhece o fim, até por se não saber quem mandará em Portugal amanhã, quem serão os executores, se o país alterar a filosofia dos últimos anos.

Ora, leia-se o tal diálogo radiofónico:

“Faria e Costa – Colaboração premiada é um eufemismo muito típico dos portugueses que quando querem dulcificar uma determinada situação encontram sempre uma palavra mais adequada, portanto, em vez de delação falam em colaboração. Respondendo à sua questão em termos muito simples, em termos de rádio e em termos de comunicação social é sempre perigosíssimo nós simplificarmos, mas, eu posso dizer é que uma sociedade democrática, verdadeiramente viva, real e interventiva, defende claramente a ideia de não aceitarmos a delação premiada.

Pedro Mesquita – Mas porque é que não concorda com a delação premiada, senhor doutor?

FC – Porque a delação premiada é, indiscutivelmente, uma forma de aceitar que o Estado, que deve ser uma pessoa de bem, aceite formas enviesadas da procura e da investigação criminal. A investigação criminal é uma coisa muito séria! E a investigação criminal não tem que ser baseada em formas de corrupção ética. Porque a delação premiada não é mais que uma forma de corrupção ética. Ela própria é uma ideia de corrupção.

PM – Mas a possibilidade de um corrupto ou um grande corrupto ficar em liberdade porque se não escuta essa informação que chega de uma forma mais ou menos enviesada, não seria aceitável?

FC – Desculpe, é a velha questão. Eu prefiro, enquanto democrata – pode ter outra opinião o meu querido amigo…

PM – Eu não tenho opinião sobre o assunto, estou-lhe a perguntar…

FC – Mas, deve ter! Deve ter! Não obstante ser jornalista, deve ter! Relativamente a isso é a velha máxima de um Direito Penal Liberal: eu prefiro ter um criminoso à solta do que ter, verdadeiramente, um inocente punido. Esta é uma máxima!

PM – Quando existe uma denúncia obtida de forma ilegal e surge uma suspeita perante um terceiro, independentemente de se usar ou não essas supostas provas conseguidas de forma ilegal, não deveria abrir-se uma investigação personalizada?

FC – Isso é uma proibição de prova. Isso é mais um exemplo que está a dar, um caso de proibição de prova. Ou seja, as sociedades democráticas têm regras. Ou seja, se vamos, de passo em passo, destruindo constantemente as estruturas fundamentais de um Direito Penal Liberal, onde é que chegamos? Daqui a pouco, com toda a sinceridade, começa-se a dizer porque não pequenos actos de tortura? Porque não? Porque é que o polígrafo não é permitido em Portugal? Precisamente, em defesa da dignidade da pessoa humana, sendo certo que o polígrafo pode ser um instrumento altamente indiciante. Quer dizer, estas coisas estão todas ligadas: ou aceitamos um Direito Penal Liberal ou, pura e simplesmente, aceitamos um Direito Penal Securitário.“

Leiam-se ou ouçam-se estas palavras e desça-se – ou suba-se – ao fundo de uma questão que não se traduz numa simples medida, é uma escolha do que queremos para Portugal como alicerce de um caminho inverso ao que se trilhou nas últimas décadas. Tudo começa pelo princípio. Os Princípios Penais também.

Um pensamento sobre “Corrupção do sistema

  1. Não se podia explicar melhor quais as intenções de quem quer continuar no poder sem se denunciar e ter de ser escrutinado! Os cidadãos que tudo questionam talvez saibam quem poderá estar por detrás desta “moda”.

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