(Francisco Louça, in Expresso Diário, 29/10/2019)
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Alguém esperaria que o primeiro discurso do primeiro-ministro depois da tomada de posse fosse contra os seus parceiros dos últimos quatro anos? Pois foi mesmo. Quem assistiu à campanha eleitoral contra os “empecilhos” pode não se surpreender, mas este tom começa a ser demasiadamente pessoal, pois passadas as eleições não tem trambelho político. Mesmo assim, não seria de esperar que o primeiro-ministro escolhesse tal mensagem para o seu primeiro ato público depois da posse. Não falou ao país sobre os seus desafios nos quatro anos, sobre os rendimentos e o acordo com as associações patronais, ou sobre os eventuais planos de recuperação dos serviços públicos, ou sobre a folga para o investimento, ou sobre o Brexit, sobre a Comissão Europeia e o novo quadro de financiamento comunitário. Falou antes sobre o seu próprio poder, com um ultimato em tom rosa: quem obedece que se junte. Costa, que é um dos mais capazes primeiros-ministros das últimas décadas, aceitou assim encurralar-se num eterno ajuste de contas que já o prejudicou na campanha eleitoral, mas de que parece não querer prescindir.
Há no entanto uma mensagem em tudo isto: apesar de o povo português lhes ter recusado a maioria absoluta que parecia consolidada no início da campanha eleitoral, durante a qual o PS terá baixado de 42% para 37% em menos de duas semanas, os seus dirigentes, demonstrando incómodo com os resultados, exigem governar como se tivesse obtido esse fatídico poder absoluto.
A alternativa era cumprir o que o primeiro-ministro prometeu no domingo das eleições, abrindo um processo de negociação em vários formatos com os partidos de esquerda, mas as conversações foram interrompidas menos de um dia depois do seu início, com a explicação de que o PS abandonava a procura de um acordo para a legislatura.
Bem sei que este discurso mobilizou uma sintonia com o PS das profundezas, arrependido dos quatro anos em que a maioria se baseava em acordos com a esquerda e ansioso por se livrar desse compromisso, e que adora ver brandido o temor da “ingovernabilidade”. Para a definição das condições da sucessão na liderança do PS, esse movimento é pensado para realinhar as forças e condicionar a experiência do segundo Governo Costa. Mas convenhamos que a eleição de um Parlamento é um pouco mais importante do que montar a coreografia de um partido.
Claro que, como o vício faz sempre uma homenagem à virtude, todo o movimento é encenado com juras de amor aos acordos de 2015. Só que, para que essa jura pareça verdadeira, é preciso maquilhar a realidade da geringonça. Tudo se baseia, como é bom de ver, na ingénua afirmação de que tudo continua igual porque, afinal de contas, uma acordo escrito já era dispensável em 2015 e só existiu por ter sido imposto pelo então Presidente Cavaco Silva, pelo que agora se pode viver sem o tal papelucho e na paz do Senhor.
Esta construção é duplamente falsa. Em primeiro lugar, não houve só um papelucho, e já volto a ele. Houve além disso grupos de trabalho constituídos formalmente entre o Bloco, o PS e o Governo, para trabalharem soluções para o fisco, segurança social, precariedade, restruturação da dívida pública e outros temas, que fizeram relatórios, recomendações e propostas de políticas. Chegaram a ser organizadas reuniões semanais de coordenação parlamentar. Houve contactos permanentes a todos os níveis. Os orçamentos chegaram a ser preparados com vários meses de antecedência. Só que o PS rejeita agora todas e cada uma dessas formas de trabalho. Não aceita nenhuma.
A geringonça era um compromisso sólido para objetivos para quatro anos e uma forma de trabalhar para os conseguir. Foi a isso que o PS fez o funeral, pois queria uma maioria absoluta para acabar com ela e, sem a ter, acabou agora com qualquer dos formatos em que essa cooperação se organizava. Não deixou pedra sobre pedra.
Em segundo lugar, o argumento segundo o qual só houve acordo escrito em 2015 por Cavaco Silva, então Presidente, o ter exigido, é um interessante jogo político. Bem sei que há vários autores desta interpretação. Aparentemente, o PCP acha que esta versão lhe serve e terá mesmo sido o seu promotor, pela simples razão de que não queria repetir o acordo em 2019. Apesar dessa escolha, duvido que isto lhe convenha, porque há um preço elevado a pagar, que é sugerir que tinha então tanta confiança no PS que palavra de escuteiro bastava, o que permite então pensar que agora tudo poderia continuar igual. A consequência é que qualquer discurso contra a política do Governo Costa, que aliás acusa episodicamente de ser de “direita”, parece deslocada na boca de dirigentes que, ao mesmo tempo, lhe fazem promessas de confiança cavalheiresca. Mas esta reconstrução da história das negociações de 2015 serve antes de mais ao PS, que quer a todo o custo evitar qualquer novo compromisso programático para quatro anos e, ao mesmo tempo, pretende fingir que esse entendimento sobrevive, assim a modos que espiritualmente.
É certo que o então Presidente exigiu esse acordo escrito e o facto dá muito jeito para a narrativa atual. Mas não tinha poderes para o delimitar, pelo que o acordo podia ser tanto uma mera declaração como o que veio a ser, um mapa de medidas e regras de trabalho (e não foi o Presidente quem exigiu grupos de trabalho permanentes para avançar nos temas mais difíceis da governação, ou foi?). Além disso, esse acordo era exigido pelo menos por um dos parceiros da negociação. Não tivesse Cavaco Silva exigido o acordo, ele tinha mesmo de ser negociado e assinado. A experiência, aliás, demonstrou como foi fundamental que houvesse um contrato escrito, nomeadamente quando o PS tentou violá-lo na letra e na forma ao conceder ao patronato uma redução da prestação da TSU, no que foi forçado a recuar. Digo mesmo mais: o contrato escrito é a norma da relação política entre partidos que se respeitam e que respeitam o eleitorado. Um pseudo-acordo verbal, misterioso e não comunicado à opinião pública, será sempre um artifício mais característico de arranjos entre oligarquias do que entre forças democráticas. Aliás, o primeiro-ministro, que como sempre dispara o seu ataque contra o Bloco, sugere em permanência que com o PCP encontrou um modus vivendi que lhe convém, uma espécie de acordo que seria suficiente para lhe dar a tal “governabilidade”, ou seja, a garantia de voto. Assim, cada partido conta uma história diferente e aceita um pacto de silêncio sobre a diferença entre elas: o PCP diz que não quer papel porque decidirá dia a dia, o PS sugere que não há papel porque obteve uma promessa selada de obediência (eles “já se juntaram”, na pitoresca expressão do primeiro-ministro no fim de semana). Percebe-se quem fica a ganhar com esta encenação. Como já argumentei, creio que esta abordagem é uma forma de atacar o PCP e tem tido resultado. Nunca houve um dirigente do PS que fosse tão eficaz e meticuloso no ataque ao PCP.
Depois do dia do debate do programa do Governo vem o dia seguinte, que é o que conta: e o que se vai fazer com as urgências dos hospitais? E com as famílias que em Lisboa gastam 58% do seu rendimento médio na compra de habitação, ou outro tanto noutras cidades? E com os €1,3 mil milhões de impostos perdidos numa década com as fugas de capitais para offshores? E com os €600 milhões de benefícios fiscais perdidos com os afortunados pensionistas nórdicos que não pagam IRS?
A encenação em torno de um detalhe do programa de Governo bem ilustra todas estas manobras, com alguma imprensa a reproduzir gulosamente o spin dos assessores do PS, segundo o qual o Governo integrou carinhosamente os “pontos de vista” da esquerda no programa, ou até se “aproximou” dessa esquerda com quem não quis qualquer trato. O facto é que, matreiramente, o PS tinha incluído no seu programa a sua persistente proposta de círculos uninominais, com o único objetivo de depois a retirar para fingir uma cedência aos partidos de esquerda, simulando assim uma convergência. Nem o PS levava a sério essa sua proposta (se o fizesse tinha-a detalhado, para evitar a constatação evidente de que, com um puro sistema uninominal, alcançaria com os seus 37% de votos mais de dois terços dos lugares no Parlamento, ou seja, uma fraude), nem os partidos de esquerda deveriam dar algum relevo a esse jogo. A colocação dessa proposta no programa e a sua conveniente retirada é uma marosca a que deve ser reconhecida a graça de uma marosca e não mais. Ao retirar tal proposta que só existia para cair, o PS está, pelo contrário, a demonstrar que entende que pode substituir o trabalho cuidadoso para compromissos por quatro anos pela prestidigitação com umas frases avulsas acerca de projetos inviáveis de manipulação eleitoral. Nesse mundo de manobras, tudo é fácil.
Ora, como o Expresso não deixou de assinalar, o programa do Governo é o do PS com pouco menos e pouco mais. Nas questões em que é necessária uma maioria consistente com projetos sociais, na habitação, na gestão do sistema de saúde ou no investimento público, o programa do Governo nada diz, a não ser generalidades, e o PS nem quis conversa com quem quer que seja, pela simples razão de que não sabe o que vai fazer e só sabe que não quer que a esquerda esteja em posição de negociar medidas.
Só que, com franqueza, isto é muito curtinho. Depois do dia do debate do programa do Governo vem o dia seguinte, que é o que conta: e o que se vai fazer com as urgências dos hospitais? E com as famílias que em Lisboa gastam 58% do seu rendimento médio na compra de habitação, ou outro tanto noutras cidades? E com os 1,3 mil milhões de euros de impostos perdidos numa década com as fugas de capitais para offshores? E com os 600 milhões de euros de benefícios fiscais perdidos com os afortunados pensionistas nórdicos que não pagam IRS? Não creio que algo disto se resolva com círculos uninominais ou sequer com o seu virtuoso desvanecimento.
Pois é, depois deste curto tempo de ressaca, talvez seja tempo de estratégias e medidas a serem discutidas com realismo, como deve ser, e não simulando engenhocas inexistentes.
Autêntico palhaço!!!
Zeca: há gente assim. Nos States chamam-se tiny, acho.
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Nota. Entretanto, toma lá isto qu’é à borla. Eduardo Cintra Torres no CM, por cortesia do Plúvio, hard…
[…]
Finalmente, Eduardo Cintra Torres: «[…] E há Artur Silva, o eterno pedinchão de subsídios, contratos e tachos. […] Tudo legal. Tal como a sua ministra, pode recomprar no dia em que sair do governo. Controlando o orçamento da Cultura, já há vermes arrastando-se para o Palácio da Ajuda. […]»
“De familygate a businessgate” | CM, 27.Out.2019
https://app.box.com/s/ka8dr98sa3fe1z7s0ky193dppqektapu
A Estátua do Mal que já disparou tiros na nuca do Eixo de Sal por causa do Artur Silva continua a metralhar para matar o homem! Compreende se o incomodo do RFC!
Nota. Mas que converseta mais apaneleirada outra vrz, ó pázinho!
O Governo da República, procura naturalmente não ter as mãos com ataduras. Ouvir é dialogar com todos, será uma boa norma.
Está no seu direito, desde que nos poupem os discursos de calimero, o que, tendo em conta o trauma socrático, parece pouco provável.
Creio que, apesar do quadro algo pessimista aqui esboçado pelo autor do artigo, o governo vai cumprir a legislatura. O BE e o PCP saberão encontrar o ponto de equilíbrio entre a realidade concreta do país e a salvaguarda dos seus interesses partidários. Até porque sabem que agora o extremismo da direita está à espera de oportunidade para lançar setas contra o regime.
“[…] sabem que agora o extremismo da direita está à espera […]”
… chama-se Democracia, exercida através de sufrágio universal aberto a todos os cidadãos com capacidade eleitoral e cujos resultados – com excepção dos votos da imigração – não sofreram contestação.
(O que se pretende realçar é que a demonização das opiniões que não se revêem no “mainstream” tem um amplo suporte histórico de ser contraproducente; enquanto todas as partes conservarem a equanimidade, será sempre preferível que a justeza das decisões resulte da apreciação ponderada das propostas apresentadas.)
«[…] votos da emigração […]» (as minhas desculpas.)