O senhor mil milhões

(Francisco Louçã, in Expresso, 18/05/2019)

Francisco Louçã

(Os meus parabéns a meia-haste ao Louçã, pelos três temas que aborda neste artigo. São os berardos-comendadores que vem já do tempo do Eça e por ele retratados com finura de mestre; são os artifícios – legais ou não -, a que, de forma subterrânea, grandes interesses privados recorrem para fazer vergar o Estado tornando-o numa espécie de cobrador de dízimos que depois lhes entrega, limpinhos e sem osso. É o caso dos tais activos por impostos diferidos para a Banca – um ROUBO a céu aberto aos contribuintes -, e das rendas excessivas da energia, outro ROUBO mas mais em céu nublado…

Assim sendo, qual a razão para parabéns só a meia-haste? É que há um denominador comum que enlaça os três casos e que Louçã nunca refere no seu artigo: chama-se “capitalismo”. Sim, “capitalismo” é um sistema económico de organização das sociedades onde os três casos referidos são triviais, fazendo parte da natureza íntima do sistema. Não dizer isso é ficar pela crítica dos epifenómenos sem se criticar a causa última que os determina.

Está na moda esta ausência de crítica sistémica. Até parece que o capitalismo já não existe – não passando de uma invenção de Karl Marx -, tendo morrido em 14 de Março de 1883, data da morte do mesmo Marx.

Comentário da Estátua, 18/05/2019)


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Na viragem para o século XX, a figura dominante da finança portuguesa era Henry Burnay, nascido em Lisboa de pais belgas. Fez carreira numa agência financeira, casou-se com a filha do dono, acumulou fortuna com especulação com dívida pública (comprou por tuta e meia títulos de dívida do pretendente derrotado, D. Miguel, e cobrou-os pelo valor nominal) e com negócios coloniais. Investiu em transportes e no Banco Nacional Ultramarino. Do seu palácio da Junqueira, dirigiu um império e, quando morreu, era um dos homens mais ricos da Europa.

Bordalo Pinheiro caricaturou-o, Fialho de Almeida chamou-lhe o “pulgão polimórfico” e a imprensa, mais respeitadora, o “Senhor Milhão”. Mas foi Eça quem dele deixou o retrato mais completo, como o banqueiro Jacob Cohen, “um homem baixo, apurado, de olhos bonitos, e suíças tão pretas e luzidias que pareciam ensopadas em verniz, (que) sorria, descalçando as luvas, dizendo, que, segundo os ingleses, havia também a gota de gente pobre; e era essa naturalmente a que lhe competia a ele…”. “Os Maias”, onde se conta a história, concentram-se nos amores entre João da Ega e Rachel Cohen, mas também levantam o véu do negócio do banqueiro. Ei-lo num jantar de gala:

“— Então, Cohen, diga-nos você, conte-nos cá… O empréstimo faz-se ou não se faz?

E acirrou a curiosidade, dizendo para os lados, que aquela questão do empréstimo era grave. Uma operação tremenda, um verdadeiro episódio histórico!… O Cohen colocou uma pitada de sal à beira do prato, e respondeu, com autoridade, que o empréstimo tinha de se realizar absolutamente. Os empréstimos em Portugal constituíam hoje uma das fontes de receita, tão regular, tão indispensável, tão sabida como o imposto. A única ocupação mesmo dos ministérios era esta — cobrar o imposto e fazer o empréstimo. E assim se havia de continuar…

Carlos não entendia de finanças: mas parecia-lhe que, desse modo, o país ia alegremente e lindamente para a banca-rota.

— Num galopezinho muito seguro e muito a direito, disse o Cohen, sorrindo. Ah, sobre isso, ninguém tem ilusões, meu caro senhor. Nem os próprios ministros da fazenda!… A banca-rota é inevitável: é como quem faz uma soma…

Ega mostrou-se impressionado. Olha que brincadeira, hein! E todos escutavam o Cohen. Ega, depois de lhe encher o cálice de novo, fincara os cotovelos na mesa para lhe beber melhor as palavras.

— A banca-rota é tão certa, as coisas estão tão dispostas para ela — continuava o Cohen — que seria mesmo fácil a qualquer, em dois ou três anos, fazer falir o país…”

Pois foi na bancarrota que Burnay fez o seu melhor contrato. Como intermediário do sindicato bancário que deu crédito ao Governo, exigiu a contrapartida mais rentável, o monopólio dos tabacos. Durante 25 anos foi o seu tesouro. Ele sabia como se podia fazer falir o país em dois ou três anos e cobrou pelo seu poder. Ficou rico como Midas. A fama era merecida, contam os jornais da época que, para apoiar Alfredo da Silva na disputa pela CUF, Burnay chegou a uma assembleia geral e correu “dinheiro a rojos”. O poder do Senhor Milhão era imenso.

Discute-se agora em Portugal como se ergueu a fortuna do nosso novo Senhor Mil Milhões. Um pouco mais atabalhoada, é certo, a sua fortuna é dívida, mas é comendador e os bancos emprestavam sem perguntar. Pode, portanto, criticar-se tudo a Berardo, que se expôs como o pato feio da fábula, mas o que não se pode ignorar é o retrato dessa elite que, entre negócios e oportunidades, foi amassando fortunas do século XIX até hoje. Não se admire, então, que ele se ria de nós todos, ele sabe porquê.


Outra bomba orçamental e contas certas

Se lhe disserem que a contabilidade e a fiscalidade são coisas aborrecidas, desconfie. É onde se escreve a poesia das estrelas, onde se desenha a seta do progresso, onde reluz a beleza da criatividade. Mas, mesmo reconhecendo estas evidências, dificilmente estaríamos preparados para conceber essa maravilha da tecnologia, que digo eu, da gramática da civilização, que são os Ativos por Impostos Diferidos. Nem me diga que não sabe do que se trata, se for o caso esconda essa ignorância, a sua família não pode saber, que desprestígio. Aqui tem então uma prestimosa ajuda para a sua conversa no almoço de domingo.

Estes ativos por impostos diferidos (AID) foram inventados quando os bancos se queixaram de que as autoridades tributárias atrasavam a contabilização das imparidades, que registam os seus prejuízos em algumas operações, para as verificarem. O efeito seria que os bancos pagariam mais IRC do que o devido, dado que alguns prejuízos não entravam logo na conta do ano. Assim, reclamavam que o imposto excessivo lhes fosse depois devolvido. Parece normal, não parece? O artifício entra agora. Estes valores, a descontar do imposto a pagar nos anos seguintes, passaram a ser registados como capital, para facilitar a vida aos bancos e maquilhar as suas contas. Ora, a Comissão Europeia não gostou do truque, só utilizado em Portugal, Itália, Espanha e Grécia, e determinou o seu fim, tanto mais que, no contexto da recessão, com as falências de empresas e famílias e a perda de créditos, muitos bancos passaram a ter prejuízo e portanto não tinham como abater estes valores aos seus impostos, dado que deixaram de pagar impostos.

O governo PSD-CDS fez então um milagre: redefiniu estes AID como direitos irrevogáveis e reinstituiu-os como uma forma de capital, que soma agora 3840 milhões de euros. Como no jogo da vermelhinha, isto anda tão depressa que podemos não ver o que se passa, mas resume-se assim: os bancos ficaram com o direito de contar como capital e até de pedir a devolução ao Estado de um imposto que nunca pagaram. Já pediram e receberam 240 milhões e estão agora a exigir mais 150, mas a fatura ainda vai no adro. Contas certas, pois claro.


Contas certas para a gente certa

Era uma bomba orçamental, um pavor para as contas públicas, Portugal ia voltar a pedir de mão esticada pelas esquinas de Bruxelas, tudo por mor dos tais duzentos milhões que seriam o custo da contagem do tempo de serviço dos professores, cumprindo a lei (que não foi alterada, pois não?). Se bem me lembro, esse incidente foi no século passado e uma boa carga de cavalaria à espadeirada acabou com a insurreição. Mas há pior e chamo-lhe a atenção para o que se veio agora a saber, no nosso século: a Comissão de Inquérito às Rendas Excessivas da Energia aprovou o seu relatório final e fez contas a uma bomba orçamental que existe mesmo e até já está a explodir.

A lista é um exemplo do que têm sido as contas certas de vários governos. Temos primeiro os ganhos ilegítimos obtidos no âmbito dos Contratos de Manutenção do Equilíbrio Contratual, um nome que é todo um programa e que, segundo a entidade reguladora e a Comissão, foram de 510 milhões. Temos depois os ganhos ilegítimos pela extensão da operação de Sines autorizada pelo governo PSD-CDS, 951 milhões até 2025. Somam-se os ganhos excessivos das eólicas, reconhecidos pelos produtores, que aceitaram pagar uma parte, 200 milhões, amealhando o resto. Vem ainda a mais-valia da EDP com dívida tarifária, 198 milhões entre 2008 e 2017. Acrescente subsídios indevidos ao investimento em barragens, estes inventados por governo PS, e vão mais 52 milhões. Mas há mais. Conte agora o pagamento da interruptibilidade a empresas industriais, que custou já 727 milhões desde 2010. Abuso de posição de monopólio pela EDP e vão outros 73 milhões, segundo o regulador. Chegam agora os requintes de imaginação criativa: a REN cobra aos consumidores uma renda pelo seu próprio uso de terrenos públicos, são 80 milhões desde 2006. E a cereja em cima do bolo: se tivessem sido adotadas as medidas recomendadas no programa de ajustamento para reduzir as rendas, até 2020 isso significaria 2048 milhões, dos quais 718 milhões na conta da EDP.

Como, aqui chegados, já percebeu o nervosismo das empresas que ameaçam processos judiciais se o relatório for aprovado (e nem sequer se sabe se o Governo mexerá um dedo para recuperar estas rendas excessivas), já tem a resposta à pergunta sobre as contas certas. Sim, tem havido contas certas, mas para as empresas certas. Se é consumidor e paga impostos, esqueça, é melhor nem saber quem lhe vai à carteira.


5 pensamentos sobre “O senhor mil milhões

  1. «Sim, “capitalismo” é um sistema económico de organização das sociedades onde os três casos referidos são triviais, fazendo parte da natureza íntima do sistema.»

    Não digo que fará parte da natureza íntima do sistema mas do seu conteúdo objectivo. O mundo é hoje a tal “aldeia global” e vive todo ele segundo as práticas do capitalismo.E mesmo os que se intitulam comunistas vivem tão só um capitalismo selvagem tal qual era, ou pior ainda, o que existia no tempo de Marx o qual ele estudou e escalpelizou.
    Levou milénios até chegarmos aqui e, mesmo à velocidade do tempo actual, eventualmente ainda levará muito tempo até atingirmos outro tipo de Sociedade diferente e melhor.
    Logo, não sendo possível lutar e subverter o “Sistema” imediatamente (antes um processo semelhante à água que tanto bate até que fura) será um bom governante o que melhor entender o funcionamento do mundo actual e dele tirar o melhor partido desse funcionamento; será um relativista e pragmático.
    Porque a pergunta que Louçã nunca faz nem nunca inclui nos custos é; sendo nós obrigados a viver dentro do “sistema” quanto custaria ao país e ao povo inteiro querer jogar fora do dito “sistema”? Isto é; qual a medida e grandeza de custos para o país tentar subverter o “sistema”.
    Façamos um exercício de memória; as medidas propostas pelo Bloco, se aplicadas a rigor, uma após outra ao ritmo de causa efeito levar-nos-iam para que custos económicos, financeiros e sociais de que ordem?
    Seria o “saldo” negativo ou positivo?

    • Se é uma pergunta legítima, a resposta é simples, mas bastante longa se propriamente detalhada. Mas em resumo, há muito mais que cabe dentro do capitalismo do que o neoliberalismo, estando completamente dentro do sistema global. No respeitante ao país, é necessário reconhecer que ser deficitário não só é irrelevante, como vital. Os valores do déficit e da dívida não dizem nada de relevante sobre o estado da economia, e as sucessivas projecções dos últimos 10 anos em toda a União demonstram-no. Nem a saída seria estar fora do sistema, teríamos as mesmas regras que todos os outros têm, incluindo os constrangimentos de um alto nível de desemprego para estabilizar uma inflação que não existe.
      Não é sério falar dos custos de mudar e ignorar os custos de ser obrigado a esse desemprego, a piorar as infrastruturas, não controlar a fuga de capital e desregulação financeira (toda a banca, do Berardo ao Carlos Costa e as regras que os permitem são intocáveis), não controlar o arrendamento e o preço das casas, ter relações laborais decadentes e por aí adiante que necessita de um acordo a 28 para ser alterado.
      Se tirar o melhor proveito do sistema globalista é isto, ainda bem que vai causar o nosso desaparecimento em breve.

  2. Meu caro josé neves, mas se lendo o artigo (e muitas notas sobe muitos outros temas e “lutas”) não se vê a água a bater até “que fure” o que imagina?, como pode o sistema ser superado? E isso dos custo dos custos para inibir a ação pela alteração de um sistema iníquo e injusto parece coerente com a posição que transparece assumir: a escorregar para a inércia e o sono letárgico esperando que o sistema caia…

  3. Caro Mário Reis, também não vê o ponteiro das horas rodar no entanto ele roda e dá horas; se forçar o ponteiro a rodar fora do tempo certo, destrói-o.
    Tem sido o caso das Revoluções abruptas; destroem o que existe provocando miséria, terror e mortandades inglórias para passados anos depois tornarem ao ponto de partida ou estaca zero (da sua opinião atrevia-me a pensar que é daqueles que já hoje perguntam “para que serviu o 25 Abril?), não obstante o nosso 25A ter sido restituidor imediato do precioso bem que é a Liberdade ao contrário das grandes Revoluções históricas que pretendiam mudar o mundo.
    Tal como o ponteiro das horas não está inerte nem inativo também a dialéctica social da luta dos opostos, ou de classes se quiser, fará o seu caminho longo face às contradições internas que o “sistema” inevitavelmente vai criando.
    Se, como diz, o sistema tal como existe hoje fosse integralmente “iníquo e injusto” ele já teria implodido, penso. Acontece que o “sistema” parece ter ideias e sentimentos de auto-preservação e como tal não é “iníquo e injusto” para todos e até é copiosamente benemérito para aquela parte que lhe apara e serve o gosto; desse modo mantém a Sociedade em permanente equilíbrio instável e até usa a Democracia para fazer os ajustamentos contínuos necessários a tal equilíbrio na corda bamba.
    A Democracia, tal como os ingleses demonstraram, pode servir para mudar a vida evitando sangrentas revoluções, claro não pode, nem foi para isso criada mas pelo contrário, promover rupturas e descontinuidades no trajecto histórico.
    As grande Revoluções para mudar o mundo provaram que o processo histórico humano, ao contrário do que pensava o marxismo, não consente rupturas e descontinuidades dada a interacção entre consciência e existência; mudar abruptamente e à força o modo de existência é o pânico para a consciência.
    O povo tem um proverbio para definir essa situação; cadelas apressadas parem filhos loucos.

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