(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 12/04/2019)

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Joe Berardo é uma espécie de Ricardo Salgado do Atlântico. Foi sempre um homem encantador a quem ninguém conseguia dizer que não. Íntimo de políticos e banqueiros, era unha com carne com jornalistas. Fizeram-lhe perfis extraordinários. Um “self made man” alimenta os sonhos de quem julga que um dia lá pode chegar. E os sonhos não se estragam com perguntas. Mesmo quando se meteu em problemas – e meteu-se imensas vezes em problemas –, isso apareceu sempre como excessos naturais de um homem intenso e “polémico”.
Até ao dia em que o madeirense que subiu a pulso se transformou, aos olhos de todos, num simples aldrabão. Não se pode dizer que ele tenha tentado passar pelo que não era. Mas ninguém o tinha visto. Como poderiam ver? Estamos a falar de um comendador, valha-me Deus. Foi o impoluto (mesmo) general Ramalho Eanes que lhe ofereceu a medalhinha que acabaria por se transformar no seu primeiro nome. Foi Jorge Sampaio que subiu a parada e o elevou à Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. E, como quando é para ser em grande tem de ser à francesa, foi Jacques Chirac que lhe deu a mais alta condecoração de França. Dava gosto ver um homem simples, que só tem uma garagem no Funchal, chegar tão alto na hierarquia das honrarias de Estado.
Nos bancos, não era tratado como qualquer cliente. Joe Berardo era Joe Berardo. Um homem que parecia um vigarista, cheirava a vigarista, falava como um vigarista mas era um comendador. Até ao dia em que alguém deixou de bancar. Foi aí que o país inteiro se indignou. Passou de comendador a bandido
Era difícil os bancos não acreditarem que estava tudo bem. Não iam pedir-lhe mais garantias do que o seu próprio esforço e trabalho. Se o homem dizia que as ações que ia comprar de um banco concorrente com o dinheiro que estava a pedir emprestado serviam de garantia para esse mesmo empréstimo, quem era um pobre manga de alpaca da Caixa para desconfiar? Claro que não era tratado como qualquer cliente. Como poderia ser? Joe Berardo era Joe Berardo. Um homem que parecia vigarista, cheirava a vigarista, falava como um vigarista mas era um comendador.
Uma coisa é certa: não foi só a Caixa que ficou a arder. Foi a Caixa, o Novo Banco e o BCP. Agora estão de olho nas suas obras de arte. Só que, além delas estarem em nome da sua Fundação, foram emprestadas ao Estado. Foram para o CCB porque provavelmente ele não tinha espaço na garagem. Houve quem dissesse que aquilo era valorizar a coleção à borla, mas eram as más línguas. Mesmo assim, Berardo deu-as como garantias aos três bancos ao mesmo tempo. E todos caíram.
Parece que o problema não é só do Estado, é de quase toda a banca. Como Berardo tratava ministros por “babe” e banqueiros por “tu” tinha crédito infinito na credulidade de quem guardava as chaves do cofre. Até ao dia em que tudo correu mal e alguém deixou de bancar. Foi aí que o país inteiro se indignou. Joe Berardo passou de comendador a bandido. E entrou para ao clube dos génios mortos, fazendo companhia ao rei proscrito Ricardo Salgado, o primeiro.
Sempre viveu de especulação e vigarices à boa maneira de Geoge Soros. Nunca criou empregos.
Hoje, estamos todos a pagar suas vigarices
E não vai ninguém preso ?
Ui?
Nota. Eu sei qu’ele há gente para e gostos também para tudo, mas. Entre a prosa sofrível do Daniel e o artigo, lapidar!, do Antonio Guerreiro, ontem, é escolher. Eu lembro-me disto, dogamos que vai de Edite Estrela passa por José Sócrates e só depois chegam as cenas do Daniel. É o retrato de uma época, de facto.
Saber que o empresário Joe Berardo deve quase mil milhões de euros à banca faz-nos soltar um riso amargo quando, à entrada do Centro Cultural de Belém, somos esperados por grandes painéis a indicar que estamos a entrar no condomínio de luxo parcialmente
ocupado pelo Museu — Colecção Berardo. A dívidas
sumptuárias correspondem residências sumptuárias.
A primeira residência do inquilino do CCB foi em
Sintra, num Museu de Arte Moderna criado para o
efeito, num edifício com alguma história e dimensão,
mas que proporcionalmente à grandeza do ocupante
era uma espécie de T2 na linha de Sintra. Dessa
inauguração, em 1997, poderíamos dizer o que Marx
disse, ao assistir à abertura da Exposição Universal de
Londres, em 1851: “O povo acorreu para ver as
mercadorias”. E é bem verdade que a arte, na visão
marxista, representa a mercadoria por excelência:
puro valor de troca e zero valor de uso. O povo que se
deslocou a Sintra era toda a arraia-miúda e grossa das
artes, em Portugal (e algumas espécies estrangeiras
para fazer uma caldeirada cosmopolita), e gente vária
e numerosa do campo artístico e cultural (para não
me armar em snob, devo dizer que também lá estive,
na condição de jaquizinho). Berardo, pouco dado à
fina eloquência, não se lembrou de dizer que estava a
oferecer um presente a Sintra e a todos os
portugueses; essas palavras ao estilo dos nobres
mecenas do nosso tempo, que circulam entre a arte
contemporânea e as indústria do luxo, foram
proferidas por Bernard Arnault, o director executivo
do grupo LVMH, quando inaugurou no Bois deP.
Boulogne, em 2014, o museu da Fundação Louis
Vuitton: “É um presente a Paris e à França” (e nesta
noção de presente, cadeau, joga-se uma diferença
essencial com a ideia de dom que informou, durante
séculos, a actividade mecenática). Joe Berardo, muito
longe do requinte destes novos príncipes, não o disse
explicitamente, mas estava subentendido. E não
precisava porque havia muita gente a dizê-lo por ele.
[…]
Fonte: P. (Ípsilon), 11.4.2019, p. 2.
RFC o Guerreiro fica para amanhã, já estava previsto… 🙂
Sorry, então (pensava eu que a opção seria escolher um, o melhor).
Antecipa-o para salvares a situação, se quiseres, porque a cena do DO não adianta nada ao que já sabemos.
O primeiro milho é dos pardais… 🙂
Idem, ibidem.
[…]
Sabemos agora, passados mais de vinte anos, que
foram os portugueses, entretanto, que emprestaram
cerca de mil milhões de euros (cem euros, cada
português) ao empresário. Muitíssimo mais do que
vale a colecção, quando for convertido o seu valor
simbólico em valor real. Sabendo tudo isto,
conhecendo bem a história, entramos no Museu —
Colecção Berardo e o que vemos, obstinadamente,
não é arte, mas activos financeiros. E activos
financeiros dos quais somos investidores
involuntários. Vemos então, em exposição, uma
parafernália financeira, à espera de ser convertida em
dinheiro para pagar dívidas ou iludir os credores que,
apesar do nome, não crêem naquilo que jamais
entenderão. E se entendessem exprimiriam
certamente uma enorme impaciência perante as
manobras deste coleccionador que quis, à escala
portuguesa, ser o representante de uma plutocracia
mundial que faz da arte contemporânea um
laboratório de formas de criação de valor. Num
momento em que o devir especulativo estava
acelerado, aquela colecção exibia a solidariedade que
a arte estabelece com o dinheiro e o “novo
capitalismo”. Ao contrário das trocas comerciais
tradicionais — em relação às quais as obras de arte
ocupavam um lugar marginal, inscrevendo-se num
regime particular do valor — , as economias
neo-liberais integraram a arte nos mecanismos do
mercado como um factor de investimento e
especulação, uma das principais formas de
investimento e de mais-valia, de circulação do
dinheiro e de valores-refúgio. Mas a colecção mostrou
também, nas suas andanças expositivas, que até uns
restos de discursos sobre a autonomia artística não
passam de uma tagarelice que não pode ser levada a
sério. Joe Berardo foi o supremo representante do
empresário que não empreende nada, instalado na
financiarização da economia. A operação CCB/
Colecção Berardo inscreveu-se numa lógica de
valorizar a capitalização da totalidade da colecção.
A conclusão última — e escandalosamente política —
desta triste história é que é possível encontrar no
mundo da arte, onde menos se esperava, aquela
oposição entre o capital e o trabalho que Marx definiu
e analisou. De tal modo que, na sociologia do campo
artístico, se inventou um mot-valise para designar esta
nova figura a que corresponde a maior parte dos
artistas: o prolartariado.