Há coisas que se podem diminuir, mas não se podem eliminar – como o racismo

(Por José Pacheco Pereira, in Jornal O_Público, 02/02/2019)

JPP

Pacheco Pereira

Se queremos encontrar um grande optimista, num meio intelectual em que essa atitude é uma excepção, temos que ler Steven Pinker. Tive o gosto de apresentar uma sua conferência no Porto, discutir e conversar com ele em público e em privado. Nessas discussões e conversas, eu referi-lhe a minha discordância genérica com a sua tese, por isso eu estava mais do lado da regra e ele da excepção. Não tanto porque ele não tivesse razão em quase tudo o que dizia, em particular na longa série de exemplos estatísticos de como o mundo estava melhor do que o que nós pensamos, mas naquilo que ele não incluía nas estatísticas, ou que as estatísticas não podem dizer. Pinker mostrava como a evolução cronológica no período contemporâneo, desde a Revolução Francesa, revelava significativas melhorias para o bem-estar da humanidade, em particular desde 1945.

As guerras hoje matavam muito menos gente, a pena de morte e a tortura tinham consistentemente recuado, os direitos das mulheres e das crianças melhoravam e o mesmo acontecia com as violências domésticas associadas, as pessoas tratavam melhor os animais, o bem-estar económico e social no mundo no seu conjunto tinha dado um salto (em particular nos muitos milhões de pessoas que viviam na miséria na China e na Índia), a ciência, e a medicina em particular, tinha conseguido avanços importantes no combate a muitas doenças, a esperança de vida aumentava, o analfabetismo diminuía, o trabalho infantil, as condições brutais de trabalho estavam a ficar reduzidos a meia dúzia de países, a escravatura quase desapareceu, o número de crimes violentos reduzia-se, etc., etc. De um modo geral, aquilo a que chamamos “direitos humanos”, mal ou bem, conheciam melhores práticas quando olhávamos para o mundo no seu conjunto. Esta evolução era muito significativa na Ásia, e apenas África conhecia um desenvolvimento mais lento. Eu concordava com isto tudo e penso ser salutar compreender estas melhorias, que muitas vezes são esquecidas em certos discursos esquerdistas, que, por exemplo, têm muita dificuldade em incluir a China nas suas análises globais.

Mas… mesmo assim tinha relutância em ir muito longe na afirmação dessa tendência, porque havia coisas que não encaixavam. Uma delas é a existência de armamento termonuclear desde a década de 1950, que mostra que a humanidade pode destruir-se a si própria, pela primeira vez desde que existe. É um salto qualitativo brutal, um ponto sem retorno, e é o seu risco que impede os cientistas que controlam o chamado “relógio do apocalipse” de deixar de colocar a humanidade a poucos minutos do fim. Aliás, o “relógio”, que chegou a estar a 15 minutos, hoje tem vindo a diminuir o tempo para o “apocalipse”, com a presidência Trump, para dois minutos.

Outra é do domínio histórico e cultural no sentido lato e tem a ver com grandes diferenças “civilizacionais” que, no conjunto da história moderna, pouco se esbateram, como a que separa o mundo ocidental do Islão, em matérias, por exemplo, como a emancipação e igualdade das mulheres. Contrariamente ao bem-avontadismo optimista, as “civilizações” dialogam muito pouco e permanecem núcleos duros de diferenças e conflitos em todas as fronteiras.

Outra é mais complicada de discutir, e tem a ver com a matéria das “guerras culturais”. Consiste em saber se um conjunto de atitudes violentas de pessoa a pessoa ou de grupo em grupo, como a xenofobia e o racismo, tendo diminuído sem dúvida, não permaneciam num resíduo, muitas vezes muito pouco resíduo, que não é possível eliminar com eficácia. Para quem estuda história, a humanidade e as suas sociedades não são uma coisa nem higiénica, nem higienizável em absoluto. Isso não significa que se aceite o status quo, e que o olhar desapiedado sobre os comportamentos humanos impeça a acção. Mas perfeição não há e o “homem novo” também não, é o mesmo de sempre e Deus fê-lo mal feito.

É também por isto – escandalizem-se pois! – que não é possível eliminar o racismo seja em que sociedade for. Pode-se diminuir significativamente pela melhoria económica e social, já menos pela educação, e menos ainda pela repressão, no caso de crimes, mas permanece sempre um resíduo, um reservatório, cuja tentativa de eliminação por políticas radicais não só é ineficaz como é contraproducente.

Esse reservatório aumenta e diminui conforme outros aspectos da conflitualidade social que lhe são adjacentes e, em particular, quando falha o melting pot para os imigrantes. É o que acontece nos EUA, em França, na Alemanha, com a crise dos refugiados e/ou as políticas anti-imigração à Trump, mas ainda não acontece em Portugal. Esta afirmação pode ser polémica, mas é sustentável nos factos. Há racismo às claras e racismo inscrito de forma menos visível em Portugal. Há. Mas já foram a França, à Alemanha, ou à Rússia, já para não dizer aos EUA?

Uma má solução é a de fazer proliferar uma legislação punitiva e proibitiva, que é inútil, mas que gera efeitos perversos na liberdade de expressão e no policiamento da linguagem. Ainda pior é acantonar o anti-racismo em discursos radicais que isolam uma parte das comunidades numa “guerra cultural” que, quase de certeza, vão perder. Nos EUA, muitos ajudaram a alterar a condição dos negros nos estados do Sul e a combater o racismo. Mas quem deu à luta contra o racismo uma dimensão nacional foi Martin Luther King, muitos pastores negros, muitos voluntários brancos que, nos piores anos, se dirigiram para o sul, alguns pagando com a vida a sua luta. Mas não foram os Black Panther, por muito atractiva que fosse a sua coreografia de casacos de couro e armas automáticas na mão, porque tinham também direito à protecção da Segunda Emenda.

Uma coisa é a intransigência absoluta com o racismo, outra a indústria política do anti-racismo.

3 pensamentos sobre “Há coisas que se podem diminuir, mas não se podem eliminar – como o racismo

  1. Boa tarde

    Então não é que o Facebook não permite a partilha deste artigo por considerar uma mensagem abusiva!

    Não dá para entender.

    José Marques

  2. A solução é copiar e colar o artigo. Não fica tão bem “apresentado”,
    mas consegue-se partilhar. O Facebook está a censurar a torto e a direito…

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