Retoma do emprego, mas não dos salários

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 03/01/2019)

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A expressão “recuperação sem emprego” (“jobless recovery”) foi cunhada na década de 1990 para caracterizar a economia norte-americana, que após a recessão de 1990-91 regressou ao crescimento económico sem que o desemprego diminuísse. Algumas das explicações então aventadas para este fenómeno incluíam a deslocalização de partes do processo produtivo para outras partes do globo e os aumentos da produtividade associados às novas tecnologias de automação e informação: ambos os processos tenderiam a aumentar o produto por trabalhador empregado, quebrando a ligação entre as dinâmicas do produto e do emprego.

Hoje em dia, no contexto da recuperação após a Grande Recessão e as diversas ondas de choque que a têm caracterizado, o problema central da recuperação económica nas economias avançadas é de uma natureza diferente. Tanto na Europa como nos Estados Unidos, a taxa de desemprego caiu fortemente nos últimos anos, encontrando-se actualmente em níveis bastante reduzidos face aos padrões das últimas décadas: 6,8% na União Europeia, 3,7% nos Estados Unidos. Em contrapartida, a evolução dos salários não tem acompanhado a dinâmica de crescimento do produto, e em muitos casos tem até sido negativa. Em vez de uma “jobless recovery”, temos assim o que tem sido apelidado de “wageless recovery”: uma retoma sem crescimento salarial.

O Global Wage Report de 2018/19, publicado recentemente pela Organização Internacional do Trabalho, avança alguns números ilustrativos: entre as economias do G20 (as mais avançadas), por exemplo, o crescimento dos salários foi de apenas 0,9% em 2016 e 0,4% em 2017, apesar da taxa de crescimento do produto nesses anos ter sido consideravelmente mais robusta. O problema é especialmente intenso na Europa, que registou um crescimento real dos salários praticamente nulo em 2017, mas também se faz sentir nos Estados Unidos, onde o crescimento real dos salários foi apenas cerca de 0,7% tanto em 2016 como em 2017.

A recuperação da economia portuguesa nos últimos anos padece do mesmo problema: a criação de emprego e redução do desemprego têm sido verdadeiramente notáveis, mas contrastam fortemente com a estagnação salarial. Por exemplo, a remuneração de base média mensal (valor ilíquido, antes de quaisquer descontos) em Portugal passou de 963 Euros em Abril de 2013 para 973 Euros em Outubro de 2017, o que corresponde a uma contracção em termos reais. Da mesma forma, o ganho médio mensal ilíquido (também antes de quaisquer descontos, mas incluindo horas extra, prémios e outros suplementos) mal se alterou em termos reais, passando, no mesmo período, de 1.125 Euros para 1.151 Euros.

Até certo ponto, o problema da “wageless recovery” é simétrico ao da “jobless recovery”: na primeira temos um crescimento económico extensivo, em que o crescimento do emprego sustenta o crescimento do produto mas não da produtividade ou dos salários; na segunda temos um crescimento económico intensivo, com aumentos de produtividade que apoiam o crescimento do produto mas não a criação de emprego.

Mas esta não é toda a história. Se é verdade que a produtividade tem aumentado menos do que o produto na generalidade das economias avançadas, é também verdade que a evolução dos salários tem na maior parte dos casos ficado aquém da evolução da produtividade: ou seja, a parte dos salários no rendimento nacional tem vindo a diminuir. A explicação para o problema não é apenas a falta de dinamismo da produtividade, mas também um problema distributivo, de deterioração dos rendimentos do trabalho em relação aos rendimentos do capital.

No caso português, a parte dos salários no rendimento nacional tem estado praticamente estagnada nos últimos anos, após ter retrocedido muito fortemente durante o período da Troika e de governação da direita. Não tem continuado a diminuir, como noutras economias avançadas, mas também não recuperou nenhum do terreno perdido durante o retrocesso dos anos anteriores, o que não deixa de ser demonstrativo dos limites da actual governação.

O problema da retoma sem crescimento salarial é em parte estrutural, estando ligado ao problema da estagnação da produtividade e à evolução sectorial da economia, mas é também político, estando ligado à capacidade negocial das partes envolvidas na relação laboral. Quanto a este último aspecto, continuamos a fazer menos do que devíamos para repor os equilíbrios perdidos nos anos anteriores.

Um pensamento sobre “Retoma do emprego, mas não dos salários

  1. «No caso português, a parte dos salários no rendimento nacional tem estado praticamente estagnada nos últimos anos»
    Nos últimos 20 a 30, não? De qualquer forma, a ausência de qualquer pressão para cima nos salários (e não falta pressão para baixo) diz tudo sobre a relevância da fórmula do cálculo do desemprego para qualquer decisão económica – tão útil como o défice estrutural, ou não fossem duas faces da mesma moeda do stock de desemprego para a (suposta) estabilidade económica.

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