A República dos sem-papéis

(António Guerreiro, in Público, 01/06/2018)

Guerreiro

António Guerreiro

Para um estudo de iconologia política da nossa época, uma imagem exibida nas televisões e nos jornais de todo o mundo fornece matéria fecunda. Trata-se da imagem de um jovem do Mali, que entrou no Palácio do Eliseu na sua condição de imigrante ilegal, sans-papiers, e à saída exibiu um conspícuo papier que, disse ele aos jornalistas num francês ainda pouco treinado, “me dá muito prazer, é a primeira vez que ganho um troféu como este”.

papier que ele recebeu das mãos do Presidente francês tinha o carimbo da “République française” e foi outorgado como diploma de um “Acte de Courage et de Dévouement”. Na véspera, o jovem do Mali tinha trepado quatro andares de um edifício, em menos de um minuto, arriscando a vida, para salvar uma criança que estava a cair de uma varanda. Alguém, entre os muitos transeuntes que assistiram à cena e aplaudiram no final a operação espontânea de salvamento, filmou com um telemóvel a impressionante performance atlética, de força, habilidade e equilíbrio, deste “super-herói” (como foi logo designado) e esse filme atravessou a França e o planeta. O dévouement, a abnegação, essa disposição que consiste em servir outrem ou uma causa, arriscando eventualmente a própria vida, é uma palavra bem conhecida da retórica republicana francesa. Compreende um “dom de si”, a renúncia e o sacrifício pessoal, e implica também uma exigência de obediência. A figura ideal do dévouement é uma forma superior de amor e gratuito que transcende a condição humana comum. Quanto à etimologia, a palavra deriva da forma latina devotio, O dévouement da filosofia política republicana é ao mesmo tempo um herdeiro da devotio romana e uma laicização da devoção religiosa. A França que aplaudiu este novo herói, saído dos contingentes de imigrantes indesejáveis, está cada vez mais surda aos hinos nacionais. Mas o Estado não quer de modo nenhum perder o monopólio da enunciação da identidade. E, assim, sob a aparência de prestar homenagem a um jovem imigrante clandestino, a República Francesa emite um diploma que é uma representação de si, exibida à Nação com o carimbo da República Francesa, homenageando-se a si própria e assegurando a eficácia política das imagens. O “super-herói” do Mali saiu do encontro com Emmanuel Macron como um francês honorário, francês reconhecido e diplomado pela República por “courage et dévouement”. No frente-a-frente com o Presidente, ele sobressaía pelas roupas informais, mas também por outra razão: tendo realizado uma performance física assinalável, passou a oferecer-se à observação segundo esse critério. E, neste aspecto tornado demasiado notório porque foi um motivo central do acto heróico, o corpo político republicano surge em clara desvantagem.

Exibido como exemplo à Nação que já teve um Ministério da Imigração, da Integração e da Identidade Nacional, o novo super-herói recebido no Palácio do Eliseu por Emmanuel Macron corre o risco de, servindo involuntariamente a retórica republicana do dévouement, prestar um bom serviço a uma biopolítica humanista que passa diplomas de “francidade” honorária a “super-heróis” que salvam crianças em queda iminente de um quarto andar, enquanto expulsa a multidão de anónimos sans-papiers e sem um papel com um carimbo de reconhecimento outorgado pela República. Não é difícil explicar este mecanismo: começa-se por reconhecer que há imigrantes que são heróis e acaba-se por exigir heroicidade dos imigrantes. É quase o mesmo que se passa com a cultura: descobre-se pontualmente a sua utilidade e acaba-se por exigir que ela seja sempre útil.

Um pensamento sobre “A República dos sem-papéis

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